A Sabia Ingenuidade do Dr Joao Pinto Grande - Yuri Vieira - Literatura (2025)

Literatura

Eeefm Doutor Francisco De Albuquerque Montenegro

josivaldoeokara Bezerra 12/10/2024

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<p>1ªedição</p><p>2017</p><p>CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃO</p><p>SINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ</p><p>Vieira,Yuri</p><p>V716s</p><p>AsábiaingenuidadedoDr.JoãoPintoGrande[recursoeletrônico]/YuriVieira.-1.ed.--Rio</p><p>deJaneiro:Record,2017.</p><p>recursodigital;epubFormato:epubRequisitosdosistema:adobedigitaleditionsModode</p><p>acesso:worldwidewebISBN978-85-01-11221-7(recursoeletrônico)1.Contobrasileiro.2.Livros</p><p>eletrônicos.I.Título.</p><p>17-41247</p><p>CDD:869.93</p><p>CDU:821.134.3(81)-3</p><p>Copyright©YuriVieira,2017</p><p>Todososdireitosreservados.Proibidaareprodução,armazenamentooutransmissãodepartesdestelivro,</p><p>atravésdequaisquermeios,sempréviaautorizaçãoporescrito.</p><p>TextorevisadosegundoonovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.</p><p>DireitosexclusivosdestaediçãoreservadospelaEDITORARECORDLTDA.</p><p>RuaArgentina,171–RiodeJaneiro,RJ–20921-380–Tel.:(21)2585-2000.</p><p>ProduzidonoBrasil</p><p>ISBN978-85-01-11221-7</p><p>SejaumleitorpreferencialRecord.</p><p>Cadastre-seemwww.record.com.brerecebainformaçõessobrenossoslançamentosenossaspromoções.</p><p>Atendimentoevendadiretaaoleitor:</p><p>mdireto@record.com.brou(21)2585-2002.</p><p>“Nãoapenasestamostodosnomesmobarco</p><p>comotambémestamostodosmareados.”</p><p>G.K.Chesterton,</p><p>Oquehádeerradocomomundo</p><p>Àmemóriadosmeusamigosemestres,</p><p>HildaHilsteBrunoTolentino.</p><p>Sumário</p><p>Omachistafeminista</p><p>OPromptdeComandoouAsábiaingenuidadedoDr.JoãoPintoGrande</p><p>Ateologiadamaconha</p><p>Opedintedometrô</p><p>Ameninabranca</p><p>Amarásaoteuvizinho</p><p>ASatoshioqueédeSatoshi(somenteparanerdsegeeks)</p><p>Omachistafeminista</p><p>Temposatrás,participeideumencontroliterárionaCasaMáriodeAndrade,em</p><p>São Paulo, onde, ao longo de uma semana, debati com outros autores as</p><p>perspectivasdaliteraturabrasileiranestenovomilênio.Foiláque,entreoutros,</p><p>conhecipessoalmenteElisaAndradeBuzzo,LuisEduardoMatta,MiguelSanches</p><p>Neto, André de Leones, Fabrício Carpinejar e Antonio Prata, com quem, na</p><p>última noite, dividi uma carona oferecida pela esposa de Julio Daio Borges,</p><p>organizador do evento. Embora o encontro tenha sido muito interessante —</p><p>principalmente porque pela primeira vez eu participava de algo do gênero</p><p>enquanto escritor convidado, e não como leitor—, este relato nada tem a ver</p><p>comoeventoemsi,comosdemaiscolegasalipresentesousequercomliteratura</p><p>—aomenosnãodiretamente.Ofatoéque, justamentenodiaemqueDaniela</p><p>Rede, minha bela e autoproclamada assessora de imprensa, não pôde</p><p>comparecer,fuiabordadoaofinaldodebatedaquelanoiteporumsujeitodear</p><p>simultaneamenteastutoesimpático.</p><p>— Li seu livro, Yuri — revelou ele, após apertar-me a mão e me</p><p>cumprimentarpelasintervençõesdaquelanoite.</p><p>—Fostetu?—repliquei,sorrindo.</p><p>Eleriu:</p><p>—Escritoresbrasileirosestãosempreachandoquenãosãolidos.</p><p>— Deve ser por causa do xerox das faculdades e dos e-books piratas —</p><p>retruquei.—Oqueobolsonãovê,ocoraçãonãosente.</p><p>Alto, metido num elegante paletó escuro feito sob medida, em lustrosos</p><p>sapatos Oxford, exibindo um reluzente Cartier dourado no pulso, óculos de</p><p>ClarkKent,ocachecolpostoàla“forca”,talcomoagoraseusa—emvezdeàla</p><p>“estrangulamento”,seéquemeentendem—,essecarabemvestidopareciaum</p><p>dessesfrequentadoresdevernissagesquevemosemfilmesalemãesoufranceses.</p><p>Comisso,querodizerquesetratavadealguémque,adespeitodesuaaparência</p><p>de intelectual, também tinha umquê de empresário de sucesso, e nitidamente</p><p>atraía a atenção feminina circundante.No fundo, ele parecia alguémmontado</p><p>paraaocasião—ouseja,seaquelafosseumareuniãodenavegadores,eleteria</p><p>aparecidoemtrajesdemarinheiroderevistademoda.</p><p>—Tambémacompanhoseublog—tornouele.</p><p>—Você?Penseiqueapenasumpunhadodeuniversitáriosliameublog.</p><p>—Bom,fiqueisabendodessesdebatesporcausadele.</p><p>O sujeito, que se apresentou como Nathan, após tratar por alto de alguns</p><p>temassobreosquaiseuhaviaescritonaquelasemana,talvezparameprovarque</p><p>realmente erameu leitor, ofereceu-me uma carona até aVilaMadalena, onde</p><p>residiaoamigocomquemeuestavahospedado,etambémmeperguntouseeu</p><p>não queria aproveitar os bares da região para beber alguma coisa. Carona e</p><p>drinquesofertadosporalguémquecomproumeulivro?Claroqueaceitei.</p><p>—Suamulhernãoveiocomvocêhoje?—perguntouquandonosdirigimosà</p><p>portadafrente.</p><p>—Não,nãoveio.Eela,infelizmente,nãoéminhamulher.</p><p>—Umalindagarota.Euaviaquiontemànoite.</p><p>Saímos daCasa. Ele tinha umdesses JeepsCherokee blindados, então uma</p><p>maniaentreosendinheiradosparanoicosdeSãoPaulo,pois,apesardepesadose</p><p>debeberemfeitoloucos,emnossorestritomercadoeramosmaisindicadospara</p><p>sobreviver à guerrilha urbana de todos os dias. Lá dentro, no banco de trás,</p><p>muitoslivrosempilhados.</p><p>—Vocêporacasonãoéumeditor…oué?</p><p>—Não,não.—Evendomeudesapontamento involuntário:—Nãoprecisa</p><p>fazeressacara.Vocêlogo,logoteráumbomeditor.Bastaesquecerumpoucoos</p><p>contoseescreverumromance.</p><p>—Ouarranjarumagenteliterário—acrescentei.</p><p>—Umagente,não!Umaagente—eNathansorriu.</p><p>Quando ainda percorríamos a avenida Pacaembu, ele começou a entrar no</p><p>assuntoquerealmentelheinteressava:</p><p>—Yuri,vocêjátrabalhoucomoghost-writer?</p><p>—Nãoe,sinceramente,nuncativeinteresse.Gostodeassumiroqueescrevo.</p><p>Prefiro publicar algo ruim com meu nome a publicar uma obra-prima</p><p>anonimamente.Coisasdoego.</p><p>—Entendo.Masvocênãoseimportariadeaconselharquemnuncaescreveu</p><p>umlivro,nãoé?</p><p>—Claro que não.Mas já o aviso que não tenho essa experiência toda.No</p><p>primeiro dia do Encontro, eu atéme senti bastante inseguro a certa altura da</p><p>minhapalestra:quandomeperguntaramqualeraomeu“método”detrabalho,</p><p>percebiquenuncahaviapensadonisso.Fiqueiumtempomudo,gaguejeieentão</p><p>respondiquefaziatudodeformacompletamenteespontânea.Sónodiaseguinte,</p><p>aorelembraroprocessodeescritadomeuprimeiro livro,decomoplanejarae</p><p>executaracadaconto,équepercebiquetenho,sim,ummétodo.</p><p>Eleestavapensativo,concentradonadireção.Haviaumfortenevoeirosobre</p><p>acidade.Momentosdepois,tornouafalar,eoassuntovoltou-separaotrânsito,</p><p>quenãoestavacausandoproblemasàquelahoradanoite,masqueinfernizavao</p><p>dia a dia paulistano. “A coisa mais inteligente a se fazer é morar perto do</p><p>trabalho”, repetia ele.Eassim,quinzeouvinteminutosdepoisde sairdaCasa</p><p>MáriodeAndrade,chegamosàVilaMadalena.Penseiqueiríamosaumpub—</p><p>Nathan tinha cara de frequentador de pubs —, mas ele escolheu um boteco</p><p>bastante comum da rua Aspicuelta cujo nome não estava visível em parte</p><p>alguma. Escolhemos umamesa à calçada e nos sentamos. Além de nós, havia</p><p>apenasumamesapróximacomoutrostrêssujeitosengravatadose,numaoutra</p><p>mais ao fundo, dentro do bar, umas três jovens acompanhando um casal. Ele</p><p>sugeriuque,deinício,pedíssemoscachaça—enquantoeuaindasupunhaopub,</p><p>imaginara-nosabebericaruísques—,eeuaceitei.</p><p>—Pois é…—começouele, apósviraroprimeirocopinho.—Naverdade,</p><p>nãoestouplanejandoumaficção.Euqueroéescreverumensaio.</p><p>—Entãoéaindamaisfácil—respondi.—Escolhaumassuntodoqualnão</p><p>consigaselivrar,estude-obemefalesinceramentesobreele.</p><p>—Sim,eujáimagineiqueseriaassim.Eporissotrouxecomigotodosaqueles</p><p>livros que estavam no meu escritório. Vou viajar amanhã e quero continuar</p><p>estudando.</p><p>—Eoquequersaberdemim?</p><p>Elesorriu,umtantoembaraçado:</p><p>—Para ser bem sincero com você,meu caro, apesar de gostar damaneira</p><p>como</p><p>àsconclusõeserradas?</p><p>—Você?</p><p>— Eu mesmo. Entre uma pesquisa e outra, costumávamos debater</p><p>rapidamentealgumasideias.Elefingianãomelevarmuitoemconsideração,mas</p><p>vi seus olhos brilhando diversas vezes ao ouvir minhas pequenas e bem</p><p>calculadas observações. Também consegui lhe empurrar algumas obras de</p><p>ocultismobeminteressantes…—seusolhosbrilhavamdeorgulho.—Averdade</p><p>équefoimuitomaisfácilinfluenciarMarxdoqueatuarnosbastidoresparalevar</p><p>Henrique VIII a conhecer Ana Bolena, o que, como se sabe, causou muitos</p><p>problemasaoscatólicosbritânicos…</p><p>— Imagino que seja por isso que você, apesar de parecer nomáximo uns</p><p>cincoanosmaisvelhodoqueeu,tenhameditoquesou“muitojovem”…</p><p>—Claro.Vocêéapenasumacriança.</p><p>—EvocêdeveserumimortaldofilmeHighlander,né?Esperoquenãocorte</p><p>minhacabeça.Juroquenãofaçopartedessetime.Se“sópodehaverum”,vocêjá</p><p>deveseresse“um”.</p><p>Nathansorriu:</p><p>—Estouacostumadocomessastiradas.AtéNerozooucomigo.Hitlerzoou</p><p>comigo. Em seguida vocême perguntará se, paramanter a juventude, sugo o</p><p>sanguedejovensdonzelas.</p><p>—Verdade.Essaseriaminhapróximapergunta.</p><p>Seusorrisosedesvaneceulentamenteeelenadadisse.Limitou-seaacender</p><p>outrocigarroeameobservarcomarpetulante.Pelaprimeiravez,sentiqueseu</p><p>olhar traíaa friezadeumpsicopata.Aquilomeperturbou.Seanteseleparecia</p><p>apenasquerermesacanear,agorapareciarealmenteconvictodoquefalava.Um</p><p>arrepiome percorreu dos pés à cabeça. Quando dei pormim, já estavameio</p><p>encolhido na cadeira, o tronco arqueado, asmãos ocultas sob as coxas. Então</p><p>retirei-asecruzeiosbraços,fingindoquemeucalafrionãoeramaisquefrio.De</p><p>fato, como boa cúmplice, a temperatura caíra aindamais, e o cruzamento da</p><p>AspicueltacomaruaGirassol, logoadiante,haviadesaparecidonaneblina.Ao</p><p>notarmeudesconforto,Nathanvoltouàcarga:</p><p>— Yuri, você nem parece o sujeito que gravou aquela entrevista com a</p><p>padeiraqueafirmaseramestraPórtia.</p><p>—Comovocêsabedisso?Euaindanãoapubliquei.</p><p>— Sou bem informado, meu caro! — e, notando meu pasmo, deu uma</p><p>gostosarisada.</p><p>—Poracasovocêandouconversandocomalguémantesdemeabordarlána</p><p>CasaMáriodeAndrade?</p><p>— Não seja paranoico! — acrescentou, descruzando as pernas. — Eu</p><p>simplesmente li essa informação no seu blog. Você pode não ter publicado a</p><p>entrevista,masavisouqueiaatéAltoParaísoparagravá-la.</p><p>—Bom,achoquepodemospediraconta,nãoé?</p><p>—Claro—eimediatamentefezumgestoparaogarçom,solicitandoaconta.</p><p>Depoisvirou-senovamenteparamim.—Eagoravoudiretoaoponto:omundo</p><p>comooconhecemosiráacabar,meucaro.Bem,aomenossemeuprojetopessoal</p><p>continuar funcionando tão bem. Primeiro será o fim da Cultura Ocidental, e</p><p>mesmo que os globalistas ateus a vençam, ou mesmo a Rússia e seu tosco</p><p>eurasianismo,serãosubstituídosmaistardepelosislâmicos.Oeurasianismonão</p><p>sepreocuparealmentecomaféortodoxa.Paraele,essafééummeiodechegar</p><p>ao poder, e não um fim em si mesma. Nenhum eurasiano, nenhum ateu ou</p><p>agnósticotemaconvicção,aforçaeacoragemdeumhomemdeverdadeirafé.</p><p>O estatismo dos globalistas e dos russos não é nada perante a ideia de um</p><p>califado.Eoislamismo,porincrívelquepareça,seráumafémuitomaisfácilde</p><p>sedestruirqueocristianismo,pois,quandoodeusdeumareligiãonãoépessoal,</p><p>o ser humano tratará naturalmente de lhe atribuir as mais diferentes</p><p>personalidades. Voltaremos ao politeísmo! É sempre assim. E por quê? Ora</p><p>bolas, porque o ser humano é uma pessoa, não sabe se relacionar com seres</p><p>inteligentes de outra forma, a não ser pessoalmente. A Divindade pode ser</p><p>verdadeira,mas,semumapersonalidadequeAexpresseerepresente,ohomem</p><p>torna-seisolado,comoseestivessepresonuminfernohermeticamentefechado.</p><p>Logohaverá osmais diversos grupos lutando entre si, cada umutilizandoum</p><p>atributodivinodiferenteparadefinirapersonalidadedeAlá.Decertamaneira,</p><p>esseconflitojáocorre,masdevidoaquestiúnculasrelacionadasapersonalidades</p><p>humanasquesupostamenteherdaramocalifadodeMaomé,talcomoasdisputas</p><p>entre xiitas e sunitas. Trata-se, enfim, da mesma dinâmica: a ausência das</p><p>personalidades divinas causando conflitos pessoais. E omelhor é que nenhum</p><p>dos grupos islâmicos terá o efeito benéfico da personalidade do Deus cristão,</p><p>nenhumadaspersonalidadesdeAláseráoPai.Anãoserqueseassumacomo</p><p>cristianismo! No fundo, qualquer muçulmano que fale sozinho com Alá, em</p><p>pensamento,foradoshoráriosmarcados,éumcristãosemosaber—esorriu.—</p><p>Falo dessas coisas não comoo crente que fui,mas comoo geômetra que, não</p><p>podendoprovaraveracidadedospostuladosdeEuclides,sabequeageometria</p><p>entraria em colapso sem eles. As pessoas não se dão conta, mas vivem uma</p><p>guerrasantadentrodeseuscorações.ECristoaestáperdendo!Quandoviero</p><p>califado,asmulheresserãonossasescravas,nossaskajiras,eoshomensfracose</p><p>pobres, nossos escravos. Eu estoume lixando para o queMichael pensa sobre</p><p>isso,estoumelixandoparasuasprovidências.Souniilistaapenasporqueseique</p><p>estou condenado, sei que voltarei ao Nada. A sentença para os rebeldes é a</p><p>segundamorte,istoé,amortedaalma.Nãopodereiabandonaresteplanetacom</p><p>vida.Minhaalma será extinta, eu seidisso.Mas, até lá, voudeitar e rolar: vou</p><p>continuarcolocandoasmulherescontraoshomens,oshomenscontraDeus-Pai</p><p>eoOrientecontraoOcidente.Estemundo,nofuturo,seráumabagunçaainda</p><p>maior.Vocêachaqueascoisasjáestãomuitoruins?</p><p>—Bem…Parecemruins,masnãoseisejáforamounãopiores…</p><p>—Umadascoisasmaisdivertidas—continuou,ignorando-me—éobservar</p><p>achegadadosislâmicosaosMundosdasMansões,quevocêscristãoscostumam</p><p>dividir em Inferno e Purgatório. Enfim, ficam todos assombrados quando</p><p>descobremqueCristoéoSenhor!Osofrimentomoralqueatingeos jihadistas</p><p>então é infinitas vezes maior do que a dor que causaram na Terra aos ditos</p><p>“infiéis”—eNathandeuumagargalhadainsana.—Éumapenaqueoateísmo</p><p>não possa vencê-los. Meu prêmio de consolação será então atrasar a vida</p><p>espiritual do planeta levando-o a essa religião que consegue transformar um</p><p>conceitomuitobemacabado—ADivindade—numasituaçãodisfuncional:a</p><p>ausência da Trindade, a ausência das deidades que conectam o homem à</p><p>Divindade Transcendente. Como se humanos fossem capazes de se relacionar</p><p>comnãopessoas…—emepiscounovamente.—Euadoromentirasembaladas</p><p>no papel de presente da verdade. Como não terei uma vida futura fora deste</p><p>planeta,paramimpoucoimportaoqueérealmenteverdadeeoqueémentira.</p><p>Eumecontentoematrapalharedesvirtuaroconceitoquefuncionariamelhor.E</p><p>ocristianismo,palavradehonradeumneoniilista,éamelhor,amaisfuncionale</p><p>a mais benéfica de todas as religiões que conheci. Embora já não acredite na</p><p>concretudeDele,o conceitodePaiCelestial éoúnicocapazde apresentarum</p><p>Deusdepazaoshomens.</p><p>OgarçomtrouxeacontaeNathanrapidamentesacouumenormemaçode</p><p>notasdobolso,pagandoemdinheirovivo—umcomportamentoestranhopara</p><p>alguémque se dizia um empreiteiro rico.Ou, por outro lado, talvez não. Essa</p><p>genteandasempredemãosdadascomgovernoscorruptos,taiscomoonosso,e</p><p>porissosemprepassaadiantedinheironãocontabilizado.</p><p>—Então,amigoescritor,querumacarona?</p><p>—Não, obrigado— respondi.— Só preciso subir dois quarteirões da rua</p><p>Harmonia,aíaolado.Oamigocomquemestou</p><p>hospedadomoraali.</p><p>—Tudobem.Eucompreendo.Esperoque,apesardospesares,nãosechateie</p><p>comigo. Você me ajudou muito. De fato, tenho todas as ideias bem</p><p>hierarquizadasagora.Aprecieimuitosuaatençãoesuasconsiderações.</p><p>Deiumsorrisoamarelo:</p><p>— Eu é que lhe agradeço pela carona, pela bebida e por confiar nosmeus</p><p>ouvidos.</p><p>Ele,pois,quejáestavadepé,apertou-meamãocomenergia,voltouaenrolar</p><p>ocachecolnopescoço,sorriucominesperadasimpatiae,voltando-meascostas,</p><p>caminhouapassoslargosatéoJeepestacionadologonaesquina.Aqueleepílogo</p><p>danossaconversamedeixara tãoalquebradoqueeumalconseguiapensarem</p><p>melevantar.Eraóbvioquesetratavaoudeumloucosurtadooudeumatorde</p><p>pegadinha. Fiquei ali a observá-lo enquanto entrava no carro. De onde tirara</p><p>aquelas informaçõesmalucas e improváveis, tais comoada invençãodo fogo?</p><p>Aquilo era simplesmenteuma enorme—conforme costuma sentenciarminha</p><p>mãe—“enfiaçãodepeidonocordão”, istoé,umesforçode imaginaçãoinútil.</p><p>Eu iapensandonessascoisas, tentandogravarnamemóriaalgunspontosmais</p><p>singularesdaquelediscurso,quandoaconteceu:assimqueNathandeuapartida,</p><p>o carro explodiu!Oclarão,obarulho eodeslocamentode ar foram tão fortes</p><p>quemederrubaramaochão.Oscompanheirosdamesaaolado—apenasnossas</p><p>mesasestavamnacalçada—tambémseestatelaramnoconcreto,aspernaspara</p><p>cima, os olhos arregalados, os dentes arreganhados. Garrafas e copos se</p><p>quebraram. Atordoados, levamos alguns segundos para nos sentar ao chão,</p><p>verificando senossos corpos estavam intactos, se alguémestavaounão ferido.</p><p>Meuouvidozumbia.Osfreguesesdaúnicamesaocupadadentrodobarsaíram</p><p>paraveroquehaviaocorrido.Ronaldovieraatéaporta.</p><p>—Oquefoiisso?!</p><p>—Ocarro…ocarrodoNathan…explodiu!!—e,aoterminardebalbuciar</p><p>essas palavras, finalmente compreendi: os terroristas islâmicos certamente já</p><p>conheciamasdeclaraçõesmalucasdaquelemachistafeminista,mormenteasque</p><p>sereferiamàsalegadascrençaspessoaisdeLúcifer!Éclaroquehaviamdecidido</p><p>darcabodaqueleestranhosujeito.Mas…emSãoPaulo?Eisumacontecimento</p><p>inédito!Noentanto,paraminhasurpresa,Ronaldoapenascomentou:</p><p>—Ah,elesemprefazisso—e,comoquemhaviarecebidoanotíciadeumgol</p><p>numjogodefutebolquenãolheinteressava,voltouparadentrodobar.</p><p>—Mas…comoassim?!—berrei,semobterresposta.—Precisamossocorrer</p><p>ohomem!</p><p>Oengravatadoquenoshaviapedidoumcigarrominutosantes,apósbatera</p><p>poeiradaroupa,aproximou-se:</p><p>—Vocêestábem,meucaro?</p><p>—Estou.Achoqueestou.</p><p>—Nãocaianapegadinhadessesujeito.Éummentirosocontumaz.</p><p>—Aquemserefere?Aodonodobar?</p><p>—Claroquenão.Eumerefiroaoseucompanheirodecopo.</p><p>—Vocêoconhece?</p><p>—Quemnunca ouviu falar dele?— e sorriu demodo enigmático.—Mas</p><p>permitaqueeumeapresente:souodoutorJoãoPintoGrande,advogado.</p><p>—Ah,tábom!EistoaquiéoprogramaTopaTudoporDinheiro,doSílvio</p><p>Santos, né? Já entendi tudo, IvoHolanda— e, colocando uma cadeira de pé,</p><p>volteiamesentar.Precisavaorganizarasideias.</p><p>—Estouacostumadocomessareação—retrucouooutro,sorrindo.—Esses</p><p>são meus amigos, o doutor Roberto Smera, advogado de Santos, e o senhor</p><p>AlexandreFerreira,dePetrópolis.</p><p>Os dois homens, tão espantados quanto eu, me estenderam as mãos em</p><p>cumprimento, e eu as aperteimecanicamente, ainda sem saber se aquilo tudo</p><p>faziaounãopartedealgumobscuroplano.Tudo indicavaquealguémtentava</p><p>mepregarumapeça.</p><p>—Bom,nãoligoproseunome—eudisse.—Masporqueodonodobarnão</p><p>seimportoucomaexplosão?Nathanestámorto!</p><p>OdoutorPintoGrandesorriu:</p><p>—Eosenhorporacasoestávendoalgumdestroço?Restoualgumacoisado</p><p>carro?Umpedaçodelataqueseja?Ondeestáofogo?Ondeestáafumaça?</p><p>Aquelasindagaçõescausaram-metãograndesobressaltoque,levantando-me</p><p>deumpulo,chegueiacorreratéaesquina:precisavavermelhor,aquelaneblina</p><p>poderiaestarocultandoalgumvestígiodoincidente.Umavezlá,nãosabiaoque</p><p>fazercommeuespanto:defatonãohaviaabsolutamentenadadeanormal!Não</p><p>havia ummísero cacode vidro!Oque teria acontecido?Pasmo, voltei ao bar:</p><p>aquelesujeitopareciaterasrespostas.</p><p>—Ué!Cadêo…doutorPinto?—indaguei.</p><p>—OPintoGrandefoimijar—respondeuumsorridentedoutorSmera,oque</p><p>arrancouumagargalhadadotalAlexandreFerreira.</p><p>Aomenosumataldeclaraçãoserviupararetirardasminhascostaspartedo</p><p>pesodaquelaexóticasituação,poistampoucopudeevitarumarisada:</p><p>—Onomedeleéessemesmo?</p><p>—Ésim—respondeuSmera.—Fomoscolegasde faculdade.Ele já sofreu</p><p>muitobullyingporcontadisso.Hoje,jánãoseimportanemumpouco.</p><p>Ficamos os três ali, meio constrangidos, aguardando o retorno do doutor</p><p>Pinto.Nesse entretempo, Ronaldo voltou comuma vassoura e uma pazinha e</p><p>começouarecolheroscacosdoscoposegarrafasquebrados.Alexandrechegou</p><p>apenas ame perguntar se eu prestara atenção ao carro doNathan, se era um</p><p>carrodeverdademesmoouumdessesobjetosdecenadeilusionistas.Respondi</p><p>queera,sim,umcarro,poisviéramosdaCasaMáriodeAndradenele.</p><p>—Quesinistro!—exclamou.</p><p>Assimqueoadvogadodenomeesdrúxuloretornoudobanheiro,disse:</p><p>—Desculpeademora.Vocêstalvezjáosaibam:quandoégrande,precisamos</p><p>de intermináveis chacoalhadas, do contrário fica um restinho ali que depois</p><p>molharáacueca.</p><p>SmeraeAlexandrederamumagostosarisada,maseu,malgradoseuexplícito</p><p>beneplácito,aindanãomesentiaàvontadeparazombardonomedaquelesujeito</p><p>bemdebaixodoseunariz.</p><p>—Por favor,doutor,preciso ir embora.Poderiamedizeroqueafinalvocê</p><p>sabesobreoNathan?Elemefaloucoisasestranhíssimas…</p><p>— Bem — começou ele, puxando uma cadeira para se sentar, ao que foi</p><p>imitadopeloscompanheiros—,emprimeirolugar,precisolhepedirdesculpas,</p><p>senhor…?</p><p>—Yuri.</p><p>—Isso,Yuri.Precisolhepedirdesculpaspoisdefatopermaneciatentoàsua</p><p>conversaquasetodootempo.Nãopudeevitá-lo!Vocêstrataramdetemasque</p><p>mesãocaros.</p><p>—Tudobem,doutor.Issoatémepoupadeexplicaroporquêdeacoisatoda</p><p>meparecertãoassustadora.</p><p>—Bem,meucaro,a intençãodeleé esta!Assustá-lo!Ora, comecemospelo</p><p>nome:Nathan!Éóbvioqueelepretendequevocêdeduzadaíquesetratadeum</p><p>disfarceparaonomeSatã.Comvocê chegando a essa conclusãopor si só, ele</p><p>estarálheconcedendoavaidadedeumachadoimpressionante!MasSatãnunca</p><p>foipríncipedoplanetaTerra;naverdade,nãopassavadeumajudantedeordens</p><p>deLúcifer.</p><p>—Ah,porfavor,doutor!Osenhortambém?</p><p>—Calma,rapaz,estouapenasespeculando.Talvezelenãotenhapensadoem</p><p>nada disso. Talvez ele esteja utilizando esse nome por nenhuma razão</p><p>significativaesejarealmenteoex-príncipeplanetário.</p><p>Todosnós franzimoso cenho aomesmo tempo, encarandoodoutorPinto</p><p>Grandecomgrandeperplexidade.</p><p>—Vocêtádebrincadeira,né,João?—indagouSmera,comumsorrisocheio</p><p>desuspicácia.</p><p>—Ora,porquenão?Emboraalgumascoisassejampoucoprováveis,tudoé</p><p>possível.E,aliás,sabeporquemeaproximeidevocêsdoisepediumcigarro?</p><p>—Porquê?</p><p>— Porque já tinha visto aquele rosto em algum lugar antes. Levei alguns</p><p>minutosparareconhecê-lo.Mediga, senhorYuri, sebementendiporparteda</p><p>suaconversa,vocêéumescritor.Estoucerto?</p><p>—Sim.</p><p>—Poisentão.ViumafotodessesujeitosentadonumcafédaIrlandacomo</p><p>escritorfrancêsMichelHouellebecq.Vocêoconhece?Jáoleu?</p><p>—Denome,claro.LiapenasPartículaselementares.Eleémuitobom…Mas</p><p>temcertezadequeeraoNathannessafoto?</p><p>—Certezaabsoluta,souumbomfisionomista.Mas…enfim.Aquestãoéque,</p><p>umano</p><p>depoisdoartigoquetraziaessafotoserpublicado,Houellebecqlançou</p><p>seu livroSubmissão , aquelequedescreve a vidadeumprofessoruniversitário</p><p>numaFrançaconvertidaaoIslã.Nãoachaumacoincidênciacuriosa?</p><p>—Masondeosenhorviuessafoto?</p><p>—Numblog literário irlandês. Encontrei por acaso, não sei dizer o nome,</p><p>pois não é um site que frequento. O curioso é que eu estava procurando por</p><p>informaçõessobreCaligástia…</p><p>Eujáestavaficandoirritado:</p><p>—Equem,emnomedeDeus,éCaligástia,doutorPinto?</p><p>— O príncipe planetário rebelde! — exclamou, como quem diz uma</p><p>obviedade.—Masoestranhoéque,emboraessapáginatenhasurgidoentreos</p><p>primeirosresultadosdabusca,nãohaviaumaúnicamençãosequeraessenome</p><p>aolongodotexto.</p><p>Eumelevantei:</p><p>— Os senhores me desculpem, mas já estou cansado dessa brincadeira,</p><p>precisoiragora.</p><p>— Tenha calma, seu Yuri. Sente-se, por favor… Vamos, por favor… Isso.</p><p>Deixe-me explicar como vejo o fato.MinhaNavalha deOccamnão sai por aí</p><p>afirmandoqueaexplicaçãomaisbirutaéqueéacorreta.Sóestoutentandolhe</p><p>dizer o seguinte: esse sujeito certamente é rico, certamente está tentando</p><p>manipularaspessoas,e—atenção—pessoasinfluentes!Osenhornãohádeser</p><p>nenhumHouellebecq,docontráriojáteríamosouvidofalardevocê…Nãoquero</p><p>ofendê-locomisso.</p><p>—Nãomeofendeu.</p><p>—Mas,enfim,eledeveterpercebidoalgumpotencialnoseutrabalhoeagora</p><p>está tentando enfiarminhocas na sua cabeça. Estará ele preparando o terreno</p><p>paraoislamismo?OsenhorhádeconvirqueoromancedosenhorHouellebecq</p><p>nãofazcríticasaosmuçulmanos.</p><p>—Nãoseidizer.Aindanãooli.</p><p>— Bom, eu estou lhe dizendo: Submissão não ataca o Islã. Do contrário,</p><p>Houellebecqjáestariavivendonumacaverna.</p><p>Todossorriram,masaquelaasserçãoeratãoverdadeiraquenenhumsorriso</p><p>seconverteuemrisada.</p><p>—TampoucoestoudizendoqueesseNathansejaodiabo.Masatenção:nada</p><p>émaisútilaodiabodoqueacrençadequeelenãoexiste!</p><p>—Queméeleentão,doutor?—perguntouAlexandre.</p><p>Doutor Pinto Grande retirou o cigarro eletrônico do bolso do paletó,</p><p>arrancouumaespessanuvemdevapordelee,apóspensarporalgunssegundos,</p><p>disse:</p><p>—VocêsjáouviramfalardeLiHongzhi?</p><p>—Não— responderam em uníssono os dois amigos do doutor.Quanto a</p><p>mim, já ouvira falar do sujeito, um suposto restaurador do budismo original,</p><p>líder da seita Falun Gong, perseguida pelo governo comunista chinês. Mas</p><p>preferinãodizernada.</p><p>— Acontece que, em um de seus livros, o senhor Hongzhi afirma que o</p><p>famosoilusionistaDavidCopperfieldnãousanenhumtruquepararealizarseus</p><p>shows de mágica. Segundo o mestre budista, Copperfield é um verdadeiro</p><p>alquimista,capazdemanipularamatériacomobementender.</p><p>Agoranãoconseguificarcalado:</p><p>— E o senhor está tentando nos dizer que Nathan é um verdadeiro</p><p>alquimista?</p><p>—Não.EstouapenasdizendoqueninguémprecisaserJesusparanosdara</p><p>impressãodequerealizamilagres.OpróprioFilhoCriadornosdeutalaviso,e,</p><p>por isso, não se sentia muito à vontade atraindo as pessoas com aquilo que</p><p>poderia ser visto comomera prestidigitação. Qualquer SimãoMago pode nos</p><p>enganarnesteponto.DavidCopperfieldéapenasumilusionistaquefazusode</p><p>maquinismosedegeringonçaseletrônicas?Ouérealmenteumalquimista?Não</p><p>sei, mas, se ele não entender bulhufas de alquimia, ainda assim enganou até</p><p>mesmoumrespeitadolíderbudista.</p><p>—Osenhorfala,fala,falaenãochegaalugaralgum,doutor—retruquei.—</p><p>Tudoindicaqueestámaisperdidodoqueeu.</p><p>—MeucaroYuri,meuúnicointuitoérepetiroquejálhedisse:cuidadocom</p><p>as mentiras desse homem! Não as espalhe por aí. Não se deixe impressionar</p><p>apenasporqueelefezoprópriocarrodesaparecernumpassedemágica.David</p><p>Copperfieldjáfezdesapareceratéumavião!JáatravessouaMuralhadaChina!</p><p>Já se teletransportou do continente até o Havaí! Nada disso significa que</p><p>devemos dar atenção às suas concepções religiosas ou políticas. A cristandade</p><p>nãoestáperdida.</p><p>—Ecomovousaberquaisdaquelas informações sãomentirasequaisnão?</p><p>Tudo bem, aquele papo sobre quem produziu fogo pela primeira vez e, ainda</p><p>maisabsurda,aquelaconversa fiadasobreacrençadeLúcifersersemelhanteà</p><p>dosmuçulmanos,claro,sãobobagens,mase…</p><p>— Não, não, Yuri — atalhou-me o doutor Pinto Grande. — Essas</p><p>informaçõessãoverídicas.</p><p>Nóstrêsvoltamosaolhá-locompasmo,mudos.</p><p>— Eume refiro— prosseguiu o doutor, impassível— a essas insinuações</p><p>sobre a identidade dele. É um empreiteiro?Duvidomuito.O diabo? Bom, ele</p><p>deve terenroladoaMadonnaeoHouellebecqcomasmesmaspistas falsas.Se</p><p>bem que Houellebecq, se lhe deu ouvidos, assim o fez porque gostou das</p><p>históriasqueouviu.Esseautorfrancêsnãoéumhomemfácildeserenganado.</p><p>Aliás,outragrandementira,claro,éessepapodequeNathanestejaescrevendo</p><p>umlivro.</p><p>— Então são essas as únicas mentiras? Que Nathan esteja escrevendo um</p><p>ensaioequeelesejaumempreiteiroeodiabo?</p><p>— O diabo não é alguém, meu caro. O diabo é um papel que todos nós</p><p>corremos o risco de interpretar, daí a necessidade de orar e de vigiar. Lúcifer,</p><p>Satã, Caligástia e todos os demais demônios não eram senão anjos ou seres</p><p>semelhantesaanjos.QuandoserebelaramcontraCristo,assumiramopapeldo</p><p>diabo, o papel do inimigo. No final das contas, tornar-se um diabo é como</p><p>tornar-sementalmentedoente,mascomapiordasdoenças:adoençadarebelião</p><p>obstinadacontraDeus.Éaloucuracósmica.EsseNathanfaloumuitasverdades,</p><p>masasenlameoucommuitasmentiras.Tenhacuidado.Sigaoconselhodesão</p><p>Paulo:fiqueapenascomoqueébom.</p><p>—João,nósprecisamosir—disseodoutorSmera,olhandoahoranocelular.</p><p>DoutorPintosorriu:</p><p>—É verdade,me desculpe, Roberto. Eume entusiasmomais do que devia</p><p>com esses assuntos — e olhando para mim: — Meu caríssimo Yuri, preciso</p><p>deixarmeus amigos em seus respectivos hotéis.Viajam logo pelamanhã.Não</p><p>precisodizerquefoiumprazerconhecê-lo.Veja,guardemeucartão.E,quando</p><p>tiveralgumtempolivre,passelánomeuescritório.Tenhoboashistóriasparalhe</p><p>contar.Nãosouumescritor,nãoousariasê-lo.Masachoquevocêpoderiafazer</p><p>umbomusodelas.</p><p>Os três se levantaram,apertaramminhamão—odoutorPintoGrandeme</p><p>deumaisumadaquelaspiscadelasirônicas—esaíramemdireçãoaoCemitério</p><p>SãoPaulo,desaparecendononevoeiro.Eu,meiocambaleante,acabeçacheiade</p><p>minhocasfantásticas,saípelaAspicueltaemdireçãoàruaHarmonia.Iriachegar</p><p>ao apartamento do amigo Rodrigo Fiume e ele que me desculpasse, porque</p><p>pretendia encher de água quente aquela convidativa banheira e passar toda a</p><p>madrugadaembanho-maria.Precisavacozinharasestranhasimpressõesdaquela</p><p>noite.</p><p>OPromptdeComandoouAsábiaingenuidade</p><p>doDr.JoãoPintoGrandeDoutorPintopediu</p><p>licençaparaligarseucigarroeletrônico,umDrip</p><p>BoxKanger,esesentou.Indicouacadeiracoma</p><p>mão,aguardoualgunslongossegundos,enada.O</p><p>rapazmantinha-sedepé,dooutroladodamesa,</p><p>visivelmentedesconfortável:eraóbvioquejamais</p><p>estiveradiantedeumadvogadonacondiçãode</p><p>cliente.</p><p>—Osenhornãovaisesentar?Porfavor,fiqueàvontade.</p><p>Roberto, um sorriso amarelo nos lábios, finalmente se sentou. Então olhou</p><p>emtorno,admiradocomosquadros,comoslivrosnaestante,comoaquáriode</p><p>peixesdomar.Deviaestarpensandoemquantoiriacustaraquilo.</p><p>—Osenhordiziaquepretendeprocessar seus colegasde trabalho.Nãovai</p><p>medizeroporquê?</p><p>—Racismo,doutor.</p><p>— Racismo. Certo, certo. Você</p><p>deve estar se sentindo prejudicado na sua</p><p>posição,imagino.Épreteridonaspromoções?</p><p>—Preterido?</p><p>—Sim,vocêcertamentenãorecebeadevidaatençãoereconhecimentopor</p><p>seutrabalho.</p><p>Ooutropigarreou:</p><p>—Nãoéisso,doutor.Meuchefeeodonodaempresatambémsãonegros.O</p><p>problema são meus colegas. Fazem bullying comigo o tempo todo, me</p><p>perseguem,zoamcomigo.</p><p>—Vocêjálevouoproblemaatéseusuperior?</p><p>—Já.Eledissequeeutenhodeparardesorrirquandomexemcomigo,que</p><p>tenhodedizerquenãogostoepronto.</p><p>—Evocêjáfezisso?</p><p>—Nãoconsigo.Nahora,semquerer,eusorrio,seiqueestãobrincando.Mas</p><p>depois,emcasa,ficorelembrando,remoendo.Eaípercebooquantosãoracistas,</p><p>intolerantesedesrespeitosos.</p><p>—Bom,vocêprecisasaberque iniciarumprocessoé,porassimdizer,uma</p><p>primeirainstânciaapenasnosentidolegal.Emtermosdeconvivênciasocial,éna</p><p>verdadeumaúltimainstância,praládagotad’água.</p><p>Orapazseaprumounacadeirae,talvezsobinfluxodeadrenalina,desatoua</p><p>falarrápidaedestemidamente:—Euseioqueosenhorestá insinuando.Acha</p><p>que devo conversar com todos eles emparticular, ou talvez com todos juntos.</p><p>Resolvertudonogogó,tipo,“éconversandoqueagenteseentende”.Achaque</p><p>euprecisosercompreensivoetolerantecomoelesjamaisconseguiriamser.Mas</p><p>oproblemaéqueeutambémseiqueessaatitudenãolevaanada,nãovalenada.</p><p>Meus colegas são pessoas ignorantes, toscas e, se resolveremme poupar, vão</p><p>acabar indo enchero sacodeoutrapessoa.Eu acreditoque só irãoparar com</p><p>essa palhaçada se algo sério acontecer com eles. Acho que merecem ser</p><p>processadospelobemdeoutraspessoas,deoutrosnegrosquejánãoaguentam</p><p>maissermotivodechacota.</p><p>DoutorPinto franziu o cenho, pensativo.Então, pegandoo iPad, abriuum</p><p>aplicativoparafazerasanotações.</p><p>—Ok,senhorRoberto.Vamoscomeçardocomeço.Oqueéqueelesfazem</p><p>paraperseguirvocê?</p><p>—Elesmechamamotempotodoporumnomequeodeio.</p><p>—Sóporumnome?Ouporváriosnomes?Apelidostalvez?</p><p>—Sóporum.Querdizer, temumoutro também.Edepois riemdaminha</p><p>caraminutosafio.Ficamnomeupéodiainteiro,àsvezesusamessesnomesaté</p><p>diantedosclientes.</p><p>—Possosaberquenomessãoesses?</p><p>—Pode,sim:PromptdeComandoeCMD.</p><p>—Como?Desculpe,eu…</p><p>—PromptdeComando.</p><p>Oadvogado,confuso, ficouemsilênciopormeiominuto.Entãocomeçoua</p><p>desatarraxarabateriadocigarroe,aindacabisbaixo,atrocouporoutra.</p><p>—Osenhornãovaidizernada,doutor?</p><p>—Desculpe,senhorRoberto.Équenãofaçoamaismínimaideiadoqueseja</p><p>um…PromptdeComando?Cê-eme-dê?Éuma sigla?Temalgo a ver comas</p><p>ForçasArmadas?</p><p>Orapazriu:</p><p>—MeuDeus,osenhornãosabeoqueéumPromptdeComando?</p><p>—Porquê?Osenhorvaifazerbullyingdaminhaignorância?</p><p>Orapazfechouacarainstantaneamente.</p><p>—Bom—começouele,esforçando-separanãoiniciarumatrito—,odoutor</p><p>pode por favor abrir esse laptop aí? Vou lhemostrar o que é um Prompt de</p><p>Comando.</p><p>—Entãotemavercomcomputadores?</p><p>—Sim.</p><p>— Ah, compreendo. Apesar do cigarro eletrônico e deste iPad, ambos</p><p>presentes daminha esposa, sou um analfabeto tecnológico. Sei apenas ligar as</p><p>coisaseusarsuasfunçõesmaisóbviasebanais.</p><p>—Euseicomoé,doutor.Lánaempresa,nós trabalhamoscomsistemasde</p><p>informação,e,porisso,seioquantoaspessoas,apesardeasusarem,realmente</p><p>desconhecemofuncionamentodasmáquinas.Mas,porfavor,ligueoseulaptop.</p><p>Émaisfácilmostrardoqueexplicar.</p><p>DoutorPintoabriu,pois,atampadocomputadoreacionouobotão.Graçasà</p><p>memóriaSSD,daqualeletampoucoimaginariaarazãodeser,amáquinaligou</p><p>emmenosdequinzesegundos.</p><p>— Agora, por favor, aperte essa tecla com o símbolo do Windows e, em</p><p>seguida,aletra“r”,de“run”.</p><p>—Executar?Deinglêseuentendo.</p><p>—Isso.</p><p>—Pronto.Eagora?</p><p>—Digite“cmd”nesseespaçoaíeaperteEnter.</p><p>—Hum.Ok.</p><p>Umapequenajanelaseabriunomeiodatela.DoutorPintoficouaguardando</p><p>novasinstruções,quenãovieram.</p><p>—Oquefaçoagora?</p><p>Ooutroseirritou:</p><p>—Osenhornãopercebeu,doutor?</p><p>—Percebioquê,seuRoberto?</p><p>—EsseéoPromptdeComando.</p><p>—Oquê?Essajanelinha?</p><p>—É!</p><p>Doutor Pinto franziu os lábios:— Hmmm.Mas… e daí? O que tem essa</p><p>janelinha?</p><p>—Osenhorporacasoestázoandocomaminhacara?</p><p>Doutor Pinto encarou-o cheio de espanto:— Eu?Debochando do senhor?</p><p>Porqueestaria?Nãooentendo!</p><p>—Doutor,essajanelaépreta!Pretinhadasilva!</p><p>—E…?</p><p>—Comoassim“e…”?Elesestãomechamandodepreto,uê!</p><p>—Eosenhorporacasoépreto?</p><p>—Claroquenão!Soudaraçanegra!</p><p>— Então por que está tão irritado? É como se alguém me chamasse de</p><p>parafusoeissomechateasse.Oqueeutenhoquevercomumparafuso?Nada.</p><p>—Osenhorestátirandocomaminhacara!—explodiuorapaz.</p><p>DoutorPintoabriuosbraços,aspalmasdasmãosvoltadasparacima:—Juro</p><p>que não! — e realmente parecia surpreso. — Ora, eu sei que antigamente as</p><p>pessoas da raça negra odiavam ser chamadas de “negras” e preferiamo termo</p><p>“preto”,equehoje, sei láporqual razão,ocorre justamenteocontrário.Mase</p><p>daí?Porqueosenhorsechateiacomisso?</p><p>—Elesriemdemim!</p><p>—Eosenhorsorridevolta.</p><p>—Depuronervosismo!—edeuumtapanamesa.—Caramba…Osenhor</p><p>nãoviucomoquiseramarrancarapeledoPeléquandoele…</p><p>—ApeledoPelé…Parecenomededocumentário.</p><p>—Doutor!Osenhorestázoandocomi…</p><p>—Nãoestou, seuRoberto!Nãomesmo!Tenhacalma.Por favor,voltea se</p><p>sentareseacalme.</p><p>O rapaz, mais abatido que irritado, refestelou-se na cadeira. E então,</p><p>resfolegando, pediu um copo d’água, que a secretária, acionada pelo</p><p>intercomunicador,apressou-seemfornecer.</p><p>—Doutor—voltouafalarumminutodepois,maiscalmo—,comoeudizia,</p><p>osenhornãoviuoquefizeramcomoPeléquandoeledissequedavadeombros</p><p>quando sofria racismo no futebol? Acabaram com ele! A gente não pode ser</p><p>condizentecomessascoisas.</p><p>—Desculpe,nãopassoosdiasnasredessociaisounaTV,nãoseiexatamente</p><p>o que fizeram com o Pelé ou o que disseram dele. Sei apenas que estavam</p><p>zangadoscomele.Masseimuitobemoqueelefezconsigomesmo:éoesportista</p><p>maisfamosodetodosostemposeumcararico,desucesso.</p><p>—Issomostraapenasoquãoegoís…</p><p>—SeuRoberto—interrompeu-odoutorPinto—,deixe-mecontar-lheduas</p><p>histórias.Posso?</p><p>Roberto,apesardevisivelmentecontrariado,assentiucomacabeça.</p><p>— Seja sincero, seu Roberto. Você não acha engraçado um advogado cujo</p><p>sobrenome seja “Pinto Grande”? Veja só! O senhor sorriu. Claro que acha</p><p>cômico,umtalpalavrão,grafadonafachadadomeuescritório.Talveztenhaaté</p><p>tidodúvidasaovirmeprocurar.Deve terachadoquenãome levoa sério.Ou</p><p>quesoutãoboboquenemperceboapiadaembutidanisso.Ou,pelocontrário,</p><p>que sou tão segurodemimmesmoquenãome incomodo…Pouco importao</p><p>quepensou.Ofatoéqueosenhorvemmechamandodedoutor,doutor,doutor,</p><p>mas nem sei se, em algummomento, dissemeu nome: doutor Pinto. Quanto</p><p>mais meu nome completo: doutor João Pinto Grande. E Pinto Grande é</p><p>realmentemeusobrenome!</p><p>Roberto, sem suportar a pressão interna, deuumaprofunda risada.Doutor</p><p>Pintoriucomele.</p><p>—Percebe?Poisentão.Osenhortemideiadaquantidadedeassédiomoral</p><p>que sofri ao longo da vida? Minha infância e minha adolescência, até minha</p><p>juventude, foram verdadeiros infernos. Cheguei a odiar meus pais por conta</p><p>disso.Ironicamente,oGrandeédomeupai,eoPintoéqueédaminhamãe.</p><p>O rapaz caiu na gargalhada. Doutor Pinto, um ar irônico no rosto, altivo,</p><p>aguardou-opacienteecompreensivamente.</p><p>—Desculpe,doutor—disseRoberto,afinal.—Nãoconseguimesegurar.</p><p>— Não tem o menor problema. E nem é porque “estou acostumado”. É</p><p>porque, hoje em dia, adoro meu nome. Enquanto ainda somos imaturos,</p><p>sofremos com toda sorte de acidentes, de eventualidades, de contingências, de</p><p>questõessecundárias.Amaturidadesóvemaofimdemuitareflexão,demuita</p><p>meditação, de muita aceitação. Principalmente da aceitação de nós mesmos.</p><p>Quando eu era um jovem imaturo,meunome sempre dificultou, entre outras</p><p>coisas, arranjar uma namorada. Quando comecei a amadurecer, ele se tornou</p><p>meumaioraliadonessequesito!Omaior sucesso!Masestoumeperdendoem</p><p>circunlóquios.Deixe-mecontar-lheaprimeirahistória.Quandoeutinha15anos</p><p>deidade,eupenseiemmematar.</p><p>Robertoarregalouosolhoseficouaindamaisatento.</p><p>—Euestudavanumcolégiocatólico—continuouodoutor—etinhacolegas</p><p>realmente infernais. Era estranho: os padres, ao contrário do que dizem, eram</p><p>demasiado tolerantes. Na minha época, é verdade, já não havia reguadas,</p><p>palmatóriasou joelhosnomilho.Apenasaconselhamentosdosmais educados.</p><p>Eu nunca atinava com o porquê de meus perseguidores não sofrerem penas</p><p>maiores.Nuncareceberamsequerumasuspensão!Claro,eunãoeradedo-duro,</p><p>mas esperava inutilmente que as testemunhas domeu contínuo assédiomoral</p><p>tomassemmeupartido.</p><p>—Ninguémsabeoquevaidentrodagente.</p><p>—Exato!Alémdenósmesmos,nenhumoutrohumanoestáaquidentro—e</p><p>doutorPintoapontouoprópriocoração.—Mas,enfim,voltemosaomeuquase</p><p>suicídio…Bom,nosegundoanocolegial,veioestudarnaminhasalaumsujeito</p><p>brutamontesdosmaisexpansivos,dominadoreseterritoriais.Eraotípicomacho</p><p>alfa que precisava impor a qualquer custo o seu poderio, humilhar osmachos</p><p>mais fracos e conquistar o resto do bando. Ele não fazia isso pormal, percebi</p><p>meses mais tarde, quando então nos tornamos amigos. No fundo, era</p><p>praticamente uma imposição da natureza dele, à qual, com muito custo, ele</p><p>finalmenteaprendeuadizer“não”.Tornar-sehomem,emgeral,éumaprendera</p><p>dizer não à nossa animalidade, à nossa natureza, e não o contrário, como os</p><p>hippies pensavam. Mas compreenda: esse dizer não… não é um “negar</p><p>negativo”… é, sim, um “negar positivo”, um aceitar e um driblar, um ouvir e</p><p>entender, mas discordar. No final das contas, você acaba percebendo que</p><p>acontecemcoisasassimeassadocomnossocorpo,comnossamente,quemuitos</p><p>impulsosseimpõem,mas,conscienciosamente,temdedarpassagemapenasao</p><p>quenoslevaaobom,aobeloeaojusto.Atudooquenãopresta,seubomsenso,</p><p>queéomaiscomumdossensos,devedizer“não!”.</p><p>—Entendo.</p><p>—Poisbem.Umdia,euestavanafiladacantinaeessesujeitoveioportrás</p><p>demim,colocouumamãodecadaladodosmeusombrose,comodirei?…ele</p><p>me“masturbou”!Masentreaspas!Querodizer,semencostaremmimsenãoas</p><p>mãos,eleficoufriccionandomeusbraçosparacimaeparabaixo,comosemeu</p><p>tronco fosse um corpo cavernoso e minha cabeça, a glande de um pênis.</p><p>Enquantoofazia,berrava:“Eaí,Pintããão?!”Emvolta,todoscomeçaramarirea</p><p>gritar “Pintão! Pintão!”. Tudo parecia ainda mais engraçado porque eu era</p><p>baixinho,muitomagroemeiocabeçudo.Sabecomoé,ocontrastesemprecausa</p><p>frissonnos espectadores do que quer que seja.Naquelemomentohumilhante,</p><p>minha única reação foi fugir da fila e correr para o banheiro. Chorei durante</p><p>todo o intervalo, dentro de um dos reservados, e ninguém foi falar comigo,</p><p>ninguémfoimeconsolar.Ninguém!EueraumPintoGrandesolitário.</p><p>Robertosorriu:</p><p>—Devetersidoduro.</p><p>DoutorPintosorriudevolta:—Sóquandoeumeexcito.</p><p>Riramjuntos.</p><p>—Aolongodaquelasemana—prosseguiuodoutor—essecarame…hum...</p><p>me“cumprimentou”domesmojeitotodasasvezesquemeencontrounasfilas,</p><p>nos corredores, dentro da sala, na escada, na calçada. Sim, para ele era um</p><p>cumprimento. E dosmais divertidos! Era seu jeito de dizer “oi, magricela do</p><p>nomeridículo”.Equemestivesseporpertosempreriademim,apontando-meo</p><p>dedo.Éóbvioque fiquei famosonocolégio,populardapiormaneira.Naquela</p><p>semanadefevereiro,eusóprocuravaassombras,estavasempremeescondendo</p><p>atrásdascolunas,dasesquinasdosprédios,dasmoitas,dasárvores.Foihorrível.</p><p>Já passara a infância toda fugindo do meu nome e agora enfrentava aquilo.</p><p>Chegueiinclusivealevarumcaniveteparaocolégionasexta-feirae,quandoele</p><p>memasturbou-entre-aspasdenovo, antesdaprimeira aula, fiquei apertando a</p><p>lâminadentrodobolso,commedoedesejodeusá-la.Masnãoausei,oquese</p><p>mostrouaindamaishumilhanteparamim,poismesentiomaisvildoscovardes.</p><p>No sábado, escrevi uma cartade suicídio epassei todoodia comuma latade</p><p>venenonoquarto,umvenenoqueminhamãeusavaparaborrifarasplantasdo</p><p>jardim.Ficavaalternandoosolhosentrealataeocopo,ocopoealata.Cheguei</p><p>aescreverqueaculpadaminhamorteeradosmeuspais,porteremmecolocado</p><p>umnometãoburlescoeabsurdo.E,obviamente,nadafiz.Sobreviviaofinalde</p><p>semana. Na segunda-feira, voltei ao colégio como um condenado à forca,</p><p>resignado. Eu já havia sofrido muito graças ao meu nome, mas aquele gesto</p><p>estúpido,bruto,daquelecaraenorme,erademaisparamim,ofimdapicada.A</p><p>humilhaçãomeconsumia.Mas…—edoutorPintofezumapausa.</p><p>—Mas…?</p><p>—Masumacoisaesquisitaaconteceu.Inesperada.Comminharesignaçãoe</p><p>desamparo, eu parei de prestar atenção aos meus temores e receios, parei de</p><p>olharparadentro,efiqueimaisligado,maisatentoaomundo.Estavatãocerto</p><p>dequetudoserepetiriaquenemsequermeimportavamais.Semsaber,euestava</p><p>pronto para o que desse e viesse. Na verdade, foi minha primeira disposição</p><p>dessetipo,aqualeuacabariaporperdererecuperarmuitasemuitasvezes,até</p><p>finalmenteconquistá-laintegralmentenamaturidade.</p><p>—Resumindo:osenhorligouofoda-se.</p><p>—Maisoumenosisso.Um“foda-se”acompanhadoporumamaioratenção</p><p>às coisas, uma contemplação, que me remetia à primeira infância. Sabe, né,</p><p>aquelaatençãocheiadepureza.Bastantesemelhanteàatitudedeumlutadorde</p><p>arte marcial que, não podendo comparar o momento exato da luta ao</p><p>treinamento prévio, não tendo tempo para rememorar teorias, porque isso o</p><p>distrairia,temapenasdereagirconvenientementeàsituaçãoreal.</p><p>—Osenhordeuumaporradanocara?</p><p>—Não,nadadisso.Eumeentregueiaomomento.Euestavanocorredorque</p><p>dava acesso àminha sala, e, de repente, o sujeitome segurou por trás. E, isso</p><p>mesmo, me masturbou-entre-aspas pela milésima vez! Em volta, formou-se o</p><p>públicodesempre.Elegritava:“Eaí,Pintãããão?!”Entãoaconteceu.</p><p>—Aconteceuoquê?</p><p>—Semdarpormim,limpeiagargantaedeiumagrossacusparada.</p><p>—Nele?</p><p>—Não,eleestavaatrásdemim,cuspiparaafrente.</p><p>Robertofranziuocenhoemeditouporalgunssegundos.</p><p>—Nãoentendi.</p><p>—Tudobem,eutambémnãoentendideprimeiraotalPromptdeComando</p><p>— e o doutor sorriu.— Seu Roberto, o senhor sabe o que ocorre ao final da</p><p>masturbação,nãosabe?</p><p>O outro arregalou os olhos, compreendendo: — Ah, entendi! O senhor</p><p>gozou-entre-aspas?</p><p>—Exato.Etodoscaíramnamaisépicadasgargalhadas,percebendoqueeu</p><p>finalmenteaderiraàbrincadeira.Eomelhor:meuamigobrutamontes,apesarde</p><p>também ter rido, ficou nitidamente decepcionado, visto que eu superara sua</p><p>piada. Depois disso, ele repetiu a cena apenas mais uma vez— e eu voltei a</p><p>cuspir. Ninguém mais se divertiu com a coisa. Era uma bobagem já batida,</p><p>ultrapassada.Eelefinalmenteparoucomaquilo.</p><p>—Etodospararamdechamá-lodePintão.</p><p>—Não,isso</p><p>continuouatéafaculdade—eodoutorsorriu,divertido.—Mas,</p><p>na escola, fiquei com fama de ser alguém engraçado e inteligente, coisas que</p><p>sempreatraemasmulheres.Tudoporque,emvezdemerefugiardentrodemim</p><p>mesmo, euaginaquela situaçãovendoa cena inteira, enãoapenas sofrendoo</p><p>meuprópriopapel.Deixeideserapenasumpersonagemecompartilheiaautoria</p><p>dapeça.</p><p>O rapaz coçoua cabeça,pensativo.Tamborilouosdedosnamesa.Por fim,</p><p>disse:—Bom,nãoseiexatamentecomoeupoderiaaplicarissoaomeucaso…</p><p>—SeuRoberto, antes de as pessoas perderem o bom senso, elas perdem o</p><p>senso de humor. É sempre assim. Nós vivemos uma época complicada,</p><p>revolucionária,cheiadegentequetentanegar,nãoosaspectosnocivosdanossa</p><p>animalidade intrínseca,mas a própria natureza humana.Umdia, nosso corpo</p><p>morrerá e não sobrará senão nossa humanidade. Nossa animalidade ficará na</p><p>cova.</p><p>—Hum.</p><p>—Oquemelevaàminhasegundahistória.Aindaquerouvi-la?</p><p>—Sim,porfavor.</p><p>—SeuRoberto, eu compartilho de certas crenças religiosas bastante, como</p><p>dizer?…controversas?Sim,bastantecontroversas.Soucristão,masfaçopartede</p><p>umalinhaminoritária…Bem,issonãoimporta.Oquerealmenteinteressaé:por</p><p>queDeus,seéqueosenhorcrêemDeus—senãocrê,pensedeformahipotética</p><p>—,porqueDeuscriouas raçasdecornaTerra?Oumelhor,porqueEle teria</p><p>permitido tal coisa? Eu me refiro a todas as raças de cor: branca, amarela,</p><p>vermelha,negraetc.</p><p>—Nãofaçoamenorideia.</p><p>—Osenhorachaqueomundoseriamelhorsenãohouvessediferençasde</p><p>raça?</p><p>—Ah,doutor, certezaque sim.Se todos semisturassem, se fôssemos todos</p><p>mestiços,ninguémiriabrigarporcausadisso.</p><p>Doutor Pinto deu uma longa tragada no cigarro eletrônico. Logo emitiu</p><p>grandes volutas de vapor de propilenoglicol e glicerina vegetal. Ambos</p><p>observaram aquela pseudofumaça por alguns momentos. Vendo que o rapaz</p><p>permaneciaatento,doutorPintoprosseguiu:—SeuRoberto,osensocomuméa</p><p>média da sabedoria de uma sociedade. É o mais confiável dos sentidos, dos</p><p>sensos.Masnemsempreestácerto.Nemsempreseconfundecomoverdadeiro</p><p>bomsenso,emboratenhaocostumedeconfundir-secomelee,nofundo,nasça</p><p>dele.Como jádisse, é tristequeo sensocomumeobomsensoestejamsendo</p><p>solapadospelasideologiasebesteirasculturaisdanossaépoca.Mas,naverdade,</p><p>o senso comum é uma bagagem levada de geração em geração, é resultado da</p><p>experiência coletiva, uma bagagem de valores e ideias que deram certo, que</p><p>costumamaindadarcertoequecertamente, emsuamaioria, aindavalerãono</p><p>futuro.Jáobomsensonãoéumabagagem:éofarejardoviajanteatento.</p><p>—Certo.</p><p>—Épraticamentesensocomumofatodeque,setivesseexistidoumaúnica</p><p>raçanaTerra,doinícioatéagora, jamaisteríamosasguerraseconflitosraciais</p><p>que temoshoje.Mas a verdade éo exatoopostodisso: sehouvesseumaúnica</p><p>raçadecornestemundo,oserhumanoteriaentradoemextinçãohámaisde900</p><p>milanos.</p><p>—Nãovejooporquê.</p><p>—AespéciedehominídeosconhecidahojecomoHomohabilisnãoeraainda</p><p>propriamentehumana.Eramconscientestaiscomoosanimaissãoconscientes,e</p><p>istosignifica:nãoeramautoconscientes.Sabiamdecertascoisas—oquecomer,</p><p>o quenão comer, quando fugir, quando lutar, o que era chuva, noite ou sol e</p><p>assimpordiante—,masnãosabiamquesabiam.Tinhamconsciênciadevários</p><p>fenômenosdomundo,masnão tinham,enfim, consciênciade si.O fenômeno</p><p>“eu”lheseradesconhecido.Entende?</p><p>—Sim.</p><p>—FoideumcasaldehominídeosHomohabilisquenasceuoprimeirocasalde</p><p>gêmeos da espécie Homo erectus . Esse casal fugiu da convivência de seus</p><p>ancestrais animais — eram muito maltratados por eles — e deram origem à</p><p>primeira espécie verdadeiramente humana: eles sabiam que sabiam,</p><p>desenvolveram uma linguagem verbal primitiva e, o que é o mais humano,</p><p>fizeramusode seu livre-arbítrio,poisum fragmentodeDeuspassouahabitar</p><p>suasmentes.Elestomaramdecisõese,graçasaeles,estamosaquiagora.</p><p>—VocêserefereaAdãoeEva.</p><p>—Não,AdãoeEvavieramparacámilharesdeanosdepois.</p><p>Ooutrofezumacareta:—Nossa,issoestámuitoconfusoenãoseiaondeo</p><p>senhorquerchegar.</p><p>— Calma. Você não precisa acreditar em mim. Entenda tudo isso apenas</p><p>como hipótese, como mais uma possibilidade. Ora, os cientistas de hoje não</p><p>sabem exatamente o que se passou. O que interessa para nossa discussão é o</p><p>seguinte:osdescendentesdesseprimeirocasal,quandocentenasdeanosdepois</p><p>já chegavam aos milhares, iniciaram lutas tremendas e encarniçadas, quase</p><p>levando à extinção a primeira espécie verdadeiramente autoconsciente. Foram</p><p>lutas por poder, por comida, por inveja, por território, por egoísmo, por</p><p>mulheres,todasessascoisasquemotivamosmaisbaixosinstintosdoshomens.</p><p>—Compreensível.</p><p>—Nessaépoca,ninguémmaisconfiavaemninguém,seusascendentesmais</p><p>antigos, que os fizeramparentesnopassado, já haviammorrido, suamemória</p><p>estavaperdida,etodos,apesardeseremsemelhantes,viam-secomototalmente</p><p>distintos. Por analogia: numa terra de cegos, se ninguém nela tem um olho</p><p>sequer, jamaissesaberáquesãotodoscegos!Umserdeoutra terra,dotadode</p><p>olhos, veria a semelhança,mas eles, os cegos,não.Logo, pornãohaver razões</p><p>evidentes para o surgimento da confiança mútua, de um arremedo da</p><p>fraternidade espiritual, as alianças tornaram-se provisórias e volúveis. E tome</p><p>guerrasobreguerra!Foientãoque,pormandatodeDeus,surgiramosprimeiros</p><p>humanosdasdiferentesraçasdecor.Pormutaçãoaparentementeespontânea…</p><p>Essa nova semelhança, pela cor, não bastaria para gente extremamente</p><p>sofisticadaeavançada,comoacreditamosserhoje,chegaràpaz.Maslevouapaz</p><p>paraointeriordosgruposraciaisdaépoca.Haviaumaconfiançanaturaldentro</p><p>de cada raça, e a antiga desconfiança, que antes era geral e irrestrita, passou a</p><p>dirigir-seapenasaoutrasraças.Percebe?</p><p>—Nãovounegar:oraciocínioéinteressante.</p><p>— Bom, foi assim que aconteceu. A guerra geral de todos contra todos</p><p>tornou-se a guerra de uma raça contra outra e, ao mesmo tempo, como</p><p>corolário, veio a migração das diferentes raças pelos continentes. Cada um,</p><p>digamos assim, procurando o seu quadrado.No fundo, ninguémqueria briga.</p><p>Eramelhorfazeratrouxaepegaraestrada.Algumasraçasquasedesapareceram</p><p>totalmente nesse processo, restando delas apenas algumas características</p><p>genéticastransmitidasdevidoaocontatomútuo.Naverdade,nãoexistemmais</p><p>raçaspuras.Amaneira comochegamos a issopodepareceruma coisa terrível</p><p>hoje,mas esse arranjo foimuitomelhor do que nossa extinção. Deus escreve</p><p>certoporlinhastortas.</p><p>Robertoestavapensativo.Osolhosperdidosalgures.Porfim,descobrindo-se</p><p>novamente dentro do escritório de um advogado, endireitou-se na cadeira e</p><p>soltouum…</p><p>—Ufa!…Nãofoifácilchegaratéaqui.</p><p>—Nãofoimesmo—concordoudoutorPinto.—Osenhorfalamuitobem,</p><p>seuRoberto,quasecomoumadvogadodesucesso—esorriu.—Éformadoem</p><p>alguma coisa? Ou apenas lê a Bíblia? Pessoas que leem a Bíblia falam muito</p><p>melhordoqueasdemais.JoãoFerreiradeAlmeida,Deusotenha,fezumserviço</p><p>quefoimuitoalémdasalvaçãodasalmas.</p><p>—Souformadoemadministraçãodesistemas.</p><p>—Ah,éverdade.Eosenhortemeconomias?</p><p>— Bom, doutor Pinto, depois de tudo o que o senhor me disse hoje, eu</p><p>precisoéirpracasapensarmelhor.Seiqueosenhoréocupadoedevecobrarum</p><p>valorelevadopeloseutempo.</p><p>Odoutorsorriu:</p><p>—Não,não,seuRoberto.Nãoestoude</p><p>olhonasuacarteira.Osenhoréum</p><p>rapaz inteligente e tenho certeza de que tem suas ambições e projetos. Se o</p><p>senhorgosta tantodoque faz,ese temalgumdinheiropoupado,deviapropor</p><p>sociedadeaoseuchefe.Comovaiasaúdedaempresa?</p><p>Robertoestavaaturdido,umsorrisocheiodesurpresaestampadonorosto:—</p><p>Comoosenhorsabiaqueeutinhaessa ideianacabeça?Minhanamorada,que</p><p>não é negra e que, por odiar o racismo, insistiu comigo para vir recorrer ao</p><p>senhor,vivemedizendoparaproporsociedadeaomeupatrão.Elainclusivequer</p><p>queeuuse,alémdasminhaseconomias,asdela.Comoosenhorsabiadisso?</p><p>— O senhor lê códigos binários, seu Roberto. Eu leio pessoas. Vi sua</p><p>expressão quandomedisse que seu chefe e o dono da empresa também eram</p><p>negros…OsenhordeviafazercomonossosancestraisHomoerectuse,enquanto</p><p>nãorecebeodomdaplenamaturidade—medesculpe,masosenhorémuito</p><p>jovem,praticamenteummenino—,deviaunir-sedeformaapropriadaaquem</p><p>julga ser da sua turma. Faça comoPelé, seja um sucesso e vire chefe dos seus</p><p>antagonistas.Nãoosprocesse,nãoosodeie,apenasjogueapiadadevoltasobre</p><p>eles.Nãoestoulhedizendoparaserumracista,estouapenasaconselhando-oa</p><p>tersensodehumorejogodecintura.Mas,voltando…comovaiaempresa?Está</p><p>bemdaspernas?</p><p>—Hámuitaconcorrência,doutor.</p><p>—Vocêsprecisamédeumaeficienteestratégiademarketing.Noseulugareu</p><p>iriaatéseupatrão,mostrariaoquantoeconomizoueproporiasociedade.</p><p>—Eosenhorachaqueissoseriajogarapiadadevoltasobremeuscolegas?</p><p>—Não inteiramente. Eu ainda não concluí. É o seguinte: o senhor tem de</p><p>proporasociedadee tambémsugerirumnovonomeparaaempresa:“Prompt</p><p>de Comando.” Prompt quer dizer imediato, rápido, diligente. Um excelente</p><p>nome. E uma foto do comando da empresa, com sócios negros, seria uma</p><p>excelentepropaganda.</p><p>Robertodeuumasúbitaegostosarisada:—DoutorPintoGrande,osenhoré</p><p>foda!</p><p>—Eusei,meucaro,nomenestomen:nomeédestino.</p><p>Efoiassimquesurgiuabem-sucedidaempresadegerenciamentodesistemas</p><p>PromptdeComando,comfiliaisemquatrocontinentes.</p><p>Ateologiadamaconha</p><p>—Paulinho!Vemveroquefoiqueeuachei!</p><p>Quandoouviuochamadodamulherpelovãodaescada,PauloCésarestava</p><p>no segundo andar daquele sobrado geminado, seu novo lar no município de</p><p>Diadema.Estavaentretidonoquartoprincipal, retirandosapatos,botase tênis</p><p>de uma caixa de papelão e ocupando o pouco espaço que ela lhe deixara no</p><p>armário.Haviamacabadodesemudar—eramrecém-casados—,masele jáa</p><p>conhecia o suficiente para saber que, sempre que o tratava pelo diminutivo,</p><p>algumfrutoproibidoviriaporaí.Eletinhacertezadeque,aotomarofrutoda</p><p>árvorequeestavanomeiodoJardim,EvaoteriaoferecidoaoAdãozinho,jamais</p><p>aoAdão.</p><p>—Jávou,Anita!—respondeualtissonante,imaginandoqueláembaixoiria</p><p>vê-la debruçada sobre uma caixa cheia de apetrechos eróticos, provavelmente</p><p>comumpardealgemasnasmãosou,quemsabe,jávestidacomcorpeteecinta-</p><p>liga. Aquela amiga que a esposa arranjara na igreja parecia ter lido apenas o</p><p>famigeradoCinquentatonsdecinza.NovoTestamento?QueNovoTestamento?</p><p>Nãoqueelenãogostassedasbrincadeiras—gostavamuito—,masissoeradica</p><p>deleituraparaseouvirapósumculto?</p><p>Paulo César saiu pelo corredor, pé ante pé, desviando-se como podia das</p><p>muitas caixas ainda fechadas. Mudança é um passatempo divertido nos</p><p>primeiros dois dias; depois vira ummartírio.Onde iriammeter tantas coisas?</p><p>AnitapareciaumacuradorademuseuouumacolecionadoraviciadanoeBaye</p><p>no Mercado Livre. “Eu sou aquariana!”, repetia sem parar, defendendo suas</p><p>inúmerasposses.Ele,queestevetantasvezesnoquartodela,enquantoelaainda</p><p>morava com os pais, jamais imaginou que a então namorada escondia tantas</p><p>bugigangasemoutrosaposentos.</p><p>—Oquefoi,Bonita?—indagouaodesceroúltimodegrauevê-laajoelhada</p><p>diantedeumacaixa.Não,elanãoestavadecorpeteemuitomenoscomalgemas.</p><p>Anitavirouorostoparaele,sorrindo:</p><p>—Eutavarevirandoosbolsosdessamochilaqueagenteusounaviagempra</p><p>Chapadae…olhasóoqueencontrei!—e,erguendoobraço,mostrou-lheum</p><p>baseadoroliço,brancoeteso,comoseotivesseacabadodebolar.</p><p>Elefezumacaretacheiadedesconfiança:</p><p>—Tábrincandoquevocêachouisso…</p><p>—Sério,amor!</p><p>—Bonita,Bonita…—censurou-a.</p><p>Elaselevantou,ofendida:</p><p>—Você acha que voumentir pra você na nossa primeira semana de casa</p><p>nova,PauloCésar?</p><p>Quandoelaotratavapelonomecompleto,nãohaviaporqueduvidardoque</p><p>dizia.</p><p>—Desculpa,Bonita.ÉqueessaviagempraChapadajátemquasetrêsanose</p><p>obequeestáinteirinho.Olhaaí!</p><p>— É porque ele tava dentro desse tubo que você mesmo comprou no</p><p>DealExtreme, lembra?Olha—e lhe indicouumtubometálico,rosqueado,que</p><p>se abria aomeioparaguardar trecos.Pareciaumsupositóriodepresidiáriode</p><p>dezcentímetros(dezcentímetrosotubo,nãoopresidiário),maseraapenasum</p><p>chaveiro bastante útil. Paulo inclusive se lembrou de lhe ter dito à época:</p><p>“Papillon,lánaIlhadoDiabo,teriaadoradoguardarsuagrananofiofócomisto</p><p>aqui.”Mas elanão sabia quemeraHenriCharrière, nem tinha lidoo livroou</p><p>visto o filme. Por isso tampouco se lembrou agora dessa referência que teria</p><p>devolvidoaomarido,logodecara,aculpapelotráficoinvoluntário.</p><p>—Tácerto,gata.Mea-culpa.Masedaí?</p><p>—Uê!Vamosfumar!</p><p>Elearregalouosolhos:</p><p>—Támaluca?!Depoisdetudooqueagentejápassou?</p><p>Era verdade. Em anos pregressos, ambos tiveram graves problemas com</p><p>drogas. Paulo nunca foi um verdadeiro viciado, desses que são fiéis a uma</p><p>substânciaespecífica,mashaviaexperimentadodequasetudo:chádecogumelo,</p><p>chá de lírio, ayahuasca, mescalina, ácido lisérgico, special K, ecstasy, skank,</p><p>freebase,haxixee,claro,asimpleseordináriamaconha.Tudoenvolvidonuma</p><p>frágilaurademisticismoedebuscainteriorqueapenasolevouaosolipsismoe</p><p>àsportasdosuicídio.Cadaviagemeraumaaventuraexistencial:“Écomopegar</p><p>uma onda”, dizia aos amigos. “Você só precisa deixar o ego de lado, relaxar e</p><p>dropar.Éassimqueos surfistas sobrevivem.”Emais tardeeledescobriuqueé</p><p>justamente na busca de ondas cada vezmaiores que os surfistas perecem… Já</p><p>Anita,comalealdadedasamantes,contentou-seemcheirarcocaínaanosafio,</p><p>tendo depois experimentado, graças a ele, durante as festas a que acorreram</p><p>juntos,ecstasyeácido.E,sim,tambémamaconha,quemaistardeelapassoua</p><p>comprarealhefornecerporquegostavadeouvi-loviajarna,conformediziam,</p><p>“maionese cósmica”. Ele, que tinha pais evangélicos, crescera ouvindo sobre</p><p>Deus e Jesus, substituindo-Os, na adolescência, pelo cientificismo do século e,</p><p>mais tarde, por um gnosticismo psicodélico-eletrônico que, durante a dança,</p><p>esperaverShivabaixaraqualquermomento—contanto,éclaro,quesetomea</p><p>drogacertanadosecertacomoDJcerto…Faltoupoucoparaeleescreversua</p><p>própriaversãodeEcceHomoe,comoNietzsche,chegaràconclusãodequenão</p><p>eraoutrosenãoopróprioDeus.Aliás,faltoupoucoapenasparaescreverolivro,</p><p>porque, de fato, Paulo César chegou à conclusão de que era— assim deixou</p><p>escrito em nota de despedida— o “Deus Supremo” e de que sematava para,</p><p>mediante seu próprio sacrifício, trazer de volta à Terra a tal Era de Ouro.</p><p>Felizmente,otirodaBeretta .22nãolheatingiuocoraçãoeeledespertou,dias</p><p>depois, numa cama de hospital. Nessa mesma época, ele e Anita estavam</p><p>separados havia vários meses, e ela, alternando</p><p>depressões com episódios de</p><p>síndrome de pânico, abandonou a faculdade e já não saía de casa. Ela, que</p><p>sempre vira na convivência com os amigos o sentido da vida, já não podia</p><p>encontrá-los,pois todosmantinhamovício epoderiam levá-ladevolta aopó.</p><p>Por fim, debilitada e vazia, a garota resignou-se e aceitou a proposta dos pais:</p><p>rehab . Assim, ambos, pois, e sem qualquer premeditação, reencontraram-se</p><p>numaclínicadereabilitaçãoparadrogadictos.Foilá,demãosdadas,quePaulo</p><p>César e Anita, após vencerem grande resistência, finalmente entenderam o</p><p>significadodaVidaEternaeovalordalealdadeaoPaiCelestial.Umanoemeio</p><p>depois,estavamcasados.</p><p>—Masvocêmesmodisseoutrodia,Paulo:Deus também fala comagente</p><p>atravésdascoisasedascoincidências.Essevaisernossobequededespedida!</p><p>—Anita, você tá cansada de saber que eu posso ficar paranoico e ter uma</p><p>carradadeflashbacksebadtrips.</p><p>Elariu:</p><p>—Deixa de ser besta! A gente tá na nossa casa. O que pode acontecer de</p><p>errado?</p><p>Elesesentounosofá,cabisbaixo:</p><p>—Sei lá.UmataquenucleardaCoreiadoNorte?Oprimeiro terremotode</p><p>São Paulo em quinhentos anos? Uma invasão extraterrestre? Um apocalipse</p><p>zumbi?…SemfalarqueessebequedevetersidoproduzidopelasFarcedeveter</p><p>financiadooPT,oForodeSãoPaulo,oPCC…</p><p>—Ai,não.Vocêjátáexagerandodenovo.AsFarcmexemcomcocaína,não</p><p>vendemmaconha.</p><p>—Comovocêsabe?</p><p>— Uê. Os caras querem dinheiro, e cocaína é que dá dinheiro. Eles são</p><p>comunistas.Sãoloucos,masnãosãoburros.</p><p>Eleaencarou,irônico:</p><p>—Issoéumresquíciodaquelasuamaniadeacharqueeuficomaisdivertido</p><p>doidão, né, sua sacana? Você nem percebia que me mantinha maluco só pra</p><p>sugarmeuhumor…meuamor!—eaabraçou,puxando-aparaocolo.</p><p>—Vocêficamaravilhosodoido!Éverdade.Masvocêémuitomelhoragora,</p><p>comDeusnocoração.Vocêeraummenino,agoraéumhomem—eelaobeijou</p><p>natesta,carinhosamente.</p><p>—Sei…</p><p>—É sério. E se eu gostava quando você ficava doido, era porque eu sentia</p><p>uma overdose da sua personalidade. Sou viciada em você. Só que você tem</p><p>trabalhadotanto,andacansado,nãoescrevemaisletrasprasuabanda,sófalade</p><p>Direitoeleis,conversapoucocomigo…Estoucomsíndromedeabstinênciade</p><p>você.</p><p>—Ésóumafase,Bonita.Onoivadoacabou,agoravaiserdiferente.Agente</p><p>estámontandonossabase.</p><p>—Eusei.</p><p>—Poisé.Entãopraquefumarhoje?</p><p>—Porque a gente precisa encerrar aquele ciclo, Paulinho! Encerrar de um</p><p>jeitopositivo,porquenãoforamexperiênciasapenasruins.Elembradoquevocê</p><p>mefalouquandoagenteseconheceu:“Nuncatomeumadecisãocondicionada</p><p>pelo medo.” Você tá com medo de fumar agora, não tá? Depois de todas as</p><p>drogasqueagenteusou,achaqueumbequevainosperder?AchaqueDeusvai</p><p>deixardeolharpelagenteporcausadeumaúltimaviagem?Porcausadeuma</p><p>substânciaquímica?VocêachaquetemumaAnvisanoParaíso?UmDenarc?A</p><p>gentetinhaproblemasesedeixavalevarpelasdrogasporquenãoconheciaDeus.</p><p>Mas agora a gente O conhece! Nenhum de nós guardou este baseado de</p><p>propósito,eElesabedisso.TalvezElequeiraensinaralgumacoisapragente.A</p><p>gentejátevetantosinsightsviajando!Eestaénossanovacasa,nossanovavida,</p><p>nossodireito.</p><p>PauloCésarestavaquaseconvencido:</p><p>—Você sabeque a cadadireito correspondeumdever, não é?Umdireito,</p><p>semacontrapartidadeumdever,éumailusão.Entende?</p><p>—Queseja.</p><p>—Bonita—tornouele,compaciência—,sealguémtelefonarpragentecom</p><p>umpneufurado,pedindosocorro,ajudaouqualquercoisaassim,nãopossosair</p><p>decasa.Vocêsabeque,seeufumar,vouficarnoiadonarua,comreceiodeser</p><p>paradopelapolícia,deassaltos,deacidentes.Nãoporquevou travardepavor,</p><p>mas porque vou falar as coisas erradas para as pessoas erradas. Quando fico</p><p>maluco,deixodemandarnaminhaimaginaçãoepassoasercontroladoporela.</p><p>Imagino todo tipo de situação e fico achando que estou tendo premonições…</p><p>Imagino um arrastão no meio do congestionamento e já acredito que está</p><p>mesmopara acontecer…É assustador!…Se a gente fumasse, a gente ia terde</p><p>ficarquietinhoaqui,no sofá,ouvindomúsica enamorandoporhoras ehoras.</p><p>Namorandosemfuc-fuc,né,porqueeuficomuitomentalemeesqueçodeque</p><p>tenhopintoquandoestoudoidão.</p><p>Elariu:</p><p>— Eu sei disso!Mas sexo verbal também faz seu estilo. Você fica incrível!</p><p>AdoroseuMr.Hyde.Morroderir.</p><p>—Eusabiaquevocêiaacabarvindocomessalegiãozice…—ePaulosorriu,</p><p>persuadido.—Éaúltimavez,então.</p><p>—Eba!</p><p>—Últimavez!Promete?</p><p>Elavoltouaselevantar,empolgada:</p><p>—Combinado!Prometo,deverdade.Eagentedesligacelular,ofixo,desliga</p><p>tudo.Ninguémvaitiraragentedaqui.Ninguémsabenossoendereçoainda.</p><p>—Beleza.</p><p>Começaram os preparativos: juntaram as caixas de papelão a um canto da</p><p>sala, desenrolaram o tapete, jogaram as almofadas no sofá, encontraram e</p><p>acenderamo abajur alaranjado, um resquício do quarto dela na casa dos pais.</p><p>Para não deixar o cheiro escapar, Paulo fechou janelas, vitrôs e basculantes.</p><p>Anitafoiàcozinhaedeixouàmãoumgrandesalameeumagarrafadevinho—</p><p>adevinhobranco,poisadevinhotintoeladeradepresenteàvizinhadacasa</p><p>contígua,umamulherdemeia-idadecomquemsimpatizaradeimediatoecuja</p><p>parede compartilhavam. Também deixou sobre a bancada um pote com</p><p>castanhasdecajueoutrodeNutella.A laricaestavagarantida.Voltouà sala e</p><p>acendeuoincensodepatchuli.</p><p>—Não acredito que você já acendeu essa coisa. Esse cheiro atravessa até a</p><p>parede,Anita.Incensoécoisademaconheiro.Todovizinhosabedisso.</p><p>—Paradebobagem,Paulinho—replicouela,sorrindo.—Agentenãomora</p><p>naVilaMadalenaounumarave.AgentemoranumbairrofamiliardeDiadema.</p><p>Aquininguémtáligadonisso.</p><p>—Deve ter mais traficante e maconheiro aqui no “D” paulista do que no</p><p>restantedo“ABC”.</p><p>—Ah,vai!—eriu.</p><p>PauloCésarhaviatrocadoaroupajustaporumabrigodemoletome,coma</p><p>expressãomais preguiçosa domundo, já estava aboletado no sofá.Anita, com</p><p>umablusinhajustaeshortinhojeans,serefestelouaoseulado.Paulogostavade</p><p>ver as alças do sutiã dela disputarem com as alças da blusa aqueles frágeis</p><p>ombros.OuviamPortisheadnuma caixa acústica JBLPulseque, alémde sons,</p><p>emitialuzescoloridasparatodososlados.Paraselecionarasmúsicas,Paulofez</p><p>questão de utilizar o tablet chinês “xing-ling” via bluetooth, pois os celulares</p><p>deviam permanecer desligados. Quando se deram por satisfeitos, ele então</p><p>colocouobequenabocaeoacendeucomumisqueiroBic.Deuumaprimeirae</p><p>longa tragada.Em seguida, passou-opara ela, que fez omesmo semdeixarde</p><p>tossir profusamente num primeiromomento.Nada augurava o que teriam de</p><p>enfrentarnaquelanoite.</p><p>— Nossa, que pancada! — disse ela, em meio à tosse. — Não perdeu a</p><p>potência.</p><p>—Maconhaéigualvinho:quantomaisvelha,melhor.Vocênãosabiaquefoi</p><p>assimqueoSpielbergeoGeorgeLucastiveramaideiadoroteirodosCaçadores</p><p>daarcaperdida?EstavamnoEgitoecompraramumamaconhaencontradano</p><p>túmulodeTutancâmon.</p><p>—Sério,meu?!Quelouco!Nãosabia.</p><p>Eleriu:</p><p>— Sua boba, eles estavam numa praia do Havaí gastando a grana que o</p><p>George Lucas tinha ganhado com Guerra nas estrelas . Nada de marijuana .</p><p>Apostoquebebiammargaritas.</p><p>—Ah,seubesta!—elhedeuumtapanacoxa.</p><p>PauloCésar pegou o beque de volta e deu outra tragada.Dessa vez foi ele</p><p>quemtossiuatéperderofôlego.Elaficouobservando-o,divertida.</p><p>—Castigoporvocêficarmangandodieu</p><p>.</p><p>—PorfalaremmangardevocêenoDarthVader…</p><p>—Ué,quemfalouemDarthVader?</p><p>—Nãofalamos?</p><p>—Não.VocêsófaloudeGuerranasestrelas.</p><p>—Ah,então—disseele,pensativo—,porfalarnisso,achoquevouaceitaro</p><p>convitedodoutorPintoGrandeevoutrabalharcomele.</p><p>—Ah,nãoacredito!</p><p>Eleficousério:</p><p>—Não seiqual éo seuproblemacomodoutorPintoGrande.Éamigodo</p><p>meupai.Alémdetermedadoumasuperforçaquandoeuestavamal,eleéum</p><p>ótimoadvogadoejánãotemsócios.</p><p>—EunãotenhonadacontraoPintoGrande.</p><p>Eleriu:</p><p>—Aindabem,né,senãoteríamosproblemas.</p><p>—Oproblema—prosseguiuela,ignorando-o—nãoéapessoadele.Eusó</p><p>nãoacholegalterdedizerdepois:meumaridotrabalhacomoPintoGrande.Ou</p><p>ainda:meumaridopassaquase todoodiacomoPintoGrande. Issonãopega</p><p>nadabem.</p><p>—Nósvamossersócios,boba.</p><p>—VocênãotemnemdoisanosdeOAB.</p><p>—DoutorPintoconfianomeutaco.Confiaemmim.Dizquetemosamesma</p><p>visãodemundo.Meunomeatéfarápartedonomedaempresa.</p><p>—Ah,que lindo:PintoGrande&CarvalhoAdvogadosAssociados.Você já</p><p>sabecomovãopronunciarissoporaí,né?</p><p>Eledeuaprimeiragargalhada.</p><p>—Tôfalandosério,Paulinho.Nãopegabem—protestouela, tomando-lhe</p><p>emseguidaobequeevoltandoafumar.</p><p>—PintoGrande&CaralhoAdvogadosAssociados!</p><p>—Não temamenorgraça—retrucouela.—Eaindanãoentendioqueo</p><p>DarthVadertemavercomahistória.</p><p>PauloCésarparouderir:</p><p>—DarthVader?Nãoseriaporqueochapéudelepareceumacabeçadepinto</p><p>bemgrande?</p><p>Agorafoielaquemcaiunagargalhada:</p><p>— Seu besta! Aquilo não é um chapéu! É um capacete, umamáscara, um</p><p>elmo—evoltouarir.</p><p>— Em espanhol seria “sombrero”— observou Paulo, muito sério. — Um</p><p>“sombrero”preto.</p><p>Elaquaseengasgoucomasrisadas:</p><p>—Para!Para!DarthVadernãoéummariachimexicanoprausarsombreiro.</p><p>Paradefalardele!</p><p>—Uê,parar?FoivocêquemfalounoDarthVader.</p><p>—Eu?!VocêéqueselembroudoseuPintoquandofalounoDarthVader.</p><p>—Domeupinto?</p><p>—DoSr.Pinto…dodoutorPintoGrande,droga!</p><p>—Ah,éverdade!—concordouele,pensativo.—Porqueserá?</p><p>— Ai, meu Deus, para! Como é que eu vou saber?— e Anita continuava</p><p>rindo,trêmulaedivertida.</p><p>Ele ficou em silêncio por algum tempo, admirando a beleza da esposa: o</p><p>desenho da boca carnuda e dos olhos grandes, o contraste entre as clavículas</p><p>conspícuaseoseiovolumoso,ojeitodesegurarocigarrocomamunhecacaída</p><p>para trás,amaneira felinacomosesentavaescoradanele,aspernasencolhidas</p><p>sobreosofá,asrótulasproeminentes.Comoerabela!Comoerafeminina!Eela</p><p>nãoparavaderir.Quantomaissérioelelheparecia,maiselaria.</p><p>—Tá satisfeita?— indagouPaulo, divertido.—Olha só como a juventude</p><p>ficacompletamenteretardadaquandofumamaconha…</p><p>Ela estava aflita, perdida entreo riso e a curiosidade:—Por favor, tente se</p><p>lembrardoque você tava falando!Táme torturandonão saberoqueoDarth</p><p>VadertemavercomoPintoGrande!</p><p>—AgentedeviairagoranoFacebookeconfessarpratodomundoquesomos</p><p>doiscoxinhasex-malucosquevoltaramacairnatentaçãodamaconha,queagora</p><p>até corremos o risco de apanhar do Capitão Nascimento, de saco plástico na</p><p>cabeça e tudo: “São vocês, da direita religiosa doidona, que financiam essa</p><p>merda!”</p><p>De joelhos sobre as almofadas, derrubando cinza no sofá, ela voltou a</p><p>gargalhare,emseguida,atossir.</p><p>— Ah, lembrei! — tornou Paulo, surpreso com a própria memória e não</p><p>fazendoomenorcasodacrisedetossedela.—Eusóiadizerque,deacordocom</p><p>odoutorPintoGrande,LúciferéumaespéciedeDarthVaderdonossouniverso.</p><p>Naverdade,odoutordissequearealidadeéoinversodofilme:queLúciferéque</p><p>acreditavaestarlutandocontraumsupostoimperialismouniversaldeCristo.</p><p>—Ai,tomaaí—disseAnita,confusa,estendendoamãocomobaseado.—Já</p><p>fiquei muito doida, acho que minha tolerância estava a zero. Até parece que</p><p>tomeiácido…EsevocêvoltaramisturarPintoGrande,LúcifereDarthVader</p><p>namesma frase, vou cairmorta aqui, só não sei se de rir ou se de excesso de</p><p>piração.Fiqueiperdidinha…</p><p>—É,parecequeagoraoPortisheadestátocandosuamúsica:Unablesolost/I</p><p>can’tfindmyway…</p><p>—Bobo,tôperdidinhaécomsuaconversa.Vocêjásabequalénossocaminho</p><p>eeutambémsei—eelabuscouoolhardomarido,quelhesorriueabeijounos</p><p>lábios.</p><p>—Claroquesei,Bonitadaminhavida.</p><p>—Bom,achoquejápodemosdartchaupronossoúltimobequeejogá-lona</p><p>privada,né?Apartirdeagora,caretasparasiempre.Epartiularica!</p><p>Eleprotegeuobaseado:</p><p>—Calma,mulher!Játôviajando,masqueroficarnomesmonívelquevocê</p><p>—e,colocandoocigarronaboca,deumaisumaprofundaelongatragada.Por</p><p>fim,segurouofôlego,esperandoabsorveromáximopossíveldeTHC.</p><p>— Pra quem não queria fumar… — comentou ela, a boca seca, os olhos</p><p>injetados,vendo-oconverter-senasuaprópriaversãodeMr.Hyde.</p><p>Paulo então soltouo ar de uma só vez e se sentiu trêmulo, suando frio:—</p><p>Nossa,Bonita,minhapressãobaixoucompletamente…—efoiseesticandono</p><p>sofáatédeitar-sedecostas,mantendo-aentreaspernas.—Puts…Agora,sim…</p><p>—Possojogarfora?—perguntouela,tirando-lheobequedamão.</p><p>—Quem?Eu?Podemejogarfora.Tôdestruído.</p><p>Assim que ela se levantou com a intenção de ir ao banheiro, soou a</p><p>campainhadaporta.</p><p>—Issofoidamúsica?—estranhouele.</p><p>—Não,amor—respondeuela,olhandonadireçãodajaneladafrente,que</p><p>eraamplaeiaquasedochãoaoteto.</p><p>Elearregalouosolhos:</p><p>—Tábrincandoquetemgentenaportalogoagora!Quehorassão?</p><p>—Achoqueumas11.Talvezmeia-noite,nãosei.</p><p>Anita se aproximou da janela e abriu uma fresta da cortina para espiar a</p><p>frentedacasa.</p><p>—Quebizarro,Paulo…</p><p>—Quemé?</p><p>—SenãoforoDarthVaderempessoa,éumdaquelestripulantesdoGlobo</p><p>daMorte.</p><p>Elesesentounosofá,acabeçaàroda,confuso:—Nãobrinca,Anita!Doque</p><p>équevocêtáfalando?</p><p>—Vemver,Paulo.Éumcaradebonéeuniformeescuro.</p><p>Paulo César olhou pela fresta da cortina e, ao ver o visitante, entrou em</p><p>pânico:—Nãoéboné:éboina!ÉaRota,Anita!—falouameia-voz,mascom</p><p>firmeza.</p><p>—ARota?!Dandobatidananossacasa?Nãoépossível!Issonãoécoisada</p><p>políciacivil?</p><p>—Deviaser,masesseaíédaRota!Certeza.</p><p>Acampainhavoltouasoar,destavezcommaiorinsistência.</p><p>—Limpaosofá,Anita,essacinza…Medáissoaí!Voujogarapontanovaso</p><p>—e correuparaobanheiro, o coração amil.—RondasOstensivasTobiasde</p><p>Aguiar…RondasOstensivasTobiasdeAguiar…RondasOstensivasTobiasde</p><p>Aguiar… — repetia em voz alta, lembrando-se do adágio que ouvia desde</p><p>criança: “ARota atira primeiro e só depois pergunta quemvocê é.”—Fodeu,</p><p>caralho!</p><p>—Eseagentefingirquenemtáouvindo,Paulo?Amúsicatáalta.</p><p>—Éóbvioqueo cara viu a gentena janela,Anita!Enquanto essa salanão</p><p>tiverumacortinadecente, vaiparecerqueagente tánumavitrine.Dápraver</p><p>nossassombraschinesasládefora.</p><p>—Sombraschinesas?Comoassim?</p><p>Maselejánãoaouvia.Haviaacabadodedescobrirqueadescarganãoestava</p><p>funcionando. O beque boiava na água do vaso sanitário. O que fazer? Se</p><p>demorasseaatenderaporta,éóbvioqueopolicialforçariaaentradaecomeçaria</p><p>a revistar todaa casa.Provavelmente todoumbatalhãoaguardava suasordens</p><p>para invadir a residência. E se houvessemais algumbaseadoperdidonomeio</p><p>daquela bagunça? E se a esposa tivesse esquecido uma trouxinha de cocaína</p><p>dentrodumabolsa antiga?Caramba!PaulonãopodiadeixarAnita passar por</p><p>isso. Assumiria toda a culpa. Talvez fosse melhor ir lá fora agora mesmo, os</p><p>braçoslevantados,ese</p><p>entregar.</p><p>—É,voumeentregar…Voumeentregar…—murmurouparasimesmo.</p><p>Acampainhasooupelaterceiravez.Opolicialmanteveodedonointerruptor</p><p>por três infinitos segundos.Durante esse longo espaço de tempo, numa busca</p><p>espontâneaporummotivomaisverossímil,Paulovisualizoutodaumacomplexa</p><p>perseguiçãoaumbandidoqualquer,aqualcertamenteteriaculminadoemsua</p><p>casa.Sim,talvezfosseisso,aRotanãoficaentrandonacasadaspessoasàtoa.“E</p><p>seoladrãoestiverescondidoaqui?”,pensouele.“Talvezalguémtenhapuladoo</p><p>muroeestejaescondidononossoquintal!”Correuentãoatéacozinhaeabriua</p><p>porta dos fundos.Olhou para a pia e tomou da primeira faca que encontrou,</p><p>uma faca de mesa, dessas de passar manteiga no pão. Tomado por súbita</p><p>valentia,saltouparaogigantescoquintaldemeroscincometrosdelargurapor</p><p>quatro de comprimento. Deu três passos até o tanque de lavar roupa, sob a</p><p>pequenalaje,eespreitoudentrodelecomaatitudeastutaelépidadeumgatoem</p><p>plenacaça.Estavaprontoparaoataque,masnãohavianinguémali.Amáquina</p><p>de lavar, logo ao lado, que ele trouxera de seu apartamento de solteiro, era</p><p>pequena, mas ele abriu-lhe a tampa assim mesmo e ameaçou com a faca a</p><p>escuridãodassuasentranhas.Ogostosocheirodeamaciantederoupasinvadiu</p><p>suasnarinas,e,satisfeito,elefechouosolhos,esquecendo-sedorestodomundo</p><p>por um infinito instante.Mal passou por sua cabeça que atémesmo um gato</p><p>teriadificuldadesdeentrarnaquelageringonça.</p><p>—Paulo,oquevocêtáfazendo?</p><p>Caiuemsi:</p><p>—Hum?Nada,Bonita.</p><p>—Ocaraaindatáláfora!Achoquenãovaidesistir.Euabritodasasjanelas</p><p>prasairessecheirodemaconha.</p><p>—Adafrentetambém?!</p><p>—Não,né?Nãosoutãotrouxa.</p><p>Elecorreuatéaportadosfundos,segurouaesposapelosombroseaencarou,</p><p>aexpressãotranstornada:—Bonita,eutômuitodoido…Achoquesóagoratá</p><p>batendo… Não consigo pensar direito… Acho que… — e então, alarmado,</p><p>lembrou-se do beque e, sem concluir a frase, correu esbaforido, deixando a</p><p>esposa plantada entre os móveis e as grandes caixas de papelão e os</p><p>eletrodomésticosdacozinha.Umaveznobanheiro,sempensarmeiavezsequer,</p><p>ajoelhou-se,resgatouobaseadodedentrodovasosanitárioeometeunaboca,</p><p>engolindo-ocomdificuldade.</p><p>—Eca!Oquevocêtáfazendo?—espantou-seela,jáàssuascostas.</p><p>— Sumindo com as evidências — respondeu, sentindo aquele incômodo</p><p>volumeentaladonoesôfago.</p><p>—Quenojo!Porquenãodeudescarga?</p><p>—Nãotáfuncionando—resmungou,semseerguer.</p><p>Colocandoumadasmãossobreacabeçadomarido,Anitaapiedou-sedele:</p><p>—Erasóabriroregistro,meuamor!Lembraqueagentetinhafechadoeleantes</p><p>detrazeramudança?Atorneiradapiatavapingando.</p><p>Pauloabraçouaspernasdela:</p><p>—Ora comigo,meu amor.Ora comigo! Eu tô aflito…Meus pensamentos</p><p>nãomeobedecem…Ficoesquecendoqueestoumaluco…Vocêsabequeesseéo</p><p>grandeperigo…Seeuderbandeiraeforpresoporusodedrogas,vouperdero</p><p>registrodaOAB…Saca?Agentevaificarnaruadaamargura,oupior!,agente</p><p>vai acabar numa rua da Cracolândia… — e arregalou os olhos, acreditando</p><p>piamentenoquedizia.—Vocêsabequeminhabandanuncadeudinheiro,né…</p><p>Enãoentendodemaisnadaanãoserdeleis…Meutrabalho…Agenteprecisa</p><p>começarnossafamíliaempaz,Bonita!Oracomigo.</p><p>A campainha tocou pela quarta vez, e, logo em seguida, ouviram palmas.</p><p>Palmas de mãos que pareciam bem grandes e pesadas. Como que atingida</p><p>subitamenteporumraio,Anitaculpou-sepelasituação.Acostumadaasentir-se</p><p>segura ao lado daquele homem tão denodado, tão protetor, percebeu que o</p><p>temordeleaafetavacompungência.Finalmentesentiuquecorriamperigoeque</p><p>sócontavamcomDeus.Anita,pois,ajoelhou-sedefrenteparaomarido,tomou-</p><p>lheasmãosnas suase inexplicavelmenteserena,cheiade fé, fechouosolhose</p><p>pronunciouemvozalta:—PainossoqueestaisnoCéu,pessoalmentepresente</p><p>noParaíso,eespiritualmentepresentenosnossoscorações;meuDeus,emnome</p><p>de nosso Senhor Jesus Cristo, Filho Criador doUniverso, eu vos peço paz de</p><p>espírito, discernimento e coragemparamim e parameu amor; que o Espírito</p><p>Santo, senhor de nossas mentes, possa nos orientar neste momento de</p><p>dificuldade e angústia; queVossaCentelhapossadirigirnossospensamentos e</p><p>livrar nossa imaginação da paranoia; meu Pai amado, nós violamos a lei dos</p><p>homens,masnadafizemoscommáintençãodiantedeVossosolhos…Porfavor,</p><p>dai-nosVossabênçãoenosprotegeicomosempreotendesfeito…Amém.</p><p>—Amém—dissePaulo.Eficaramemsilêncioalgunssegundos,perdendo-se</p><p>nosolhosumdooutro.—Vocêélinda,Anita—murmurouele,comovido.</p><p>Elaobeijoue,apoiando-senosombrosdele,levantou-se:—Bom…Melhora</p><p>genteveroqueessecaradaRotatáquerendo,né?</p><p>—Eutômaiscalmo,Bonita—tornouPaulo,levantando-setambém.—Mas</p><p>minha cabeça… minhas ideias continuam girando… a taquicardia a mil… a</p><p>ondatánoauge…nãoseisevouconseguirmecontrolar.</p><p>—Meuamor,quemémaisforte:amaconhaouoEspíritoInfinito?Confia!</p><p>—Nãoseicomocolocarisso…emprática…—disseele,avozembargada.—</p><p>Você não tem ideia do esforço que estou fazendo… pra conseguir falar com</p><p>você…</p><p>—Bom,primeiro,respirefundoedevagar.Depois,façaoqueJesusordenou</p><p>aos apóstolos: não tente nem queira dizer nada por simesmo: que o Espírito</p><p>Santo fale por seus lábios — e, sorrindo, ela acrescentou: — E coloque este</p><p>colírio,meuamor!</p><p>Eletambémsorriu,vencido,etomouotubodeMouraBrasildamãodela:—</p><p>Você…édemais.</p><p>Voltaram,pois,paraasala,eAnitavoltouaabriracortina,destavezfazendo</p><p>umgestoparaopolicialcomoquemdiz:jávamos!Aperseverançadosujeitoera</p><p>impressionante.Elatinhasortedenãoteraimaginaçãotãoexcitávelquantoado</p><p>marido,docontrário,emvezdeansiosa,jáestariaapavorada.Pauloabriuaporta</p><p>lateral que dava para o corredor contíguo à garagem e, rígido como um</p><p>funâmbulo de circo, se dirigiu ao inesperado visitante noturno. Equilibrava-se</p><p>numfiozinhodesanidade,tendocomorededesegurançaapenasaféemDeus,</p><p>sobreumabismodeafliçãoedeagitaçãomental.</p><p>—Boa…noite—disse.</p><p>— Boa noite— respondeu o homem, seco.—O senhor é o doutor Paulo</p><p>César?</p><p>—Sim,soueu—tornouorapaz,perplexocomofatodeopolicialsaberseu</p><p>nome.</p><p>—Seráquepossoentrarporalgunsminutos?</p><p>Pauloprocurounoprópriopulsoumrelógioinexistentee,embaraçadopelo</p><p>gestoinútil,falouvagarosamente:—Possosaberdoquesetrata?Émuitotarde</p><p>pra…</p><p>—Ah,perdão.MeunomeéJairo.SargentoJairodeQueirós.Souseuvizinho.</p><p>Suaesposaesteveconversandocomaminhahojedemanhã.</p><p>Aquelanotíciapoderiatertrazidoalgumalívioaojovemadvogado,mastudo</p><p>oquelheveioàmentefoi:“Quemerda,elesentiuocheirodobeque.”</p><p>—Osenhorpodeabriroportão?Nãoébomqueaspessoasmevejamaquina</p><p>suaporta.</p><p>Nestemomento,adespeitodo influxodeadrenalina,PauloCésardropoua</p><p>onda: percebendo sua completa impotência diante daquela situação anormal,</p><p>decidiu seguiro fluxodos acontecimentos semseopor, semse rebelar, semse</p><p>preocuparcomaprópriasegurança.Sabiaque,casodeixasseasrédeasnasmãos</p><p>doseuego,iriadesequilibrar-se,tomaruma“vaca”echocar-secontraosrecifes</p><p>dofundodomardarealidade.Nãopodiasedaraessaluxuosamortedesurfista</p><p>mental, precisava pensar em Anita. Portanto, submisso, sem discutir, levou a</p><p>chaveàfechaduraepermitiuaentradadosargentodaRota.</p><p>—Vamoentrar,senhor…?</p><p>—Jairo.</p><p>—SeuJairo.Táfrioaquifora—disseoanfitrião,lacônico,aindasentindoo</p><p>bequeentaladonoesôfago.Ovisitante</p><p>escreve,doseuhumor,doseuestilo,eudificilmenteconcordocompontos</p><p>importantes do seu pensamento. Eu queria justamente conhecê-lo para expor</p><p>minhas ideias e descobrir qual seria amelhor formade abordá-las.Você sabe:</p><p>pretendo ser convincente! Quero saber se há ou não algum furo nos meus</p><p>argumentos. Para tanto, nada melhor do que uma pessoa que, além de</p><p>inteligente,tenhatambémumavisãodemundocompletamenteopostaàminha.</p><p>Ninguémtemolhosnanuca,nãoéverdade?</p><p>Em vez de fazer uma piada com semelhante observação— pensei em lhe</p><p>perguntarquetipodefuroosolhosdanucapoderiamver,masnãoofiz—,segui</p><p>adiante:</p><p>—Eemquaispontospensamosdiferentemente?</p><p>—Emvários,masessespontospodemserresumidosnumsó:enquantovocê</p><p>possui uma âncora moral, eu não tenho nenhuma. Na verdade, eu já fui um</p><p>amoral,mas,hoje,nãotenhodúvidasdequesouumimoral.</p><p>—Entendo.Para serhonesto, também já fuiumamoral.Masum imoral…</p><p>bem, talvez o tenha sido num momento ou noutro… Mas não mais. Odeio</p><p>aquelasdoresdeconsciência.</p><p>—Sim,sim.Liváriascoisasemquevocêdeixaissobastanteclaro.Porissosei</p><p>quepoderámeentendersempreconceitos.</p><p>—Certo.Masseulivrovaitratardequê?Deética?</p><p>—Nãoexatamente.Éoseguinte:queroprovarquãovantajosoofeminismoé</p><p>paramachistascomoeu.</p><p>Eu, que acabara de virar minha primeira cachaça, comecei a sorrir</p><p>largamente:</p><p>—Issoparecedivertido.Masésério?</p><p>Eleassumiuumaexpressãograve:</p><p>—É.Émuitosério.</p><p>—Desculpeporminhareação.Équeaideiamepareceuinteressante.</p><p>—Eé.</p><p>—Mas—tornei,franzindoocenho—oquevocêquisdizercom“machistas</p><p>como eu”? No seumodo de ver, o feminismo só é bom para alguns tipos de</p><p>machistas?</p><p>—Precisamente.O feminismosóébomparamachistasda elite econômica</p><p>que…</p><p>—Machistasricos.</p><p>— Isso. Mas que também sejam amorais, ou imorais, e niilistas. E pouco</p><p>importa se esses ricos são capitalistas ou dirigentes socialistas. A princípio, o</p><p>feminismoébenéficopara“machosalfa”emgeral.Entende?Parahomensque</p><p>sabemseimporevencer.Contudo,nolongoprazo,o“machoalfa”semdinheiro,</p><p>sem poder, e principalmente se for moralista, vai se ferrar tanto quanto os</p><p>demaispobres.</p><p>—Entãojámeferreitambém.</p><p>Elesorriuemeencarousignificativamente:</p><p>—Esqueçaamoraleescrevaseuromance,meucaro!</p><p>—Deimediato—retruquei,ignorandoseucomentário—,nãovejoemque</p><p>sentidoofeminismopoderiaserpositivoparaummachista.</p><p>—Paraummachistacomoeu.Machistastacanhosepobressedãomuitomal</p><p>comofeminismo.</p><p>—Sim,euentendi.Sónãoentendiporqueofeminismoseriabomparaesse</p><p>primeirotipodemachista.</p><p>— Você deve usar o verbo no presente e não no futuro do pretérito. O</p><p>feminismojáébomparahomenscomoeu.Aliás,éútilhámaisdeumséculo.</p><p>—Possosaber,apenasparaterumaideiadoseustatus,oquevocêfazpara</p><p>viver?</p><p>— Sou empreiteiro. Construo edifícios de apartamentos, hotéis, shopping</p><p>centers, estradas, hidrelétricas e aeroportos em toda a América do Sul e em</p><p>algunspaísesdaÁfrica.Tambémfaçoalgunsservicinhosparaogoverno,claro.E</p><p>sou consultor para algumas fundações humanitárias e ambientalistas</p><p>importantes.</p><p>—Entendi.Mas,porfavor,prossiga.</p><p>Nathan se aprumou na cadeira, desfez o nó do cachecol, fez sinal para o</p><p>garçomtrazeragarrafadecachaçae,tornandoameencarar,respiroufundo:</p><p>—Emprimeiro lugar,precisoesclarecerqueo feminismoécompletamente</p><p>antinatural. E, entenda, não quero dizer com isso que ele seja meramente</p><p>artificial.Ofeminismonãoéapenasumainvençãohumana:éumainvençãoque</p><p>atenta contra a natureza humana. Não é um produto cultural: é um produto</p><p>anticultural.Eleagesobreacivilizaçãocomoumácidocorruptor.</p><p>— E vocês, machistas das altas esferas, não são humanos? Não são</p><p>prejudicados?</p><p>Eleriu:</p><p>—Calma,vocêirámeentender.Souumniilista,lembra?</p><p>—Ah,éverdade.</p><p>— Deixe-me explicar melhor… — e, pensativo, parecia consultar notas</p><p>guardadasnamemória.—Porexemplo:vocêéumdefensordoarmamentocivil,</p><p>nãoé?</p><p>— Sim, para autodefesa.Apenas os cidadãos armados são realmente livres,</p><p>pois,emúltimocaso,podemdefender-seatémesmodeseusgovernos.Éporisso</p><p>quenuncaveremosumaditaduranaSuíçaeéporissoqueHitlerdesarmouos</p><p>judeusantesdemandá-losparaoscamposdeextermínio.</p><p>—Ouseja,asarmasnãosãoboasoumásemsimesmas.</p><p>—Não,dependedequemastememmãos.</p><p>—Parahomenscomoeu,ofeminismoéumaarmadessetipo.Paraosdemais</p><p>homens,éumaarmaperversaemsimesma.</p><p>Sorri:</p><p>—Porfavor,desenvolvaoraciocínio.</p><p>Elesorriudevolta:</p><p>—Voudesenvolver.Peçoapenasquetenhapaciência.Nãosoutãobomcom</p><p>as palavras quanto você, sem falar que ainda estou tentando articular alguns</p><p>pontosespecíficos.</p><p>—Istoaquiéumbrainstormparaseulivro,então.</p><p>—Brainstorm ?Ah, sim—eacendeuumcigarro,dourandoo rostocoma</p><p>chamadoisqueiro.—Maisoumenosisso.Maseunãoprecisodenovasideias</p><p>ou de me convencer de nada. Já fui convencido pelos fatos. Preciso apenas</p><p>descobrir como expressar essas ideias e em que ordem colocá-las no papel…</p><p>Enfim, preciso estabelecer uma hierarquia entre elas. Creio que atingirei meu</p><p>objetivocomomeroatodeexpô-lasaalguémquesaibaouvir.</p><p>—Certo,Nathan.Prossiga,então.</p><p>Em silêncio, pensativo, meu interlocutor deu uma profunda tragada no</p><p>cigarroeficouaobservarasvolutasdafumaçaexpelida.Virououtrocopinhode</p><p>cachaçae,aofimdequaseumminuto,retomouofiodameada:</p><p>—Porsisó,ofeminismojamaisalcançariatodooplanetaporquesuavitória</p><p>significariaaderrocadadahumanidade.</p><p>—Eexatamenteporessarazão,você,umcrentedonada,querpromovê-lo.</p><p>—Querolhedarumempurrãozinho!Porque,naverdade,ofeminismoque</p><p>me interessa é aquele feminismo diluído, aquela ideologia aguada propagada</p><p>pelasrevistasfemininas,pelosblogsdegarotasmodernetes,pelosprogramasde</p><p>TV, pelas novelas da Globo, pelos filmes, pela literatura vulgar e assim por</p><p>diante.Ofeminismoradical,talcomoomachismofolclórico,tacanho,éridículo,</p><p>caricatoedestróiasimesmo.Sozinho, jamaisdestruiriaacivilização.Éapenas</p><p>uma ponta de lança que, por contraste, torna o feminismo açucarado mais</p><p>palatável.Qualquermulherquesintaalgumaatraçãonaturalporumhomemé</p><p>incapazdelevarumafeministaradicalcemporcentoasério.</p><p>— E qual é a diferença entre esses feminismos?— perguntei, virando em</p><p>seguidamaisumacachaça.</p><p>— É apenas uma diferença de intensidade, claro. Mas a questão é que o</p><p>“feminismo fraco”—vou chamá-lo assim—émais efetivo que o “feminismo</p><p>forte”.Águamoleempedradura…—esorriu.—Eédifícildistingui-lodamera</p><p>manifestaçãodajustiça.</p><p>—Dajustiça?</p><p>—Sim, da justiça.Nãome refiro aos tribunais, às leis,mas ao conceito de</p><p>justiça. Porque é verdade que, num mundo normal, a mulher merece, sim,</p><p>possuirdireitos,teraliberdadedeescolhercomquemviver,a liberdadedeire</p><p>vir,aliberdadedereuniãoededecidiroquefazerdaprópriavida.Issoéapenas</p><p>uma constatação justa. Para entender o valor disso, basta olhar como algumas</p><p>sociedades islâmicas são capazes de exagerar para o lado oposto: nelas, as</p><p>mulheressãopraticamentepropriedadesdoshomens,oque,paraumocidental,</p><p>édeprimentedesever.</p><p>—Ecomodistinguiro“feminismofraco”dessajustiça?</p><p>— Numa sociedade justa, as mulheres continuariam sendo femininas. E,</p><p>quandodigofemininas,nãomerefiroapenasàaparência,ouseja,aovestuário,à</p><p>maquiagem,aostrejeitosetc.Nadadisso.Todasessascoisas</p><p>oencarou,eele,cortês,fezumgestocom</p><p>amãoparaqueopolicialseguisseàsuafrente.Este,semnadadizer,dirigiu-se</p><p>lentamente até a porta da frente, adentrando a casa sem qualquer cerimônia.</p><p>Aindanocorredor,Paulotentouaveriguarseaquelecoldreestavaounãovazio,</p><p>mas,devidoàpenumbra,permaneceunadúvida.Nasala,Anitaestavasentada</p><p>no sofá e já bebericava duma taça de vinho. Em menos de um minuto, ela</p><p>montaraumacenadecasalapaixonado:astaças,agarrafa,umcobertorsobreas</p><p>pernas…Aonotarapresençadovisitante,levantou-seesorriu:—Boanoite—</p><p>disseela,comsimpatia.</p><p>—Boanoite.VocêdeveseradonaAnita.</p><p>Paulointerveio,vacilante:</p><p>—Amor,esteéosargento…</p><p>—Jairo—completouooutro.</p><p>—Isso.Jairo.Nossovizinho.Vocêconheceuamulherdelehoje.</p><p>Elaarregalouosolhos:</p><p>—Ah,sim!Maselanãomedissequeosenhoreradapolícia.</p><p>— Hoje em dia é muito perigoso ser da polícia — replicou o homem,</p><p>visivelmentevexado.—Agente raramente fala sobremeu trabalhocomquem</p><p>aindanão conhece. Sabe como é, o bairro andamuito perigoso.Nunca venho</p><p>paracasauniformizado.Hojeéumaexceção.</p><p>—Bom…—disseAnita,voltandoatomarassento.—Desculpeabagunça,a</p><p>genteaindanãoterminoudearrumaramudança.Osenhornãoquersesentar?</p><p>—elheindicouumapoltrona,noladoopostodasala,queelacertamentehavia</p><p>liberadodapilhadecaixasdepapelãoenquantoosdoishomensaindaestavam</p><p>nagaragem.</p><p>— Obrigado — murmurou o sargento, indo sentar-se na pontinha da</p><p>poltrona, longe do espaldar, a coluna arqueada para a frente, os cotovelos</p><p>apoiadosnosjoelhos.PauloeAnitatrocaramumolharfurtivo:osujeitonãose</p><p>sentia nada confortável, parecia antes tomado de extrema pressa, talvez até</p><p>mesmoderepulsa.Pareciaternojodapoltrona.Seriaaversãoamaconheiros?</p><p>—Osenhorquerbeberalgumacoisa?—perguntouPaulo,disfarçandouma</p><p>intensa tremura e sentando-se no sofá junto à esposa, de quem tomou a taça:</p><p>precisavaempurraraquelebaseadoparaoestômago.</p><p>—Não,obrigado—respondeuo sargento,olhandoparao chão.Estavana</p><p>cara que o policial pretendia dar-lhes um sermão, talvez atémesmo acusá-los</p><p>formalmenteporusodeentorpecentes.Aquelaindisposiçãoeracertamentefruto</p><p>dealgumadiscussãopréviacomaesposa,aqual,devidoaumaprovávelsimpatia</p><p>porAnita,nãoqueriaverojovemcasalemdificuldades.</p><p>—Olha…—começouPaulo, quase gaguejando.—O senhornosdesculpe</p><p>pelademoraematenderaporta.Agenteestavacomosomligado,conversando</p><p>e…</p><p>—Nãoprecisasedesculpar,doutorPaulo—interrompeu-oJairo,semerguer</p><p>orosto.—Euéquetenhodepedirdesculpas.Seiquesãorecém-casadoseque</p><p>devo ter interrompido ummomento de intimidade. Estou envergonhado com</p><p>minhainsistência.Maséqueprecisomuitoconversarcomvocês…</p><p>AnitaePaulovoltaramaentreolhar-se.</p><p>—Minha esposame disse que vocês são evangélicos,mas vejo que bebem</p><p>álcool.Asenhoraaténospresenteoucomumagarrafadevinho.</p><p>— Eu fui criada numa família católica— corrigiu-o Anita. — Os pais do</p><p>Paulo são protestantes. Se álcool fosse uma coisa assim tão ruim, o primeiro</p><p>milagredeJesusnãoteriasidoatransformaçãodeáguaemvinho.Osenhornão</p><p>acha?</p><p>O homem agora esfregava o rosto com ambas as mãos:—Mas vocês são</p><p>pessoasreligiosas,nãosão?—indagou,comcertairritaçãonavoz.</p><p>—NósconfiamosemDeus—respondeuPaulo,levantando-se,visivelmente</p><p>agitado. Pressentia que uma acusação de hipocrisia se formava na mente do</p><p>policial.Teriadeconfessar,nãopodiadeixarobigodedaquelehomemdistraí-lo.</p><p>Onarizdosujeitopareciaumovopousadosobreumaenormemoitanegra.Que</p><p>bigodão!Coisademariachi,pensou.Lembrou-seentãodotal“sombrero”preto</p><p>do Darth Vader e, na tentativa de evitar uma gargalhada insana e iminente,</p><p>tentouprenderarespiração.Tremiaaindamais.Era inevitável,chegaraahora.</p><p>Seucorponãoquerialheobedecer.Ougargalhava,ouconfessava.Oesforçoque</p><p>vinha despendendo para controlar os pensamentos não implicava um sucesso</p><p>equivalentenotocanteaocorpo.SuasmãosdenunciavamalgocomoParkinson,</p><p>a voz lhe saía comdificuldade. Era comoum flashback simultâneo de ecstasy,</p><p>ácido e anfetamina, sob influência dos quais o corpo não sossega senão ao</p><p>dançar.</p><p>— Quero perguntar uma coisa pra vocês. É importante — prosseguiu o</p><p>vizinho, enfatizandoaúltimapalavra,oquecolocouoalarmadoadvogadoem</p><p>movimento.</p><p>Aoveromaridoencaminhar-secambaleanteatéo sargento,Anita,quepor</p><p>segundos havia se deixado distrair pela intensa larica, teve um sobressalto.</p><p>Tentousegurá-lopelamão,masnãooalcançou.Nãoquislevantar-seeagarrá-lo,</p><p>poispareceria, senãosuspeito,nomínimoestranho.Suacabeçapôs-seàroda.</p><p>Veio-lheentãoàmente,emrápidasucessão, fragmentosdediversasdiscussões</p><p>mantidas com ele sobre o trabalho da polícia, mormente a maneira como a</p><p>imagem que tinham dos policiais mudou da água para o vinho assim que</p><p>deixaramaclínicadereabilitação.Lembrou-sedoacidentedecarroquesofreu</p><p>comopai,decomoapolíciamilitar,solícita,osajudou.Recordouosequestro-</p><p>relâmpago que sofrera um ano antes e como desejara e rezara por uma ação</p><p>policial, a qual de fato ocorreu sem qualquer resultado negativo, com os</p><p>bandidospresos.Lembrou-setambémdaépocaemque,agrilhoadapelovícioà</p><p>cocaína, não via aqueles homens senão como inimigos, uma atitude bastante</p><p>comum aos consumidores de todos os tipos de drogas, atitude que</p><p>inevitavelmente resvalanamais ancestral dasparanoias: o temor à autoridade.</p><p>Para um viciado em plena viagem psíquica, nada mais assustador do que a</p><p>presença súbita de um policial. Seria como agitar uma gaiola diante de um</p><p>canário. E a jovem acabou por recordar outro sequestro-relâmpago, estemais</p><p>infame, sofrido por um amigo, que caíra nasmãos de policiais corruptos com</p><p>uma quantidade razoável de cocaína. Em vez de prendê-lo conforme a lei, os</p><p>policiaisodetiveramnocarroenquantosuanamoradatevedeirsacarnumcaixa</p><p>automático alguns milhares de reais para pagar o resgate… Essas lembranças</p><p>contraditórias lhe invadiam a mente. Há bons homens, há homens maus,</p><p>pensava. Que tipo de policial seria o sargento Jairo? Anita respirou fundo. A</p><p>culpaquesentiaporterinduzidoomaridoafumarmaconhajustamentenaquele</p><p>dia recrudesceu. E, atordoada, finalmente notou que Paulo, em meio a seu</p><p>sofrimentomoral,desdeocomeçonãopretendiasenãoconfessar-se.</p><p>— Esta semana, eu matei uma pessoa — tornou Jairo, interrompendo os</p><p>pensamentos da jovem e os passos de Paulo, que estacou ameio caminho.—</p><p>QuerosabersevouproInferno!—concluiuosargentoe,esmagadoporumador</p><p>pungente,começouasoluçar.</p><p>Anita empalideceu. Paralisada, nem sequer piscava. Sua coragem jogou as</p><p>cartasnamesa e abandonouo jogo.Não sabiaoquedizerou fazer.Penetrara</p><p>num mundo novo, desconhecido, desses que só existem nos filmes e nos</p><p>noticiários. Seu olhar ia do sargento ao marido e deste ao primeiro numa</p><p>velocidadeincrível.Oqueaconteceriaagora?FoiPauloquemrompeuosilêncio.</p><p>—Osenhormatouumbandido?</p><p>—Não—respondeuJairo,atormentado.—Mateiumamoça.Umamãe.Ela</p><p>tinhaapenas26anos.Fazquatrodiasquenãoconsigodormir.</p><p>— Por que o senhor a matou? — prosseguiu Paulo, num tom de voz</p><p>excepcionalmentecalmo.</p><p>—Agentetavanumadiligência—disseJairo,emmeioaossoluços,acabeça</p><p>aindaabaixada.—Houveumassaltoaumcaixaeletrônico.Comexplosivos.A</p><p>gente tava perto. Então fomos chamados e,</p><p>depois de uma curta perseguição,</p><p>conseguimos interceptar o carro dos suspeitos. Eles bateramnoutro carro que</p><p>estavaestacionadoenãoconseguiramcontinuar.Opara-choquedocarrodeles</p><p>ficou preso no para-lamas do outro. Aí eles se esconderam atrás dos carros e</p><p>ficaramdisparandocontraagente.Unscincomeliantes.Umdelestinhaumfuzil</p><p>utilizado apenas pelo exército. Foi no início da madrugada, mas ainda tinha</p><p>gentenarua.Nocentrodacidadeédessejeito.Omovimentonãotemfim.</p><p>—Eessamoçaestavanarua.</p><p>— Eu sabia que um dia iria acabar matando alguém — continuou Jairo,</p><p>desconsolado, ignorando a observação.—Mas eu vinha me preparando para</p><p>lidar comamortedeumbandido,não com isso!Fazparteda guerramataro</p><p>inimigo,maseunãoestavapreparadoparamatarumapessoainocente.Éclaro</p><p>quenão!É comoumadoençahorrível, a gente pensa que só acontece comos</p><p>outros.Eujátinhaferidoalgunssuspeitosdurantediligências,perseguições,mas</p><p>nuncatinhamatadoninguém.Apolícianãoécomoaspessoasimaginam,nãoé</p><p>umbandode justiceiroscomlicençaparamatarequemataotempointeiro.É</p><p>claroquesempre temumespíritodeporconomeio,umamaçãpodre.Éclaro</p><p>quemesmo a gente, lá dentro, ouve falar de grupos de extermínio.Mas quem</p><p>nãoquerseenvolvernemficasabendoseéounãoumboato!Jádisse:écoisade</p><p>espíritodeporco!E esse tipodegente está em todo lugar,nãoé exclusividade</p><p>nossa.Agrandemaioriadospoliciaissótáfazendoseutrabalho,sustentandoa</p><p>própriafamília.</p><p>O sargentovoltouaafundaro rostonasmãose choroubaixinho, emitindo</p><p>um som sibilante de pavio aceso, como se uma bomba estivesse a ponto de</p><p>explodir. Anita permanecia muda, o coração confrangido. Estava mais</p><p>impressionada coma tranquilidade repentinamanifestadapelomaridodoque</p><p>comasrevelaçõesdopolicial.OmaisestranhoéquePauloestavaagoraeretoejá</p><p>nãotremia.</p><p>—EuvouparaoInferno?—tornouaindagarJairo,numsussurroplangente.</p><p>E, pela primeira vez desde que se sentara ali, ergueu o rosto para encarar seu</p><p>interlocutor.Tinhaosolhosinjetados,orostoinchadoerubro.</p><p>Paulo se aproximoue colocouamãodireita emseuombro:—A realidade</p><p>nãoéumamáquinaquerespondeautomaticamenteacertasações,sargento.</p><p>— Não matarás! — citou Jairo, angustiado. — Não é esse o primeiro</p><p>mandamento?</p><p>Paulosorriu,compassivo:</p><p>—Não.Oprimeiromandamentoé“AmarásaDeussobretodasascoisas”.E</p><p>isso também quer dizer: amarás a Deus atémesmomais do que amas ao teu</p><p>própriosofrimento.</p><p>— Mas eu matei, doutor Paulo! Eu matei! A moça estava lá, no carro</p><p>estacionado.Elatinhadoisfilhoseeumateiela!—evoltouaocultarorostonas</p><p>mãos.—Acoitadatinhaseescondidoquandoouviuosprimeirostiros…E,num</p><p>momentotenso,decessar-fogo,selevantouparaespiarpelajanela…</p><p>Pauloseagachoudiantedopolicial:</p><p>—SeuJairo,osenhornãoconfiaemDeus?</p><p>—Comopossoconfiaremalguémquenemseiserealmenteexiste?</p><p>Paulosorriu:</p><p>—Pelaciênciaepelafilosofia,qualquerumpodeconcluirqueouniversofoi</p><p>causadoporalgoalémdelemesmo.E,sendoouniversocomplexoeobedientea</p><p>leis, essa causa só pode ser inteligente.Antes dehaver coisas que sigam leis, é</p><p>precisoquehajaacriaçãodessasleis,easleisnãosãomateriais.</p><p>—Euentendooquevocêquerdizer,masissonãomesatisfaz.</p><p>— É por isso que Deus, por ser mais inteligente e amoroso do que suas</p><p>criaturas,decidiurevelar-senapessoadeNossoSenhor JesusCristo.UmDeus</p><p>entrenós!Issosatisfaz…—ePaulobuscouoolhardopolicial.—Aliás,seum</p><p>escritorécapazdecriarumpersonagempararepresentarasimesmodentrode</p><p>um livro, relacionando-se assim com outros personagens, por que Deus não</p><p>poderiaatuardamesmamaneiradiantedasuaCriação?Deusémenosdoque</p><p>umescritor?Umefeitonãopodesermaiordoquesuacausa!Ohomemnãoé</p><p>maioremaisespertodoqueDeus!</p><p>Osargentoaceitouoolhardoadvogado:</p><p>—Estemundojáéquaseuminferno,doutorPaulo.ÀsvezespensoqueDeus</p><p>não existe porque hámaldade demais nomundo. O senhor não faz ideia das</p><p>coisasquevejonodiaadia.</p><p>—Nossomundonãoéummundonormal,seuJairo.Vivemosisolados,em</p><p>quarentena cósmica, porquehouve aRebeliãodeLúcifer e a desobediênciado</p><p>casal adâmico. Mas, mesmo que não vejamos qualquer mudança material</p><p>durantenossavidanacarne,essasituaçãofatalmenteteráumfim.Precisamoster</p><p>esperançaeconfiarnabondadedivina.</p><p>—Nãosei…Eu…nãosei…</p><p>—Omaisimportanteéque,enquantoindivíduos,podemosnosreconectara</p><p>Deus agora mesmo. A quarentena se refere apenas à coletividade, apenas ao</p><p>planeta. Você pode conversar com Deus neste instante. Ele não é um amigo</p><p>imaginário.Vocêdeveacharqueareligiãosebaseiaapenasnaimaginação,né?</p><p>Ora, tudo, até mesmo a ciência, se baseia na imaginação. Há montes de</p><p>princípios e postulados que são dados como certos, mas que não podem ser</p><p>provados. Entende? “Todos os ângulos retos são iguais”, diz um desses</p><p>postulados.Ok,mas você achaque alguém saiu comparando todosos ângulos</p><p>retosdouniversoparasaberseissoéverdade?Claroquenão,seriaimpossível.É</p><p>praticamenteaféquesustentaasciênciaseasmatemáticas.Seumcientistanão</p><p>percebe isso,éporqueestá filosoficamentecego.Eessa fédeles temcomobase</p><p>nossacapacidadede imaginarcertosprincípioscomosendoreais.Sevocêacha</p><p>queDeusémerofrutodaimaginação,tentefalarcomEle.Insistaatécomeçara</p><p>falarapartirdocoração.PorqueomaisimpressionanteéqueEle,aSeupróprio</p><p>modo,quandoouvenossasinceridade,nosresponde.Essarespostapodenãoser</p><p>instantânea,maselaeventualmentechegaaténós.</p><p>Anita estava embasbacada com aquela cena. Não esperava presenciar tão</p><p>prontamenteumatalperformance.Omaridomudaracompletamentedeatitude!</p><p>Talvezporaindaestarsobefeitodobaseado,elaapreciavaacenacompletamente</p><p>desligadado espíritoda época.Até a luz lhepareciadiferente, como seos três</p><p>estivessemsoba iluminaçãode tochas.Ela jánãoviviao séculoXXI.Sentia-se</p><p>como uma romana, nas catacumbas, diante do discurso de um velho e sábio</p><p>apóstolo.Percebiacomoopolicialrealmentesofriaumareformaemsuasfeições,</p><p>sentindo-sepaulatinamenteconsolado.Eracomotestemunharummilagre.</p><p>—Mas,doutorPaulo—tornouosargento,avozembargada—,se isso for</p><p>verdade,porqueomandamentodiz“nãomatarás”?Nãocometiumpecado?Já</p><p>nãoestoucondenado?QuerdizerquesótenhodefalarcomDeusepronto,estou</p><p>salvo?</p><p>Paulolevantou-seedeualgunspassospelasala.Anitateveaimpressãodeque</p><p>mantinhaosolhos fechados.Então ele se voltounovamenteparaopolicial:—</p><p>SeuJairo,umatraduçãomaiscorretadomandamentoseria“nãoassassinarás”.</p><p>Querdizer:mesmoqueousodaforçalhesejanecessário,nãotenhaaintenção</p><p>dematar!Muitas vezes, amisericórdia necessita da força para auxiliar omais</p><p>fraco, jáqueestepodeestar sofrendosobospésdeumsujeitomais forte cujo</p><p>coraçãonãopossuisenãomalícia.Umguerreiro,umsoldado,deveagircomoos</p><p>samurais:cumprindoseudeversemenvolverseuego,semenvolversuaprópria</p><p>vontade.Éoqueeleschamamde“nãoação”,aaçãonãomotivadapeloego,mas,</p><p>sim,porumbemmaior.Mesmoumpaidefamília,numasociedadelivre,aberta,</p><p>umaquenãosejadominadapeloEstado,talcomoanossainfelizmenteé,temo</p><p>deverdemanterumaarmaemcasaparaprotegersua família.E,senecessário,</p><p>eledeveentregaraprópriavidaparasalvarasdesuaesposaedeseusfilhos.Um</p><p>policialdeverdade temdeagirdamesma forma.Nãopodedeixar-se envolver</p><p>emocionalmente,</p><p>não deve odiar os bandidos, que são seus inimigos — mas</p><p>tampoucodeveabster-sedecombatê-lossemprequeameacemasociedade.</p><p>—Maseunãomateiumbandido…Mateiumainocente!</p><p>—Eusei,seuJairo.Masfoiumacidente,nãofoi?Vocênãoteveaintençãode</p><p>matá-la.</p><p>Opolicialoencaroucomdesesperonoolhar:</p><p>—Eupenseiqueacabeçadelafosseacabeçadeumdosassaltantesatrásdo</p><p>carro.E,sim,euqueriamatarele!Elenãopretendiaseentregar,estavaatirando</p><p>pramataragente.Masentãoissoaconteceu.Eaculpaagoratámematando…Se</p><p>euestivessecomacabeçafria,comoosenhortádizendo…Seeunãoestivesse</p><p>com tanto medo de morrer… — e o sargento voltou a chorar baixinho,</p><p>encolhido,sacudindoocorpoparaafrenteeparatrás,presodeimensaangústia.</p><p>Paulovoltou-separaaesposa:</p><p>—Anita,meubem,ajoelhe-seaquiaonosso lado—etocandooombrodo</p><p>policial:— Sargento Jairo, ajoelhe-se aqui àminha frente. Vou rezar um pai-</p><p>nossoporvocêe,emseguida,pediremoraçãoporsuaalma.Operdãoéaúnica</p><p>salvação.Deusjáoperdoou,masosenhorsósentiráaaçãodesseperdãoquando</p><p>perdoar a si mesmo. Para tanto, o único pré-requisito é o arrependimento</p><p>sincero.Evejoquevocêestáarrependido.</p><p>— Eu não rezo desde moleque — murmurou seu Jairo, ajoelhando-se. —</p><p>Achoquenemmelembromaiscomoé.</p><p>—Não se preocupe.Apenas ouçaminhas palavras.O pai-nosso traz em si</p><p>todosos elementos importantes, tudooquepodemospedir eoferecer aDeus.</p><p>Funciona como um protocolo formal, umamaneira de estabelecer a conexão.</p><p>Depois, com a oração, falamos diretamente a Deus, informalmente, tal como</p><p>somosesentimos,comoquemsedirigeaumamigo.Entende?</p><p>—Entendo.</p><p>—Agorafechemosolhos.</p><p>AnitaeseuJairo,dejoelhos,fecharamosolhos.PauloCésar,comautoridade,</p><p>retomouapalavra:—PainossoqueestaisnoCéu,nocentromesmodetodasas</p><p>coisas, pessoalmente presente na Ilha Estacionária Paradisíaca, núcleo singular</p><p>doUniversoCentralModelo, e espiritualmente presente nomeu coração e no</p><p>coração demeus irmãos,mortais ascendentes; santificado seja o Vosso nome,</p><p>meuDeus!,oúnicoquepodeverdadeiramentedizerEUSOU…Venhaanóso</p><p>VossoReino,venhaanósoslaçosdaVossaFamíliaCósmica…Esejafeita,nãoa</p><p>minha,nãoanossa,masaVossavontade,assimnaTerracomoemtodaavasta</p><p>Criação…Opãonossodecadadiadai-noshoje:opãoparaocorpo,opãoparaa</p><p>mente,opãoparao espírito…Eperdoai asnossasofensas e asnossasdívidas</p><p>cármicas, na medida em que nós perdoamos a nossos ofensores e a nossos</p><p>devedores…Enãonosdeixeis,Senhor,cairemtentação:natentaçãodaira,do</p><p>medo,dodesespero…na tentaçãoda inveja,dociúme,do ressentimento…na</p><p>tentaçãodapreguiça,dacovardia,doisolamento…Nãonosdeixeis,Senhor,cair</p><p>em tentação!Mas, se escorregarmos, Senhor, livrai-nosde todoomal!Porque</p><p>VossoéoPoder,oReinoeaGlória,pelosséculosdosséculos…Amém!</p><p>—Amém—repetiramemuníssonoAnitaeJairo,emocionados.</p><p>Pauloprosseguiu:</p><p>— Senhor, estamos diante de nosso próximo, de nosso vizinho, o sargento</p><p>JairodeQueirós,cujocoraçãoestádespedaçadopelaculpa.Vóssabeis,Senhor,</p><p>melhordoqueeu,quãoarrependidoeleestápelamortequecausou.Umafamília</p><p>perdeusuamãe,eJairosentegrandedificuldadedeseperdoar.Sabemosqueele</p><p>nãoseconsolarádeumahoraparaoutra,sabemosqueeleprovavelmentesentirá</p><p>necessidadedepedirperdãoàprópriafamíliaqueeleatingiutãoduramente.Mas</p><p>Vós,meuPai,sabeisqueeleéumbomhomem,umapessoaretaeque,mesmo</p><p>tendoseesquecidodeVósportantotempo,temprocuradoobservarajustiçano</p><p>seu dia a dia. Por favor, meu Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo,</p><p>pedimosporestehomem,quetambéméumpaidefamíliaeque,agora,retorna</p><p>àVossa FamíliaUniversal.Ajudai-o, Senhor, a compreender o significado e o</p><p>valordessatristeexperiência.Queelecresçaemfé,empaciênciaeamor,epossa</p><p>dedicar-se com ainda mais afinco à difícil tarefa que lhe cabe. A vida e a</p><p>segurança de muitíssimas pessoas depende do serviço dele e de seus colegas.</p><p>Aqui,juntos,agradecemosporessaGraça,Pai.Queassimseja.</p><p>—Queassimseja—repetiuAnita.</p><p>Nisto,osargentosejogouaospésdePauloemprantos:—Obrigado,doutor!</p><p>Obrigado!</p><p>Paulo se abaixou e o abraçou. Ficaram assim, quase doisminutos sem que</p><p>ninguémdissesseumaúnicapalavra.Anitachoravaemsilêncio,tocadanomais</p><p>fundo de sua alma. O choro do policial era agora de alívio. Uma força</p><p>sobrenatural apoderara-se dele e seu rosto finalmente trazia a marca da</p><p>esperança.Paulosabiaqueaindahaveriaumaqueoutrarecaída.Masoprimeiro</p><p>passoforadado.</p><p>Osargento,então,afastando-sedePauloeenxugandoosolhoscomascostas</p><p>damãodireita,pediuumcopod’água,queAnitaapressou-seem lhe servir.O</p><p>casalobservavaagoraafragilidadeeahumanidadedaquelehomemque,minutos</p><p>antes,tantomedolhesimpingira.Avidaémuitaestranha.</p><p>—Agradeçoimensamenteavocêsdois—disseele,jádepé.—Precisoirpra</p><p>casa agora,minhamulherdeve estar preocupada.Vimdiretopra cá, ela ainda</p><p>nãosabequevolteidotrabalho—eestendeuumadasmãosparaAnita,quea</p><p>apertoutimidamente.</p><p>QuandoopolicialjásaíapelaportaabertaporPaulo,Anitavoltouachamá-</p><p>lo: — Seu Jairo! O senhor está esquecendo isto aqui! — e, segurando pela</p><p>pontinha do cano, lhe estendeu um revólver calibre .38 que ficara caído ao</p><p>tapete.</p><p>—Obrigado, dona Anita.Me desculpe— e lhe sorriu, tomando a arma e</p><p>devolvendo-aaocoldre.</p><p>Pauloo acompanhou até o portão, e, quando já ia se afastando, o sargento</p><p>parou, coçou a cabeça, retornou e lhe disse:—Doutor PauloCésar, posso lhe</p><p>pedirumaúltimacoisa?</p><p>—Claro,seuJairo.</p><p>Ooutro limpouagarganta,embaraçado,edisse,quase sussurrando:—Por</p><p>favor,não fumemaismaconha.O senhor ébomdemaispra isso.Edeve estar</p><p>cientedomalqueotráficodedrogascausaàsociedade.</p><p>Paulo, sem nenhum constrangimento, mas um tanto aturdido, sorriu: —</p><p>Entãoosenhorpercebeu?</p><p>—Claro,fazpartedomeutrabalho,né?</p><p>—Nãosepreocupe,seuJairo—dissePaulo,comcertatimidez.—Umamigo</p><p>meucostumadizerquemuitoscaminhoslevamaDeus,equeatémesmoodiabo</p><p>podenoslevaraDeus.OdiaboquemelevouaDeusforamasdrogas.Omesmo</p><p>aconteceu com Anita. E, hoje, enquanto desempacotávamos a mudança,</p><p>encontramos um último baseado e caímos em tentação! Mas, tal como disse</p><p>agorinha,ao rezar,nossoPaiCelestial, apesardenossoescorregão,nãoapenas</p><p>noslivroudomal,mastambémnosajudouarealizarumgrandebem.</p><p>— O senhor viu aquele filme Os intocáveis ? — tornou Jairo, num tom</p><p>amigável.</p><p>—ComKevinCostner?</p><p>—Essemesmo.Eaqueleatorquefoiomelhor007.</p><p>—SeanConnery.</p><p>— Isso, acho que é esse. Então… no final, após prender Al Capone, um</p><p>repórter se aproxima do Eliot Ness dizendo que as bebidas alcoólicas tinham</p><p>acabadode ser liberadas. E aí pergunta o que ele faria a respeito, já que tinha</p><p>enfrentadoocontrabandoeocomérciodelasportantotempo.</p><p>—Achoquemelembrodisso.</p><p>—EoEliotNessdiz:sejáliberaramoálcool,voutomarumdrinque.</p><p>Pauloriu.</p><p>— Eu fumaria um cigarro desses com você, doutor Paulo, se um dia fosse</p><p>liberado.Mas,porenquanto,sóhácrimeportrásdisso,muitasmortes.</p><p>— Seu Jairo, eu agradeceria seu convite, mas me recusaria. O senhor</p><p>certamentenuncafoiumusuáriodedrogas.Nãodevesabercomoousocrônico</p><p>dessassubstânciaspodedespertarnossosmonstrosepavores.Aliás,euquaseme</p><p>borreinascalçasquandoovipelajanela…</p><p>Agorafoiosargentoquemriu.</p><p>—Sem</p><p>falar—prosseguiuPaulo—queaatualondadeliberaçãodasdrogas</p><p>vem sendo orquestrada para dar aindamais poder aos produtores, já que eles</p><p>compartilhamdessamesmaideologiapolíticaquemandahojeemnossavida.O</p><p>senhordeve saber:progressismo, comunismo, socialismo, estatismo,no fundo,</p><p>sãoamesmacoisa.Eparecequeessaideologiaémaisefetivaquandoamenteda</p><p>populaçãoestádistraídaouassustada.</p><p>—Bom,dissoeunãoentendonada,doutor.Mas…enfim,euprecisavadizer</p><p>issoprosenhor.</p><p>Apertaram as mãos com firmeza, fitando-se nos olhos fraternalmente, e o</p><p>sargentoentãodirigiu-seàcasaaolado,ondefechouoportãocomestrondo.</p><p>Quando Paulo entrou na sala, Anita estava no sofá, sentada de pernas</p><p>cruzadas, com dois dedos metidos no pote de Nutella. Ele se aproximou e</p><p>desabouaoladodela.</p><p>—Paulo,tôtãoorgulhosadevocê!Ascoisasquevocêdisse…</p><p>—Bonita—disseele, exausto—,não façoamaismínima ideiadoque foi</p><p>queeudisse!Lembrodepartes!Amaconhaacaboucomaminhamemória.</p><p>—Não!VocênãoselembraporquefoioEspíritoSanto!</p><p>—…acobertadopelobeque.</p><p>—Bobo—eobeijouternamente.—Pelomenososargentonãodesconfiou</p><p>denada,né?</p><p>—Ah,é.Nãodesconfioudenadicadenada—gracejouele.—Mesmoassim</p><p>— e a puxou pelo braço, deitando-a de bruços no colo— vocêmerece umas</p><p>palmadaspeloquemeaprontouhoje.SuaEva!</p><p>—Sememachucar,vouàdelegaciadamulher,viu—replicou,divertida.</p><p>—Vai não. Omais provável é que você vá contar tudo pra sua amiga do</p><p>Cinquentatonsdecinza.</p><p>Elariu.Eelelhedeuumasboaspalmadas.</p><p>Opedintedometrô</p><p>DoutorJoãoPintoGrandedesceuasescadasdaestaçãoConceiçãodometrô,na</p><p>zona sul de São Paulo, e se dirigiu até a área de embarque. Era um domingo</p><p>claro,depoucasnuvens,masfaziamuitofrio—nadaincomumparaumamanhã</p><p>de fins de junho. Levava consigo o livro que prometera ao amigo que ora ia</p><p>visitar:Ocritério ,deJaimeBalmes,editadopelamíticaLivrariaEditoraLogos.</p><p>TomásCasarini, o amigo, um escultor de temperamento tipicamente artístico,</p><p>certamentenãoabordariaaobrademaneirasistemática,sisuda,comoofariaum</p><p>intelectual comum, mas, conforme lhe era costume, retiraria do texto</p><p>interessantes insights.Claro,odoutorpermaneceraumbomtempoemdúvida</p><p>sobretalempréstimo:ora,aquelecretinoviviaperdendoseuslivros!Emprestá-lo</p><p>ounão emprestá-lo— eis a questãoque o afligira antes de sair de casa e que,</p><p>voltaemeia,aindaofaziaretorceroslábios.</p><p>—Nãocorrenaminha frente, filho!—diziaumsujeito,aodeixaraescada</p><p>rolante, buscando a mão de um garoto e trazendo o advogado de volta à</p><p>realidade.</p><p>Emmenos de umminuto, a composição, vinda do Jabaquara, adentrou a</p><p>estação, e as poucas dezenas de pessoas ali presentes se aproximaramda faixa</p><p>amarela.Os vagões pararam, as portas se abriram, e calhoude odoutorPinto</p><p>escolherumvagãocomamaioriadeseusassentosdesocupados.Entrou,sentou-</p><p>sedecostasparaajanela,e,numassentoperpendicularaoseu,àdireita,deixou-</p><p>se desabar com visível cansaço um senhor de seus 80 anos.Do outro lado do</p><p>corredor, sem parar de falar um segundo, ambas com grossos cachecóis,</p><p>sentaram-se ombro a ombro duas mulheres de meia-idade: criticavam</p><p>duramente o andamento de uma telenovela: “Onde já se viu uma mãe achar</p><p>normal a filha ser garota de programa?”, indagava uma delas. Após o aviso</p><p>sonoro,asportassefecharameometrôpartiu.</p><p>Distribuídasaoacaso,havianaquelevagãooutrasdozepessoas,e,àexceção</p><p>do doutor Pinto, todas as demais jámantinham ou os olhos baixos, perdidos</p><p>algures,ouvidradosemseuscelulares,ouentão fixosemseupróprioreflexoà</p><p>janeladometrô,tudocomofitoinconscientedeevitaroconstrangedorcontato</p><p>direto com as janelas das almas alheias. O companheiro de viagem mais</p><p>próximo, alémde cansado, parecia particularmente infenso à presençade seus</p><p>semelhantes.Odoutor,contraseucostumedeinvestigarasopiniõesecrençasdo</p><p>próximo, sentiu que não seria uma boa ideia introduzi-lo num diálogo. Pelo</p><p>jeito, pensou, omelhor a fazer era também alienar-se. Sem querer, pois, ferir</p><p>suscetibilidadescomsuacuriosidadenatural,abriunumapáginaaoacasoolivro</p><p>quetinhaemmãos.Eleu:“Concluamos.Seriaportantocontraarazãoeajustiça</p><p>acreditarnomalsemrazõessuficientes,eemnossosjuízostomarnossamalícia</p><p>comogarantiadaverdade.”Eentãoconferiuo títulodaquelequeerao sétimo</p><p>capítulo:“Alógicadeacordocomacaridade.”</p><p>“Ah, Tomás…”, pensou o doutor. “Eu o proíbo de perder mais este livro!</p><p>Estou confiando em você. Se perdê-lo, meu amigo, eu nunca mais lhe</p><p>emprestareinada!”,esorriu.</p><p>NaestaçãoSãoJudasentraramnovospassageiros,e,assimqueacomposição</p><p>retomou omovimento, postou-se à frente dos dois homens um rapaz vestido</p><p>humildemente: a roupa e o par de tênis já bastante gastos, um gorro de lã</p><p>encardidaeumcasacodenylonbastantefinoquemaldeviaprotegê-lodeuma</p><p>brisa. Estranhando aquela excessiva proximidade, visto que o vagão ainda não</p><p>estavacheio,odoutorolhouparacima,fitando-odiretamentenosolhos.</p><p>— O senhor pode me arranjar vinte reais? Ainda não comi nada hoje —</p><p>apressou-seosujeito.</p><p>— Claro — respondeu prontamente o doutor Pinto, levantando-se</p><p>ligeiramente para retirar a carteira do bolso traseiro das calças. Abriu-a,</p><p>encontrou duas notas de dez e as entregou ao homem, que, aparentemente</p><p>surpreso com aquela atitude desprovida de hesitação, agradeceu com um</p><p>silenciosoeexageradogestodacabeça.Elogoseretirou,colocando-seàfrenteda</p><p>portamaispróxima.</p><p>Ovizinhodeassentododoutor,realçandosuaaparênciadepoucosamigos,</p><p>começouaresmungar.Pareciaindignadocomoquehaviapresenciado.</p><p>—Osenhorestásesentindomal?—indagouodoutor,solícito.</p><p>Ovelho lhe atirouumolhar cínico acompanhadoporum sorrisoquemais</p><p>pareciaumesgar:</p><p>—Se estoume sentindo…—e desistiu da frase, irritado.—Ai, ai…— e,</p><p>antesdeprosseguir,deuumlongosuspiro.—Prasersincero,depoisdevervocê</p><p>agirfeitoumamocinhasimplóriadointerior,sim,eutômesentindomal.Muito</p><p>mal.</p><p>O rapaz, que ainda se mantinha diante da porta, alcançou ouvir aquelas</p><p>palavrase,visivelmenteenvergonhado,baixouacabeça.Ovelho,queestavade</p><p>costasparaaporta,nãooviu,masdoutorPintonãoperdeuacena.</p><p>—Desculpe—disseodoutor, tornandoaretiraracarteiradobolso.—Eu</p><p>devotermeenganado.Nãotinhapercebidoqueestacarteiralhepertencia.</p><p>—Comoé?—fezovelho,confuso.</p><p>— Na verdade… — tornou o doutor, revirando os documentos ali</p><p>encontrados.—Sim,éminhacarteiramesmo.Esquisito,não?Penseiquetivesse</p><p>dadoseudinheiroparaogaroto—esorriu,divertido.</p><p>Ooutrorebolounoassento,virando-separaointerlocutor:</p><p>—Olha,vocêpodebancaroengraçadinhocomigo,mascontinuasendoum</p><p>simplório, umavítima ideal para trapaceiros.Eopior é quenãopercebe estar</p><p>estimulandoessagente!Eupegoestemetrôquasetodososdiaseesbarronesses</p><p>tiposotempointeiro.Éporexistirotáriosnomundoqueossafadoscontinuam</p><p>aparecendoaosmontes.Muitoobrigado!</p><p>O advogado lembrou-se do trecho que havia acabado de ler no livro de</p><p>Balmes—“tomarnossamalíciacomogarantiadaverdadeetc.”—esentiuum</p><p>discreto arrepio: alguém lhe dissera certa vez que coincidências desse gênero</p><p>costumamtrazervaliosaslições.</p><p>— Espero que o senhor desculpeminha boutade— tornou o doutor, com</p><p>segurançaesimpatianavoz.—Mas…seráquepossolhefazerumapergunta?</p><p>—</p><p>Oqueé?—indagouovelho,aindademauhumor.</p><p>—Nãosoumuitobomemanalisaraspessoas.Tenhoamaniadaconfiançae</p><p>deixoorestocomDeus.Enfim…comoosenhorsabequeaquelerapazéapenas</p><p>um golpista? — e doutor Pinto aplicou à sua expressão a mais ingênua</p><p>curiosidade. Seus olhos eram como os de ummenino de seis anos de idade a</p><p>demandarasabedoriadeumadulto.</p><p>—Uê!—exclamouovelho,coçandoacabeça,semsaberseseuinterlocutor</p><p>estavaounãoalhepregaralgumapeça.—Euapenassei.Tenhoexperiênciacom</p><p>essascoisas.Jámepassarampratrásmuitasvezesnessavida.</p><p>—Hum,entendo.Pelomenosnão foiporqueorapazembarcounaestação</p><p>SãoJudas,né?OsenhorhádesaberquenãosetratadeJudasIscariotes…</p><p>Ovelhovoltouasorrircinicamente:</p><p>—Vocêjáestábemgrisalho,amigo.Nãoémaisummoleque.Mas,pramim,</p><p>apesardefalardifícil,écomosefosse:fazpiadinhaseacreditaemqualquerum!</p><p>Ah,vá!</p><p>—Vou.VouparaSantanareverumvelhocolegadecolégio.Comoumgaroto</p><p>disciplinado,voltareipontualmenteàsseisemeiadatarde—atalhouodoutor,</p><p>sorrindo. O velho, como se realmente lidasse com um menino, limitou-se a</p><p>sacudiracabeça.—SeosenhornãofordescerantesdeSantana—prosseguiuo</p><p>advogado,apósalgunssegundosdesilêncio—,talvezpossameexplicarmelhor</p><p>seumétodoparaleraverdadenaspessoas.</p><p>—Não tenho nenhummétodo— contestou de pronto o velho, coçando o</p><p>pescoçovermelho.—Eusimplesmentesintocheirodevelhacariadelonge!Enão</p><p>interessaaosenhoraondeireidescer.</p><p>Ao ver-se tratado pela primeira vez como “senhor”, doutor Pinto resolveu</p><p>levar adiante aquela investigação. Certamente, algum grau de confiança havia</p><p>sido estabelecido.Esse “senhor”, dito semqualquer tomde chacota, eramuito</p><p>maissincerodoqueaquele“amigo”precedente.Àvoltadeles,apesardosilêncio</p><p>—asduasmulheresjánãofalavamdanovelaoudequalqueroutroassunto—,</p><p>muitas pessoas demonstravam discreto interesse naquele diálogo: pequenos</p><p>sorrisos,olhadelasfurtivas,cochichos…</p><p>—Eseeulhedissesse—voltouàcargaoadvogado,quasenumsussurro—</p><p>queeuestoumancomunadocomaquelerapaz?</p><p>Aoouviraqueladeclaração,orapazvirouacabeçanadireçãododoutor,mas,</p><p>espantado,nadadisse.Ovelhoarregalouosolhos:</p><p>—Você…oquê?Entãovocêsdois…estãoagindojuntos?!</p><p>—Sim.Elepededinheiroeeulhedouumaboaquantia,quebrandoassimo</p><p>gelo do coração dos demais, que acabam abrindo a própria carteira. E, mais</p><p>tarde,dividimosomontante.</p><p>— Rá! Eu sabia! — riu-se o velho e, num átimo, agarrou-se ao braço do</p><p>doutor.—Quandoagentechegaràpróximaestação,vouchamarapolíciaete</p><p>entregar.Quebandodepilantras!Eusabia!Tinhacerteza!</p><p>Foiavezdeodoutordarumaboarisada:</p><p>—Entãoosenhorjásabiaqueeusouumpilantra?</p><p>—Claro!Esseseujeitão…Éóbvioqueestãoaprontandojuntos.</p><p>—E se eu lhe disser agora que estou blefando?Eu e o garotonão estamos</p><p>juntos.</p><p>—Hã?Comoé?!</p><p>—Nãoestamos.Eusóqueriaverificarseseufaroérealmenteinfalível.Vejo</p><p>agoraque,defato,nãoé.Souinocente.E,emboranãotenhacerteza,tampouco</p><p>acredito que o garoto esteja passando os outros para trás. Ele realmente me</p><p>parecefaminto.</p><p>—Nãoacreditonosenhor—tornouovelho,indignado.</p><p>—Nãoacreditaemqualparte?</p><p>—Queosenhorsejainocente.</p><p>DoutorPintosorriu:</p><p>— Talvez o senhor esteja sentindo o cheiro da minha profissão, a qual,</p><p>infelizmente,nãogozadeboa famananossasociedade—ecolocouamãono</p><p>bolsodopaletó.—Eisomeucartão.</p><p>Semsoltarobraçododoutor,queseguravajásemmuitaconvicção,ovelho</p><p>tomou o cartão com a outra mão. Apertou os olhos, fazendo um tremendo</p><p>esforçoparaenxergar.</p><p>—Usemeusóculosdeleitura—disseodoutor.</p><p>Ovelhofezummuxoxo, largouobraçodointerlocutoreaceitouosóculos.</p><p>Voltouaapertarosolhos,destavez,semmuitoesforço.</p><p>—Entãoosenhoréumadvogado—disseafinal.—Issoexplicamuitacoisa.</p><p>Mas…Oquê?!Istoéalgumapiada?</p><p>—Não,soumesmoadvogado.Osenhorpodeguardarocartão,casoprecise</p><p>deum.</p><p>—Nãomerefiroaisso.Querodizer…Oseusobrenomeé…PintoGrande?!</p><p>—Sim,éomeusobrenome.Muitoprazer.</p><p>—Prazer…?Issonãoépossível.Seuspais…</p><p>—Osenhorhádeconvir—disseodoutor, interrompendo-o—queéum</p><p>nomebemmelhordoquePintoPequenoouCaioPinto,não?</p><p>O velho, para seu próprio assombro, deu uma súbita e gostosa risada, que,</p><p>consumindo-lhe o fôlego, o fez engasgar-se. O cartão tremia em sua mão,</p><p>enquantolutavaparaconseguirrespirar.Ficouroxo,eodoutortevedelhedar</p><p>umas palmadas nas costas. Ao fim de meio minuto, recuperou-se e, ainda</p><p>resfolegante,deixou-seafundarnoassento,otroncoarqueado,mantendooolhar</p><p>fixonodoutorPinto.</p><p>—O senhor… é uma figura, sabe?— comentou finalmente o velho, num</p><p>quasesorriso.</p><p>—Nãoéaprimeiravezquemedizemisso.</p><p>—Imagino.</p><p>—Mas—insistiuoadvogado—podemosretomarnossoassunto?Gostaria</p><p>delhecontarumahistória.</p><p>O velho ficara tão cansado com aquele engasgo repentino que parecia ter</p><p>entrado em estado alfa, uma expressão de monge extático nos lábios. Apesar</p><p>disso,seuolhartraíatambémumcertoembaraço.</p><p>— Ainda estamos no Paraíso… — murmurou o velho. — Vou descer no</p><p>Carandiru.Sequiser,osenhorpodemecontarumastrêshistórias.</p><p>—Certo,certo.Primeiro—começouodoutor—queromedesculpare lhe</p><p>explicarporque afirmei que estavamancomunado como rapaz…—e, tendo</p><p>dito isto, notou que o pedinte, cabisbaixo e inquieto, ainda permanecia atento</p><p>àquelaconversa.</p><p>Ovelhofranziuoslábios,semnadadizer,fitandoodoutorcomatenção.</p><p>—Enfim, foi algo quemepassouno início dos anos 1990—prosseguiu o</p><p>doutor,aprumando-senoassento.—Eutrabalhavanumescritóriodeadvocacia</p><p>na Vila Olímpia. Um dia, ao final do expediente, e carregando uma caixa de</p><p>papelão enorme cheia de documentos, peguei um ônibus que me levaria a</p><p>Pinheiros, onde vivia comminha esposa. Eu estava trabalhando num caso de</p><p>divórciobastantecomplicadoepretendialeraquelapapeladaemcasa.Osônibus</p><p>que circulam por esses bairros centrais, o senhor deve saber, são muito mais</p><p>confortáveisenuncaficamtãolotadosquantoosquesedirigemàperiferia.—O</p><p>velho assentiu com a cabeça. — Por isso, apesar do horário — continuou o</p><p>doutor —, consegui me sentar ao fundo do ônibus. Lá pelas tantas, quando</p><p>seguíamos pela Faria Lima, surgiu junto ao cobrador, ainda do lado de lá da</p><p>roleta, um sujeitomagérrimo, o rostomacilento, de ar extremamente doentio.</p><p>Pareciaumespantalhovivo.Eelecomeçouabaterpalmaseachamaraatenção</p><p>dosdemaispassageiros.Pensei:lávemmaisumpedinte,talvezumvendedor,já</p><p>que ele trazia uma sacola enorme nas mãos, como essas que vemos na feira.</p><p>Quandoamaioriasilenciou,porquehásempreumaminoriaquenãoseimporta</p><p>com nada e rejeita dar atenção a quem quer que seja, o moço começou a</p><p>descreversuaterrívelsituação:eleeaesposahaviamcontraídoaids,perdidoseus</p><p>empregos, e já não possuíam dinheiro suficiente para comprar remédios ou</p><p>sequermais fraldões— sim, fraldas para adultos, exatamente o que ele trazia</p><p>naquela sacola! Ele disse que a mulher não controlava mais os intestinos, e,</p><p>retirando o pacote de fraldões da bolsa, exibiu-o aos demais. Eu ouvia aquilo</p><p>tudo com o coração na mão, cheio de espanto, como se houvesse corvos</p><p>invisíveis empoleirados em seus finosbraçosdepalha.Eoqueme causouum</p><p>mal-estaraindamaisintensofoinotarquemuitospassageirosdesviavamoolhar</p><p>daquelacena.Talvezporque,desconfiando</p><p>quepudessemsesentirtocadoscaso</p><p>oobservassemdiretamente,preferiamignoraraquelepedidodesocorro,queera</p><p>muito mais visual do que sonoro. E o moço encerrou sua ladainha dizendo</p><p>exatamente isto: “Pelo amor de Deus, meus irmãos! Eu não tenho dinheiro</p><p>sequer para pagar esta passagem de ônibus.” Para mim, foi o bastante: sem</p><p>pensarduasvezes,numimpulso,eumelevantei,pedilicençaàpessoaqueestava</p><p>aomeu ladoecaminheipelocorredoratéopobrerapaz.Lembroque,naquele</p><p>instante, senti o mais vívido horror, pois imaginei a mim mesmo e à minha</p><p>esposanaquelaterrívelsituação.Então,aochegaràroleta,abriacarteira,retirei</p><p>tudo o que tinha, que infelizmente nem era muito — e o advogado deu de</p><p>ombros —, e lhe entreguei aquelas notas com carimbos de URV. Lembra-se</p><p>disso?Eramcruzadosnovostornando-seunidadesreaisdevalor,orealdehoje.</p><p>—É,eumelembro.</p><p>—Omoçoestendeuasmãosemalpodiaacreditaremseusprópriosolhos.O</p><p>senhor,porfavor,perceba:nãoestoumegabandodomeugesto.Nuncaocontei</p><p>sequer àminhamulher. Juro! O que amão direita dá não precisa chegar aos</p><p>ouvidosdaesquerda,ecoisaetal.Entende?</p><p>—Talvez.</p><p>— Bem… — e, olhando rapidamente em torno, o doutor notou quantas</p><p>fisionomias novas havia naquele vagão. A única presença constante era a do</p><p>pedinte.—Aquestãoéqueaperplexidadedorapaztambémmedeixouperplexo</p><p>—prosseguiu.—“Então”,penseicomigo,“querdizerqueumacaridadesúbitae</p><p>generosaéalgoassimtãoraro?Asociedadeestátãodoenteassim?”.</p><p>—Asociedade tá émoribunda—resmungouovelho.—Alémdomais,o</p><p>governo já tem todos os meios pra ajudar essa gente, um monte de projetos</p><p>sociais,quecustamemimpostososolhosdanossacara.Porqueessespedintes</p><p>nãoprocuramele?Tãocommedodogoverno?Sãocriminosos?Devemalgoà</p><p>Justiçaeporissotêmreceiodeseapresentaràsautoridades?</p><p>DoutorPintosorriu:</p><p>—Osenhorcostumapagartodososseusimpostossemchiar?</p><p>—Claro,souumcidadãohonesto,nãodevonadaaninguém.Eéporissoque</p><p>essagentemeirritatanto.</p><p>—Eunãodiriaquepagarimpostossejaocorreto:diriaqueéinevitável.Mas,</p><p>sesãodemasiadoaltosoumalutilizados,reclamarémaisinevitávelainda,quase</p><p>umdever.Mas,seosenhornãovêmotivoparatal…—edoutorPintodeuuma</p><p>piscadela — …então suponho que seu faro não deva encontrar nenhum</p><p>demérito em nossos governantes… Não é? São todos honestos, diligentes,</p><p>verdadeiramente preocupados com a população, todos prontos a nos defender</p><p>dasinjustiçasealutarpelanossaliberdadeepelanossaprosperidade.Nenhum</p><p>deles desvia o dinheiro dos pagadores de impostos para fins escusos, nenhum</p><p>deleséumtrapaceiro,talcomonossorapaz…</p><p>Ovelho,quesemantinhadecabeçabaixa,ergueuorostoevoltouaencararo</p><p>advogado:</p><p>—Jáentendiaondevocêquerchegar—disse,muitoseco.—Játerminoude</p><p>contaroseucaso?</p><p>—Ah,meperdoe.Tenhoessamaniadetergiversar.Aindanãochegueiaonde</p><p>queria.</p><p>—AgentetáquasenaSé.Émelhorosenhorseadiantar,doutorPinto.</p><p>—Vejoqueosenhorjáestáseacostumandocomomeunome—retrucou,</p><p>bem-humorado. — Se, no final das contas, o senhor não gostar da minha</p><p>história,poderáaomenosdizeraseusamigoseparentes:“Sabequemeuvihoje?</p><p>OPintoGrande!”</p><p>Ovelhosorriumelancolicamente:</p><p>—Porfavor,doutor,continue.</p><p>—Me desculpe.Hoje estoumeio exaltado. Deve ser o clima. Gostomuito</p><p>dessetempofrio.</p><p>—Nãosepreocupe.</p><p>—Eoseunome?Qualé?</p><p>—Miguel.</p><p>—Muitoprazer,seuMiguel!—eovelhoapertouamãoqueoadvogadolhe</p><p>estendera.—Bom, vou continuar.Onde eu estava?…Ah, sim.Eu entreguei o</p><p>dinheiroparaorapazemedirigiàportadosfundosdoônibus,poisestavaperto</p><p>domeuponto,no iníciodaTeodoroSampaio.Eaí algoestranhoaconteceu:o</p><p>rapazpareceterpensadoocontráriodoquepensei!Asaber:queacaridadenãoé</p><p>rara.E,apóspagarsuapassagem,cruzouaroletae,cheiodeentusiasmo,voltoua</p><p>contarsuatristehistória,destavezacrescentandodetalhesmuitodesagradáveis.</p><p>Enfim:amoscaazulomordera!Ocoitadocontouatémesmoqueeleéquehavia</p><p>contaminadoa esposa.Eopior: levantava asbarrasda calçademoletompara</p><p>mostrarasferidasrepugnantesquetinhanaperna!Euolhavaemvoltaepercebia</p><p>o constrangimento geral. Além demim, apenas uma senhora, de ascendência</p><p>oriental,deu-lhemaisalgumdinheiro.Osdemaisestavamquasesaltandopelas</p><p>janelasou,oqueseriamaisprovável,quase levantando-seeatirandoohomem</p><p>portaafora!Seaqueleônibus fosseumasaladevisitas,ospassageiroso teriam</p><p>enfiadosobotapete.</p><p>—Entendo.</p><p>—Aquelacenamepôso sanguea ferver.Arepresadeadrenalinaabriraas</p><p>comportas. Enrubesci, comecei a tremer e, assim que apertei o botão para</p><p>solicitarminhaparada,semqualquercálculo,comeceiaesbravejar:“Rapaz,você</p><p>não tem vergonha?! Tenha um pouco de dignidade! Não percebe que essas</p><p>pessoas,seaindatêmalgumdinheiro,jánãotêmcoração?Quempodiaajudá-lo</p><p>aqui jáoajudou.Nãosehumilheassim!PeçaaDeuspara lhedar forçasenão</p><p>fique fazendo tanta propaganda do seu sofrimento. Isto não é uma feira! O</p><p>coraçãoéatingidocompoucaseboaspalavras,nãocommuitapublicidade.Vá</p><p>com Deus e procure por gente que não esteja envolta nessa carapaça de</p><p>indiferença”,e, tendodito isso,pisandoduro,desciasescadas,poischegaraao</p><p>meudestino.Eoônibuspartiulevandoemseuinteriorumsilêncioatrozeduas</p><p>dúziasdeolhosarregalados.</p><p>— Certo, doutor— disse o velho, entediado. —Mas por que você tá me</p><p>contandoessahistória?</p><p>— Ainda não terminei, seu Miguel — e, olhando por cima do ombro do</p><p>antipático interlocutor, acrescentou:—Veja só!Nosso suposto trapaceiro está</p><p>descendoagora,aquinaestaçãodaSé.Esperoquetenhaboasorte.</p><p>O velho fez um gesto impaciente com a mão, como quem diz: “Não me</p><p>interessa!”</p><p>—Bom,pelomenososenhoraindaquerouvirminhaexplicação?</p><p>—Vai,desembuche.</p><p>— Certo, certo — disse o doutor, sorrindo. — Eu ia dizendo que o</p><p>interessantefoioqueaconteceunodiaseguinte,seuMiguel.Aopegaromesmo</p><p>ônibus,nomesmohorário,cruzeimeuolharcomodaquelasenhoraoriental,a</p><p>mesmaquetambémhaviadadodinheiroaorapaz.Elamereconheceuemefez</p><p>umsinal,convidando-measentaraoseulado.Esabeoqueelamedisse?Que,</p><p>assimquedescidoveículonodiaanterior,umaadolescente,nitidamentetocada</p><p>porminhaspalavras,selevantouparacontribuircomomoçodoente,masoutros</p><p>passageiros ergueramavoz,dizendo: “Sua tonta, eles estão combinados!Éum</p><p>golpe!Aquelequesaiueesseaíestãojuntos,sóqueremenganarostrouxas.”Ea</p><p>menina, envergonhada,devolveuodinheiroaoprópriobolso,deuascostasao</p><p>coitadodomoçodoente,indoemseguidasentar-senumlocalmaisaofundo.</p><p>—Euteriapensadoamesmacoisa!</p><p>— Sim! E é por isso que estou lhe contando isso, seu Miguel. Quando a</p><p>senhoradeascendênciaoriental,achoquecoreana…enfim,quandoelamedisse</p><p>isso, bati a mão na testa e pensei: “É claro! É óbvio que eu parecia estar em</p><p>conluio com o sujeito!” Ela mesmame confessou ter ficado em dúvida. E eu</p><p>então lhe contei que era advogado, dei-lhe meu cartão, falei do que eu havia</p><p>sentidonodia anterior e assimpordiante.E ela então comentou: “Só existem</p><p>dois tiposdepessoasqueusamonomedeDeusdamaneiraquevocêsusaram</p><p>ontem: as que vão para o Céu e as que vão para o Inferno” — e o doutor</p><p>perguntouquasenumsussurro:—Osenhor,seuMiguel,sabeoquediferencia,</p><p>nopresentecaso,essesdoistiposdepessoas?</p><p>—Nãoprecisosaber.Tánacaraqueosenhor</p><p>vaimedizer.</p><p>DoutorPintoGrandesorriu:</p><p>—Asinceridade,seuMiguel.Aadequaçãoexataouinexatadodiscursoaos</p><p>fatos. E, se o nome de Deus entra no meio, o discurso não pode se referir</p><p>simplesmenteàscoisasmundanas.NãoéboacoisausaronomedosenhorDeus</p><p>emvão.</p><p>—EunãoacreditoemDeus.Querdizer:jáacreditei.Masdêsóumaolhada</p><p>nestemundo…</p><p>— Sim, sim. É uma antiga questão que vive a assombrar os teólogos e a</p><p>produzirinúmerasheresias,incluindoasmodernas,comoosocialismo.</p><p>—Poisé—disfarçouovelho,estranhandoaobservação.</p><p>—Masnãoentremosnessesdetalhes.Oresumodacoisatodaé:deidinheiro</p><p>a esses dois rapazes, ao do ônibus e ao de agora há pouco, de boa vontade. E</p><p>Deussabedisso!Tantoquantoconheceaverdadeirarazãodemopedirem.Por</p><p>isso,poucomeimportaseestãoounãosendosinceros.</p><p>—Sei…—retrucouovelho,desgostosocomaquele“mopedirem”,quelhe</p><p>pareceuafetaçãodeadvogado.—Avelhahistóriadaonisciência,aquelaquediz</p><p>queDeusvigiaanossacabeça…Tambémfizocatecismo.</p><p>— O senhor sabe o que é um blog, seu Miguel? — tornou o doutor,</p><p>subitamente.</p><p>—Umjornaldainternet?</p><p>—Sim,maisoumenosisso.</p><p>—Oqueéquetem?</p><p>— Certa vez, minha esposa, que por pura diversão vive procurando blogs</p><p>curiosos,mepediupara ler umquehavia encontrado: um sujeito, queparecia</p><p>muito sério, insistia mediante vários textos que a internet não existia, que se</p><p>tratavadeumailusão.Éclaroquesópodiaseraopiniãooudeumpersonagem</p><p>humorísticooudeumpsicótico,umavezquetodoblogéacessadoexatamente</p><p>pelainterneteficaguardadonela.</p><p>—Masquemudançadeassunto!—estranhouovelho.</p><p>—Nãoestoumudandodeassunto.Écomoumíndioquemeupaihospedou</p><p>em nossa casa quando eu era criança: ele achava que a lâmpada produzia a</p><p>energia elétrica, quero dizer… que a lâmpada produzia a luz, não conseguia</p><p>imaginartodoogigantescoaparatoqueháportrásdela.Eletiravaalâmpadado</p><p>soquete e ficava indignadoquandoela se apagava.Comoexplicarpara eleque</p><p>aquela luminosidade vinha de um rio represado amilhares de quilômetros de</p><p>distância? Impossível. Ele talvez estivesse acostumado com lanternas, não sei.</p><p>Masprecisariapassarnomínimounsdoisanosconoscoparaentenderdeonde</p><p>vinhaaenergiadaquelalâmpada.</p><p>—Osenhormudoudeassuntodenovo!</p><p>DoutorPintoGranderiu:</p><p>—Não,seuMiguel.Sóestoulhedizendoqueumdedoéincapazdetocara</p><p>própriaponta.</p><p>—Danou-se!—soltouovelho, indignado.—Osenhorestáé tentandome</p><p>confundir!Oqueessascoisastêmaverumascomasoutras?</p><p>Odoutorjuntouasmãosepareceumeditarporumsegundo.Ficousério:</p><p>— O senhor está me dizendo que já não acredita em Deus tanto quanto</p><p>aqueleblogueironãocrênaexistênciadainternet.Mas,dentroDele,deDeus(e</p><p>não do blogueiro), nós nos movemos, pensamos, respiramos, vivemos e</p><p>morremos.Percebe?Édentrodainternetqueoblog“vive”e“morre”.Éprovável</p><p>que o senhor, esporadicamente, ao longo da vida, tenha parado e pensado:</p><p>“OndeestáesseDeusdequetantofalam?NãoOvejo.”E,comsuamente,tenha</p><p>tentado encontrá-Lo num pensamento ou numa visão, tal como o índio</p><p>procurava,napróprialâmpada,afontedaenergia.Podemosdizer:umalâmpada</p><p>não energiza a si própria! Em suma: a questão da onisciência não está na</p><p>suposição de que Deus tenha escondido câmeras e microfones em todos os</p><p>cérebrosdouniverso.Nãosignificaqueeleespionenossasmentes.Naverdade,</p><p>nossas mentes são dotações do Espírito Infinito, do Espírito Santo, a</p><p>personalidadedivinaresponsávelpelaMenteUniversal.Imaginequesuamenteé</p><p>umdedo.Como jádisse:umdedonãopode tocaraprópriaponta!Damesma</p><p>forma, amentepode tocar tudooque vêpela frente,masnãopode tocar a si</p><p>mesma. E o que é esse “simesma”? É aMenteUniversal, o Espírito Santo, é,</p><p>enfim,Deus.</p><p>—MeuDeus…—suspirouovelhoMiguel.</p><p>— Ele mesmo!— riu-se o doutor Pinto. — Nós, portanto, só temos uma</p><p>menteautoconscienteporqueElenosemprestouum,digamosassim,pedacinho</p><p>damenteDele.Nossocérebroéapenasumreceptor.Écomoocomputadordo</p><p>rapazqueescreviaoblogparaprovarqueainternetnãoexiste:ocomputadoré</p><p>umreceptordainternet.Bem,eunãoentendomuitodesoftwaresehardwares,</p><p>mas compreendo muito bem o princípio subjacente à informática. Trata-se</p><p>sempre de linguagem. Não podemos encontrar Deus mediante a linguagem</p><p>simplesmenteporque,emrelaçãoaela,Eleélinguagempura,oLogosuniversal.</p><p>— Mas que conversa sem pé nem cabeça! — resmungou o velho. — Me</p><p>desculpe,masosenhorélouco.</p><p>—OsenhorconheceomitodeHanuman,oMonoGramático?</p><p>—Chega de histórias!— gritou finalmente o velho, atraindo novamente a</p><p>atenção geral.—Não quero ficarmaluco! Era só o queme faltava… SeDeus</p><p>existisseeconhecessetodososmeuspensamentos,todasasminhasmemórias,eu</p><p>estariacondenado!Éclaroqueeujamaisescapariadoinferno!Jamais!—eseu</p><p>Migueldeuummeiosorrisodosmaisamargos.</p><p>DoutorPintocolocouamãonoombrodele:</p><p>—Osenhornãoprecisasepreocuparcomisso.Vejameusócionoescritório</p><p>deadvocacia,porexemplo.Eleteveumajuventudemuitoatribulada,sabe?Foi</p><p>usuáriodedrogas.Efoiusandodrogasque,acertaaltura,segundomecontou,</p><p>adquiriuumaterrívelparanoia:“Deusestádeolhoemmimotempotodo!”Sabe</p><p>como é, foi criado por pais evangélicos, tinha essa ideia escondida no</p><p>subconscientedesdeainfância.Emsuascrises,assombradoportalsuspeita,ele</p><p>se escondia embaixo da cama, dentro do armário, acreditando que, assim,</p><p>poderiaselivrardasensaçãodeteralguématrásdele.Asensaçãoerafísica!Ele</p><p>tinhacertezadequeDeusolhavapor cimado seuombro.Morriademedoda</p><p>onisciênciadivina!Quandocomeçouanotarqueesse“estaratrás”sereferiaao</p><p>seu próprio pensamento, e não ao seu corpo, entrou em pânico! Antes,</p><p>imaginava que, para passar despercebido, bastava ficar calado e quieto num</p><p>canto. Mas, se Deus perscruta até mesmo nossa mente, como evitá-Lo?</p><p>Raramenteconseguimos frearospensamentos.Eboapartedelesnão fazsenão</p><p>deporcontranósmesmos!Porque, imagineo senhor,adependerdasbesteiras</p><p>quemeusócio traziadentrodacabeça,ele tambémacreditavaquemereceriao</p><p>infernoequeDeusnãoiriaperdoá-lojamais.Masentão…—eodoutorfezuma</p><p>pausa,paracausarsuspense.</p><p>—Entãooquê?</p><p>— Então o Filho de Deus encarnou na Galileia e nos revelou que Deus é</p><p>amor.Oamorécapazdeperdoartudoejamaispoderianosameaçar,pormais</p><p>podresqueeledescobrisseemnossointerior.</p><p>—Ah!—exclamouovelho,irritado.—Vocêeesseseusócio!Nãopassamde</p><p>dois roqueiros grisalhos que viraram crentes!DoisBabyConsuelos!Vocês são</p><p>doidos…Eeupensandoqueosenhorfosseumapessoainstruída.Bom,minha</p><p>estação é a próxima, com licença — e, agarrando-se onde podia, feito uma</p><p>aranhadesajeitada,levantou-se.</p><p>Doutor Pinto manteve-se sentado, sereno, e acompanhou o velho com o</p><p>olhar. Notou que ele, ao descer do vagão, aindamovia os lábios, como quem</p><p>resmunga para si mesmo. Não conseguiu distinguir se Miguel estava tomado</p><p>pelapuraesimplesiraouseestavameramenteescandalizado,istoé,comsuafé</p><p>niilista abalada. Lembrou-se do conselho da esposa: “Não tente dar água para</p><p>quem não tem sede.” Na ocasião, ele lhe respondera: “Não é o que faço, Lu.</p><p>Quem sou eu? Não me tenho em tão grande consideração. Em geral, tento</p><p>apenasmostraracertaspessoasqueodesconfortoexistencialqueexperimentam</p><p>ésede.Sim,éisso:nãolhesdouágua;quandoposso,eulhesrevelo</p><p>suaprópria</p><p>sede.”</p><p>DoutorPintoGrandevoltouaabrirolivrodeBalmes,leualgumaspáginase,</p><p>minutosdepois,desceunaestaçãoSantana.Passouorestantedamanhãetodaa</p><p>tarde com o amigo Casarini, com quem almoçou e teve longas, engraçadas e</p><p>profundas conversas.Ao relatar seu diálogo como velhoMiguel, Casarini lhe</p><p>disse:</p><p>—Eu também ficava irado com seus papos sobreDeus, sobrenossa futura</p><p>peregrinaçãoatravésdoUniverso,deMoradaemMorada,e todaapasmaceira</p><p>resultante.Tudoissomedeixavarealmenteputo.Mas,naquelavisitaquetefiz,</p><p>17 ou 18 anos atrás, quando você me disse que o que me faltava era</p><p>simplesmenteimaginação…ah,aí,sim,vocêmeteuodedonaminhaferida!Um</p><p>advogadoacusarumartistadefaltadeimaginação?Queousadia!…“Porqueum</p><p>artistaouescritorpodesecolocardentrodesuaobra,representando-semediante</p><p>umpersonagem-avatar,eDeusnãoopoderia?”,vocêmedissenaocasião.“Por</p><p>acasoumartistaémaispoderosodoqueDeus?”Quegolpe!Lembroquepeguei</p><p>ometrô e vimpensandoem todas asnossas conversas ao longodos anos,nos</p><p>livrosquevocêmeemprestououmedeu.Eunãosabia,masjáhaviareconhecido</p><p>minha sede. Estava atormentado e desci na Sé. Fui até a Catedral e passei ao</p><p>menosumahoraadmirandoosvitrais,quesãomagníficos:Fontana,Quentim,</p><p>Max Ingrand… Gênios! E, apesar de toda aquela beleza, não tirava minha</p><p>falecidaesposadacabeça!Euaameitanto…Foitãodifícilencontraralguémque</p><p>me despertasse aquela ternura, aquele tesão, aquela admiração… Enfim, eu</p><p>estavaparadodiantedeumdessesvitraiseumasenhora,donada,me tocouo</p><p>braço. Olhei na direção dela e elame disse: “Você ainda irá revê-la.” Foi um</p><p>choque! Qual era a probabilidade? Como sabia? Não respondi nada. Apenas</p><p>volteiaolharaimagemdeJesusnaquelevitrale,dentrodemim,euOxinguei.</p><p>“Não acredito! Não acredito! Não acredito!”, pensava. Então me sentei num</p><p>banco e fiquei lá, quieto, observando as pessoas a caminhar pela nave. Não</p><p>pensavaemnada,nãorezei,nãofizporranenhuma…Meiahoradepois,volteià</p><p>estação da Sé e tomei ometrô.Quando embarquei, não acreditava emCristo;</p><p>quando desci em Santana, acreditava: e até hoje não sei em qual trecho da</p><p>viagem,emqualestação—Luz?Tiradentes?Tietê?—sedeuoiníciodaminha</p><p>conversão.</p><p>—Foidepoisdissoquecomeçaramossonhos?</p><p>—Foi.Semanasdepois tiveoprimeiro:sonheiqueestavanumapalestrado</p><p>VanGogh,numlugarincrível,umimensoanfiteatroaoarlivre.Haviamilhares</p><p>dealunos,eeleestavaradiante,felicíssimo.</p><p>—Eaindatemsonhosassim?</p><p>—Acadatrêsouquatromeses,ouatémais,emgeralquandocomeçoaachar</p><p>quenãoos tereimais.Omaisrecente foimêspassado:eupasseavacomFídias</p><p>numareproduçãoemescalareal,feitaporele,dacidadedeAtenasdasuaépoca.</p><p>A escultura da cidade inteira, incluindo seus habitantes! Foimagnífico.Tenho</p><p>tudoanotadonomeucadernodesonhos.</p><p>Horasmais tarde, após admirar as novas esculturas do amigo— e a mais</p><p>interessante era a quemostrava Adão e Eva sentados sobre um “fândor”, um</p><p>enormepássaroque supostamente teria lhes servidodemeiode transporte—,</p><p>doutorPintoGrandesedespediuecaminhouatéaestaçãoSantana,ondechegou</p><p>pouco depois das seis emeia. Estava contente: passados tantos anos, Casarini</p><p>finalmente encontrara e lhe devolvera o livroMeditações sobre os 22 arcanos</p><p>maiores do tarô , de autor anônimo, editado pelas Edições Paulinas. Sim, fora</p><p>publicadoanonimamente,masodoutorjásabiaqueseuverdadeiroautorerao</p><p>hermetistacristãorussoValentinTomberg.Eseuexemplareraumararidade:as</p><p>ediçõesestrangeirasnãotraziamoprefáciodoteólogoHansUrsvonBalthasar!</p><p>Quandojásedirigiaàroleta,ouviuatrásdesi:</p><p>—Doutor?!</p><p>Olhou para trás e reconheceu o rapaz a quem havia dado os vinte reais</p><p>naquelamanhã.</p><p>—Ué,meucaro…Comomeencontrou?</p><p>—Euouviosenhordizendoàquelevelhoqueestariaaessahoranaestação.</p><p>Osenhordissequeerapontual…</p><p>—Ah,sim.Entendo.Conseguiualmoçar?</p><p>Orapazestavamuitoembaraçado:</p><p>—Erasobreissoquequeriafalarcomosenhor—disse,semconseguirfitar</p><p>diretamenteorostodointerlocutor.—Naverdade,vocêsdoistavamcertos:eu</p><p>realmente tava “faminto” (foi o que o senhor disse, né?),mas também tava te</p><p>enganando.Minhafomenãoeradecomida:eradecrack.</p><p>DoutorPintofranziuatesta,surpreso:</p><p>—E…vocêsaciousuafomedecrack?</p><p>—Não,doutor.Vimtedevolverodinheiro—eorapazlheestendeuosvinte</p><p>reais.</p><p>—Podeficarcomodinheiro,rapaz.Comprecomida.</p><p>—Nãoprecisa,doutor.Vouvoltarpracasadosmeuspais.Eutavadormindo</p><p>naruahádoismeses.Masvouvoltar.Emcasavoupodercomer.E,seeuficar</p><p>comessedinheironamão,porpoucoqueseja,vouacabarcaindonatentação.O</p><p>senhornão faz ideia de como foi difícil hoje. Fiquei quase todoo dia aqui, os</p><p>seguranças até me botaram pra fora, achando que eu tava querendo assaltar</p><p>alguém.Sóvolteiquandotevientrandonaestação.</p><p>DoutorPintoaceitouoreembolsoesorriu:</p><p>—Parasairdessa,confieemquemémaisfortedoquevocê,meucaro.</p><p>—Podedeixar,doutor—eojovemesboçouumsorriso.</p><p>—Vocêtemcomochegaremcasa?</p><p>—Aindatenhoumunitáriodometrô.MeuspaismorampertodoCarandiru,</p><p>umaúnicaviagem.</p><p>—Certo.Boasorteentão.Eobrigadoporsersincerocomigo.</p><p>—Euéqueagradeço…doutorPintoGrande!—eorapazsorriu,contente</p><p>porpoderdizerasériosemelhantenome.</p><p>DoutorPintosorriudevolta,despediu-secomumgestodacabeça,deu-lheas</p><p>costas e passou pela roleta. “Meu Pai…”, falou dentro de si, “por essa eu não</p><p>esperava.Muitoobrigado.”</p><p>Ameninabranca</p><p>Naquelasemana,Edgarandavamuitoirritadocomumfatoquelhepareciados</p><p>mais bizarros: num país como o Brasil, onde ocorriam cerca de 60 mil</p><p>homicídios ao ano, o que realmente vinha atraindo a atenção da famigerada</p><p>“opinião pública” não era senão uma espalhafatosa e extensa campanha, não</p><p>apenas em defesa dos animais domésticos—mormente cães e gatos—, mas</p><p>tambémemdefesadosanimaissilvestres,sobretudodessesseresque,anãoser</p><p>talvezpeloYouTubeouemfotografiassuspeitas,elejamaisveriaaovivo—tais</p><p>comoolobo-da-tasmâniaouentãoaqueleexóticoanjo-da-tanzânia.</p><p>“Existeisso?Anjo-da-tanzânia?!…”,indagavaEdgaraseusbotões,franzindo</p><p>ocenhoe tentandoencontrar indíciosdePhotoshopnaquelaestranha imagem</p><p>quepareciamisturarumagirafa aumavestruz. “Contribuapara a salvaçãodo</p><p>anjo-da-tanzânia!”,rogavaalegendadafotografia,quetambémtraziaonúmero</p><p>deumacontanumbancodas IlhasCayman.E,namesmacena,viam-secinco</p><p>cabeludos ajoelhados defronte do animal, como se adorassem um anjo de</p><p>verdade.</p><p>“Muitosuspeito”,concluíaorapaz,orostoquasecoladoaomonitor.</p><p>Ele, que sempre criara cães, hamsters, papagaios, tartarugas; ele, que na</p><p>infância tivera até um mico-de-cheiro e um tatu (sim, até mesmo um tatu);</p><p>enfim, ele, que com toda a sinceridadedo coração sempre gostara de animais,</p><p>achavaabsurdaessanoçãodequebichossão inocentes,dequesãomelhorese</p><p>maisconfiáveisdoquegente,eporaívai.Nãocompreendiaporqueasmesmas</p><p>pessoasquearrancavamoscabeloscadavezqueumvira-lataerachutadonarua</p><p>pareciam,poroutrolado,nãose incomodarcomosváriosgenocídiosaoredor</p><p>domundo, com amatança de comunidades cristãs inteiras naÁfrica, com os</p><p>inúmeros ataques terroristas perpetrados por islamistas, com os milhões de</p><p>abortos e demais notícias terríveis a esse modo. Quando ele postava uma</p><p>informação desse tipo no Facebook ou no Twitter, ninguém se</p><p>interessava, o</p><p>silêncio era implacável. Já aspostagens sobrebichos—ah!—, essas causavam</p><p>grandeimpactoecomoção!…Edgarchegavaaseperguntarseseusamigosviam</p><p>o sofrimento humano como algo merecido — como uma espécie de castigo</p><p>inexorávelpor comermos salaminhos inofensivos emortadelas indefesas—ou</p><p>se,pelocontrário,essesmesmosamigos—pressupondoquetodososhumanos</p><p>sãoanimais—jáincluíamautomaticamentenessesprotestosaindignaçãopelo</p><p>assassinatodetantosdenossossemelhantes.</p><p>“SeráqueoGreenPeacetambémestápreocupadocomosgordosquandofala</p><p>em baleias?”, perguntava-se com sarcasmo. E respondia a si mesmo: “Pois</p><p>deveria!Eufuigordodurantetodaaminhainfânciaesofrimaisbullyingquea</p><p>orca,abaleiaassassina!”</p><p>Naquelamanhãdesábado,porém,percebeuqueessaprimeiraalternativaàs</p><p>possíveis causasdo sofrimentohumano—ado castigo inexorável, cármico—</p><p>eraaque,naperspectivadessesmilitantes,seriaacorreta:numintervaloparao</p><p>café, viu uma amiga comentar que deveria existir pena de morte para quem</p><p>pratica a caça desportiva, já que, ao praticá-la, os humanos estariam</p><p>confirmando o fato de serem inferiores a qualquer outro animal. “Inferiores?!</p><p>Ora”, pensou ele, “animais também não sentem prazer ao caçar?Ou será que</p><p>apenasestudammedicina?Nãoconheçonenhumaespéciedebichosquetenha</p><p>seunidoparaabrirumhospitalqueatendasomentepessoas.Alémdeagasalhar</p><p>nossosanimaisdomésticos,nós,humanos,compensamostodoessesupostomal</p><p>comclínicas veterinárias, comassociações, fundações e institutos protetores. E</p><p>eles?Eosanimais?Têmoquê?Oqueessascriaturassuperioresfazempornós</p><p>alémdenosmorder,denospicaredenoscomerpelasselvas,ou—namelhor</p><p>das hipóteses—, alémde se deixarem comer, cativar e encher nossa roupa de</p><p>pelos? Não conheço nenhuma ONG fundada por bichos para proteger gente.</p><p>Não existem!”, discursava dentro de si mesmo. “Eles, os animais, não podem</p><p>fazernadadissopelamesmarazãoquelhesobstaoestadodeinocência:elesnão</p><p>têm consciência moral! Ou ainda: não são autoconscientes! Humanos erram,</p><p>massemprepodemseaprimorar.Eéporissoquenóséqueprecisamoscuidar</p><p>deles,decidirporeles, respeitá-los,atéamá-los (se forocaso),masnãoadorá-</p><p>los!… Seu cachorro gosta de você? Certo, todo cachorrinho pititico é um</p><p>docinhoparaseudono,paraamãoqueoalimenta.Mascoloque-oavivernum</p><p>canil com outros trinta cachorrinhos pititicos: iniciam-se imediatamente as</p><p>antipatiaseasagressõesrecíprocas!Issoéumfato,caramba!”,prosseguiaEdgar</p><p>comcrescenteemudoentusiasmo.“Paraoscães,oinfernosãoosoutroscães,e,</p><p>aocontráriodenós,elesnãotêmqualquerperspectivaoumesmonecessidadede</p><p>redenção, já que não possuem livre-arbítrio, já que não podem decidir pelo</p><p>arrependimento. Porra,meu avô teve um canil, observei essas coisas de perto!</p><p>Mas isso tudo não significa que os bichos sejammaus— claro que não!Mas</p><p>tampouco sãomoralmentebons e inocentes comoqueremessesmilitantesdas</p><p>redes sociais! Bichos são pré-morais e ponto final, caramba!… É tão óbvio:</p><p>apenasalguémquepodeserculpado—nãoemrelaçãoàmesmaação,claro—</p><p>podetambémserinocente!Porqueinocênciaeculpaimplicamresponsabilidade.</p><p>Eanimaissãoanimais!Nãosãoresponsáveisporseusatos!Nãosãolivres,pois</p><p>não podem frustrar voluntariamente seus próprios instintos! São escravos dos</p><p>instintos!Enfim,querdefenderosbichos?Defenda,masjamaisdigaqueelessão</p><p>melhores do que a gente. Jamais! Uma época em que as pessoas já não</p><p>conseguementenderessascoisassópodiamesmosechamarKaliYuga…”</p><p>—OlhaacaradoEdgar—disseumcolega,cutucandoalguém.—Táquase</p><p>mordendoateladocomputador.</p><p>— Deve estar fuçando no perfil da Virgínia… — e ambos sorriram</p><p>maliciosamente.</p><p>Edgar, contudo, permanecia alheio, trepado num parlatório dentro de si</p><p>mesmo,discursandoparaumamultidãodeEdgares. Sim, era verdadequeboa</p><p>parte dessas postagens em prol dos animais bonzinhos, e contra os cruéis</p><p>humanoscarnívoros,vinhadasuapróprianoiva,Virgínia,umavegetarianacom</p><p>fortes tendências veganistas, que não podia nem em sonhos descobrir que, na</p><p>ausênciadela,elecomiacarne.Não,nempensar!Elaficariamenosabaladaseele</p><p>se declarasse canibal! Como a maioria dos veganos, preferia beagles a seres</p><p>humanos. Sim, ler sobre o sofrimento de tantas pessoasmundo afora era algo</p><p>comquenãoapenasosamigosdela,mastambémosdele,nãosecomoviam,pois</p><p>taisfatos,emvezdelhesestragaremavibedofinaldesemana,eraminterpretados</p><p>por eles como uma vingança da natureza: “Ah, que maravilha! Um humano</p><p>malvadoamenosnaTerra!”Ademais,erademasiadoangustiantenotarqueos</p><p>poucos a se indignar com o flagelo dos seus semelhantes sempre propunham</p><p>falsas soluções, tais como as diversas formas de intervenção estatal — “Faça</p><p>alguma coisa, governo! Faça alguma coisa!” —, como se esse flagelo, em</p><p>inúmeras circunstâncias, não tivesse sua origem exatamente na vasta miséria</p><p>espiritual e moral daqueles revolucionários, burocratas e endinheirados que,</p><p>pretendendo“mudaromundo”,apenasseintrometiamnavidaalheia,impondo</p><p>mais controle, mais leis, mais restrições, mais impostos, mais exigências, e</p><p>reduzindo as liberdades e iniciativas individuais. Isso quando não impunham</p><p>diretamente mais homicídios e genocídios… Edgar estava cansado desses</p><p>pregadoresdoMundoIdealBurocraticamenteControlado,essesfanáticosquese</p><p>ajoelhamcincovezes aodiaparaorar aoPai-Estado. Já ele, ao contráriodessa</p><p>gente,acreditavaqueaúnicarevoluçãofundamentalerarevolucionar-seevero</p><p>mundotalqualé,semofiltrodeideologiasepoliticagens.Ecomonaqueledia</p><p>não lhepassaramnenhumprojeto cujos cálculosdevesse conferir,permaneceu</p><p>todaamanhãimersonessaeloquenteeintrospectivapreleção.</p><p>Depoisdoalmoço,jáacaminhodecasa,continuavaresmungando:</p><p>—Atévocê,né,Virgínia…</p><p>Não tirava da cabeça tudo o que havia lido no Facebook.A verdade é que</p><p>estavacansadodamáconsciênciadaquelesquepreferembichosagente—afinal,</p><p>Edgarnão tinhanada contraospobres animais!Não tinha!…Mas, aomesmo</p><p>tempo, já não possuía a mesma disposição de outrora para discutir, para</p><p>participardosmesmosdebatesdesgastantes internet afora.E, por isso,não fez</p><p>comentário algum às postagens desses amigos militantes. Ultimamente, vinha</p><p>optandoporevitarconflitosinúteis,sobretudoseessesconflitosocolocavamem</p><p>oposiçãoànamorada.Atémesmoquandojuntos,Edgarseesquivavaadiscutir</p><p>comelataisassuntos.SemprequeVirgíniainiciavaessavelhaconversadequea</p><p>humanidadenãoseriasenãoocâncerdoplaneta,Edgarsimplesmenteretiravao</p><p>celulardobolso,acionavaacâmeradevídeoe lheapontavaa lente:“Conversa</p><p>com meu telefone, vai”, dizia ele, provocando-a. “Depois eu vejo o que você</p><p>disse.”</p><p>Enfim,ofatoéqueele,nafaltadeserviço,aomenossedistraíracomarede</p><p>social, chegando rapidamente ao fim demais um tediosomeio expediente de</p><p>sábado.Daliemdiante,ficariasossegado,longedoescritórioedaschateaçõesda</p><p>internet.</p><p>*</p><p>Aochegaràcasa,solapino,desceudocarro,abriuaestreitagaragem,voltouao</p><p>carro, estacionou.Edgarmoravanum loteamento recente, dessesquepossuem</p><p>mais terrenosbaldiosque residências.Umbairronovo,próximoaParelheiros,</p><p>numa área acidentada, com muitos morros, ladeiras, mato. Tinha poucos</p><p>vizinhos e vivia num sobrado praticamente isolado numa das esquinas. Ele o</p><p>comprara ainda por terminar</p><p>— paredes sem reboco,muros sem caiar— e o</p><p>estavacompletandoaospoucos,tencionandodarosúltimosretoquesnocorrer</p><p>dos próximos dois ou três anos, quando então a região certamente já estaria</p><p>valorizada,eele,pertodesecasar.Virgínia,queaomenosemteoriagostavade</p><p>animais,talvezsesentisseàvontadenaquelapequenacasadequintalespaçoso,e</p><p>então,quemsabe,numfuturopróximo,atémesmoviesseaabandonaraquelas</p><p>estapafúrdiasideiasdesuperioridadedosbichosefinalmentedecidissecriarcães,</p><p>gatos, coelhos, pacas, tatus, cutias, enfim, o que bem entendesse, talvez até</p><p>mesmocrianças.Osobradoacompanhavaodeclivedo terrenoe,quandovisto</p><p>portrás,davaaoobservadoraimpressãodeserbemmaisalto,poisabrigava,sob</p><p>a cozinha, um vão, isto é, um terceiro nível, uma pequena área coberta, mas</p><p>adjacente ao quintal, que o rapaz planejava fechar e transformar num novo</p><p>aposento. Sentiamais a urgência de ter esse quarto de despejo— talvez uma</p><p>futuramarcenaria,paraele,ouumateliê,paraVirgínia—doqueadeerguerum</p><p>muro nos fundos. Ora, os fundos da casa davam para um riacho ainda ao</p><p>natural, uma visão bastante distinta da horrível insipidez dos córregos</p><p>canalizadosdacapitalpaulista.Oúnicoproblema,claro,eramosladrões.Muros</p><p>poderiamafastá-los,masaverdadeéquenãohavianadaaserroubadoforada</p><p>casa,poisoquintaleraapenasumlongoterrenovaziocomalgumasmudasde</p><p>arbustos plantadas nas laterais. Por outro lado, junto ao córrego, havia, sim,</p><p>muitasárvorescrescidas,umapequenaedispersamataciliar,umgramadoaqui,</p><p>outroali, enfim,praticamenteumparquenativoondeascriançascostumavam</p><p>brincaràvontade.Edgarnãoqueria isolar a casadessapaisagembucólica.Por</p><p>isso,nos fundosdo lote,mantinhaapenasacercadearame liso levantadapelo</p><p>primeirodono.</p><p>Nessedia,porém,aoabriraportadafrente,sentiualgoincomumnoar,um</p><p>estranhoeinquietantesilêncio—algoterrívelacontecera!</p><p>—Quedroga!—remoeu-se.—OfilhodamãedoValdemarentrouaqui!</p><p>ValdemareraogatopretodedonaBerenice,suavizinhadooutroextremodo</p><p>quarteirão.O rapaz até gostava do gato,mas amavamesmo era seu sabiá-do-</p><p>campo,umpassarinhoqueadquiriranãopelabelezadaplumagem—porquede</p><p>fato parecia bem comum —, mas devido a seu impressionante canto. Edgar</p><p>costumavachegaràcasa,abriraportinhadagaiolaedeixaroanimalàsoltapor</p><p>ali.Este,acostumadocomavidaqueodonolheproporcionavadesdepequenino,</p><p>nunca o abandonava, mesmo com as janelas abertas. O rapaz tomara</p><p>conhecimentodessaespéciedeaveatravésdumabiografiadeOlivierMessiaen,</p><p>compositor que admirava a capacidade desses passarinhos de literalmente</p><p>sampleartudooqueouviam,istoé,deimitaremesclar,nummesmotrinado,os</p><p>sonsdeoutrospássaroseatémesmoosassoviosdeseudono.ParaEdgar,ouvir</p><p>aquele bichinho era como apreciar um flautista mágico, um verdadeiro</p><p>caleidoscópio sonoro, e de fato praticamente entrava em êxtase ao lhe dirigir</p><p>toda a sua atenção. O problema era manter o gato Valdemar longe daquele</p><p>habitat. Desde que dona Berenice ajudara Edgar a tratar de sua falecida</p><p>cadelinha, Marie Roget— na época, acometida de parvovirose—, Valdemar,</p><p>tendoseacostumadoàpresençadorapaz,perderatodoreceiodeenfrentá-lo.Ao</p><p>chegardarua,eramuitocomumencontrarobichanorondandoacasa.Edgar,</p><p>pois,tinhasempredeverificartodasasjanelasantesdesair,oque,infelizmente,</p><p>nãohaviafeitonaqueledia.</p><p>Precipitando-se até a gaiola, na cozinha, o rapaz crispou asmãos: o gato a</p><p>haviaderrubadodaparede!Agoraelaestavaaochão,rodeadadeumpunhadode</p><p>penas cinzentas, brancas e castanhas. Edgar sentiu a adrenalina lhe subir à</p><p>cabeça, as têmporas a latejar. Aos poucos, seu próprio lado animal e irascível</p><p>começouadominá-lo.Arevoltacontraosdefensoresdasuperioridadeanimal,</p><p>contidaacustodurantetodaamanhã,pareceuabrirpassagempelosseusnervos</p><p>e descobrir finalmente um bode expiatório. Oumelhor: um gato expiatório…</p><p>Olhou,pois,emtorno,atestaporejando,ansiosopordescobriropássaro,sãoe</p><p>salvo,empoleiradoemalgumlugar.Mas,infelizmente,osabiáNevermorehavia</p><p>desaparecido.</p><p>— Gato preto do inferno!… — finalmente regougou entredentes. E, no</p><p>mesmo instante, ouviu um baque leve e surdo no andar superior: o bandido</p><p>aindaestavaemação!Edgararregalouosolhos:—Nevermore!—exclamoucom</p><p>avozembargada,correndoparaaescada,cujosdegrausgalgoudetrêsemtrês.</p><p>Láemcima,aocaminharcautelosamentepelopequenocorredor,viuumvulto</p><p>sairdobanheiroe,compassoságeisesilenciosos,desaparecernapenumbrado</p><p>quartinho dos fundos. Olhando para dentro do banheiro, viu que o gato</p><p>Valdemarhaviaderrubadoumtubodexampu,provavelmenteaotentarsairpelo</p><p>vitrôentreaberto:sim,ovilãotalveztivesseentradoporali,comoporumfunil,</p><p>mas,pelojeito,saireraumaoutrahistória.Nãopodiadeixá-loescapar.Respirou</p><p>fundo,entrounoquarto,fechoucuidadosamenteaportaeavançoudoispassos.</p><p>Firmandoavista,osmúsculosretesados,ocoraçãoaospulos,pôdeentãodivisar,</p><p>logonocantodireito,ogatopretocomoamadoNevermoreentreosdentes.</p><p>“Piu”,fezosabiá-do-campo,causandonovoestremecimentoemEdgar.</p><p>— Nããooo! — rosnou ele em fúria, saltando sobre o gato, que, de olhos</p><p>esbugalhados, os pelos eriçados, permaneceu com o animalzinho na boca. Foi</p><p>uma luta tremenda, brutal. De joelhos, o rapaz, agarrado ao gato, não lhe</p><p>permitiaafuga.Contudo,quantomaisseesmeravaorapazporretirarsemdanos</p><p>opassarinhodabocarradopredador,maisestecravavaaspresasnavítimaeas</p><p>unhas no rapaz.O gato rosnava de um jeito espantoso, agressivo.Nevermore,</p><p>comosolhinhosperdidos algures,numa expressãode transe, parecia cada vez</p><p>mais próximo da morte. Edgar amava aquele bichinho que tantas vezes o</p><p>enlevaracomseucanto.Nãoiriadeixaraquelegatopretoinútilmatá-loassim.E</p><p>então, cingindo o pescoço de Valdemar com ambas asmãos, colérico, tentou</p><p>estrangulá-lo sem dó nem piedade.Mediante a força bruta, tencionava forçar</p><p>aquele caçador a abandonar sua inocente vítima.Mas o sabiá não lhe saía da</p><p>boca! Desesperado, Edgar, num movimento brusco, potente e instintivo, um</p><p>movimento nascido na fronteira entre sua animalidade e sua humanidade,</p><p>chocouacabeçadogatocontraaparede,fazendosoar,àalturadopescoço,um</p><p>ruído seco de osso que se parte — e Valdemar caiu morto aos seus pés.</p><p>Conseguindo,pois,retirardefinitivamenteNevermoredasmandíbulasdamorte,</p><p>o rapaz se emocionou. Quase chorou. Preocupado com o passarinho, nem</p><p>reparounosarranhõesprofundosdeixadospelogatoemseusbraços.</p><p>—Meucantorzinho,meucantorzinho…—sussurrava,enquantocorriaatéo</p><p>banheiro,ondepretendiaaplicarosprimeirossocorros.</p><p>Minutosdepois,feitososcurativos,jáaliviado,evendoqueNevermoretinha</p><p>umachancedesobreviver,Edgarsentiu-senovamenteracional.Voltouentãoao</p><p>quarto,observouaquelecadáverdepelúciaepensou:“CoitadodoValdemar…”</p><p>Respiroufundo,suspiroulongamentee,absorto,começouamordiscarapeledos</p><p>lábios…Derepentecaiuemsi:“CoitadadadonaBerenice!Oqueelavaipensar</p><p>demimagora?…ElaeafilhinhameajudaramtantocomaminhaMarieRoget!</p><p>Eeu,idiota,acabeimatandoogatodelas.”</p><p>Ficou ali com o sabiá Nevermore nas mãos, lutando contra o remorso,</p><p>tentandoconvencerasimesmodequenãohouveraoutrasaída.Masaimagem</p><p>dabondosadonaBereniceedesuafilhinhanãolhesaíamdacabeça.Lembrou-se</p><p>novamentedozelodasduasaocuidardasua</p><p>sãoapenasaponta</p><p>doicebergdaverdadeirafeminilidade.</p><p>—Queé…?</p><p>—Averdadeirafeminilidade?</p><p>—Sim.</p><p>—Bem…Éumamaneiraespontâneaenaturaldepensar,deagir,devero</p><p>mundo,enfim,umamaneiradeseredecompreendersuaposiçãoemrelaçãoà</p><p>vidaeaseuoposto,omodomasculinodeviver.Umamulherverdadeiramente</p><p>femininanãocompetecomoshomens.</p><p>— Espere, Nathan, deixe-me entender uma coisa: por acaso você está</p><p>tentandomedizerqueasmulheresrealmentefemininasdevemsersubmissasao</p><p>homem?</p><p>—Simenão.</p><p>Fizumsinalparaogarçom:apesardofrio,nãoqueriamaiscachaça,queele</p><p>metrouxesseumacerveja.</p><p>—Se eu continuarbebendo isso aí—disse ao empreiteiro ensaísta—,não</p><p>vouentenderabsolutamentenadadessassuassutilezas.</p><p>—Vouexplicaresse“simenão”.</p><p>—Ótimo.</p><p>Eledeuoutraprofundatragadanocigarro:</p><p>— Nummundo sadio, a mulher não deve ser submissa no sentido de ser</p><p>menos valiosa oumenos importante do que o homem. E também não quero</p><p>dizerqueelatenhadeserobediente,subalterna.Nadadisso.Aliás,vouvoltara</p><p>esse ponto— e pigarreou.— Ela deve, sim, ser submissa no sentido em que</p><p>(permita-meusarmetáforasextraídasdaminhaprofissão)umpilarésubmissoa</p><p>umaviga.Compreende?</p><p>—Nãosoumuitobomdeengenharia.Abandoneiocursonosegundoano.</p><p>Eleriu:</p><p>— Uma viga é um elemento da estrutura de uma construção, disposto na</p><p>horizontal,quetransfereopesoquerecebedaedificaçãoparaopilar,oqualse</p><p>posiciona,navertical,logoabaixo:opilaréportantosubmissoàviga.</p><p>— Então o homem deve fingir que sustenta as coisas, mas acaba é</p><p>transferindoacargapramulher.</p><p>—Não,Yuri, elenão finge: ele sustentaascoisaseaselevacomaajudada</p><p>mulher,quefazaconexãocomochão.</p><p>—E,segundosuaanalogia,oqueseriaessechão?</p><p>—Ochãoéarealidade.Amulherémaisrealistadoqueohomem.Elatemde</p><p>ser.Éelaquemengravida,quemrealmentegaranteamanutençãodaespécie.Ela</p><p>temapulsãoinstintivadeprotegeraprole.</p><p>O garçom trouxe a cerveja e mais dois copos, mas Nathan quis continuar</p><p>bebericandosuacachaça.</p><p>—Nãoseiseconsigovisualizarcomoessarelaçãoentrevigaepilarsedána</p><p>prática—observei.</p><p>—Minhaatualsecretária,umabelagarotaqueireidemitirembreve,poissei</p><p>queparoudetomaranticoncepcional…—eele,comarcafajeste,mepiscouum</p><p>olho—enfim,minhasecretáriamedissealgoqueexpressabemaideia:segundo</p><p>ela,“narelaçãoentreossexos,ohomeméacabeça,masamulheréopescoço:é</p><p>elaquemdecideparaondeapontaracabeça”.</p><p>—Hum.</p><p>— E isso quer dizer que o homem é dominado basicamente pelo</p><p>entendimento e a mulher, pela vontade. O entendimento dirige, a vontade</p><p>impulsiona.Basta você imaginarumveleiro: as velas são amulher; o leme éo</p><p>homem.</p><p>—Estouvendoqueesseseulivroterámaisdequinhentaspáginas…</p><p>Eleriu:</p><p>—Achoquenão.</p><p>—Vocêquerdizercomissoqueohomemémaisinteligentedoqueamulher</p><p>eela,simplesmentemaisvoluntariosa?</p><p>— Não, não é tão simples e esquemático assim. A realidade não é uma</p><p>máquina.Umamulherpodesermuitomaisinteligentedoqueomarido,doque</p><p>os irmãos e assim por diante. Mas o centro da alma feminina sempre será a</p><p>vontade,poisésuavontadequemcria.Ohomemsóconseguecriarmedianteo</p><p>entendimento,queéocentrodasuaalma.Bastavocêvisualizaraquelesímbolo</p><p>dotaoísmo:digamosqueoYinrepresenteavontade,comapresençasecundária</p><p>doYang, e o Yang represente o entendimento, com a presença secundária do</p><p>Yin. E ambos os aspectos só funcionam realmente em conjunto, com o casal</p><p>formado.</p><p>—Polêmicoissoaí.</p><p>—Eusei.Muitagentesabedessascoisasinstintivamente,mas,comovivemos</p><p>numa época politicamente correta, quase ninguém tem coragem de tocar no</p><p>assunto.Eutenho.</p><p>—Polêmicoeimprovável.Comocomprovaralgotãosubjetivo?</p><p>—Sevocêdisserqueissoéimprovável,poderádizerquetodasasteoriasda</p><p>psicologiatambémosão.</p><p>— É verdade. E talvez o sejam — repliquei, completando meu copo de</p><p>cerveja.</p><p>— Mas boa parte delas realmente explica, ou melhor, realmente descreve</p><p>inúmeroscomportamentoshumanos.</p><p>—Nãonegareiisso.</p><p>—Apenasparavocêvisualizarmelhoroconceito:quemvocêachaquetevea</p><p>ideia, durante o Pleistoceno, de esfregar duas pedras para conseguir faíscas e</p><p>acenderofogo?</p><p>Euri:</p><p>—Comopossosaberdeumacoisadessas?!Ninguémpode.</p><p>— Bom, eu sei: foi o homem. E você sabe o quanto ele insistiu para</p><p>finalmentetornaraideiaumsucesso?</p><p>—Não—respondi,achandoaquelepapohipotéticoumaperdadetempo.</p><p>—Nemduas semanas. Simplesmente porque ele desistiu!Depois de tentar</p><p>emvãocolocar fogoemalguns tiposdemateriais (capimseco,gravetos, folhas</p><p>etc.), ele concluiu que a ideia era inviável. Então, a mulher dele, que havia</p><p>entendido o princípio, continuou insistindo, até perceber que os ninhos de</p><p>passarinhoeramocombustívelideal!Aprimeirafogueiradestemundofoiacesa</p><p>porumamulher!Foiassimqueoserhumanoaprendeuadominarofogo:graças</p><p>àideiadohomemeàforçadevontadedamulher.</p><p>Nathanapagouabitucadocigarroemeencarou:</p><p>—HáumvídeointeressantenoYouTube.LembradoBorat?</p><p>—Claro.Aliás,SachaBaronCohennasceuonzediasantesdemim.</p><p>—Boasafraadaqueleano,não?</p><p>Euri:</p><p>—Meiomaluca,talvez.</p><p>—Então…—tornouele.—Antesdaquelelonga-metragemdoBorat,Cohen</p><p>tinha um programa de TV na Inglaterra. Há um vídeo em que ele entrevista</p><p>estudantes e professores da Universidade de Cambridge. Todos realmente</p><p>acreditamqueeleéumrepórterdoCazaquistãoe,porisso,nãotêmvergonhade</p><p>falar o que realmente pensam, afinal tudo aquilo será supostamente veiculado</p><p>num país distante. Então Borat diz a um venerável e simpático professor, já</p><p>idoso,oseguinte:“Estiveandandoporaíevimuitasmulheres.Porqueelasestão</p><p>na universidade?” E o professor: “Ora, porque elas também são inteligentes.”</p><p>Borat devolve: “NoCazaquistão, quando vemosumamulher comum livrona</p><p>mão,dizemos:‘Olhaumcavalocomumasela!’”Amboscaemnagargalhada,mas</p><p>oprofessorobserva com toda sinceridade: “Bem, a questão é que ametadedo</p><p>mundoéconstituídapormulheres.Elastêmtantahabilidadeetantainteligência</p><p>quanto o homem. A diferença é que elas não têm amente criativa.” E Borat,</p><p>colocandolenhanafogueira,diz:“NoCazaquistão,dizemosqueencontraruma</p><p>mulhercomcérebroécomoencontrarumcavalocomasas.”</p><p>—Puts—exclamei,olhandoemtorno.—Seagenteestivessenumbarmais</p><p>movimentado,jáestariaapanhando.</p><p>—Épossível.</p><p>—E,sinceramente,vocêestágeneralizandotantoquantooBorat.Mascom</p><p>umagrandediferença:vocênãoestáfazendopiada!</p><p>—Não é piada, e, sim, é claro que estou generalizando.Não sou ingênuo,</p><p>sempre haverá exceções.Mas sugerir, como as feministas fazem, que hámais</p><p>homens entre os gênios da música, da literatura, do cinema, das artes e das</p><p>ciências apenas por causa da “opressão do patriarcado” é de uma ingenuidade</p><p>sem tamanho…— e sorriu, abrindo os braços.— Aliás, mesmo esses gênios</p><p>estãodeixandodeexistirna intensidadeenaquantidadedeoutrora:porqueas</p><p>mulheresestãodeixandodeapoiá-loseestãotentandosetornar“exceções”,que,</p><p>repito,existem.Masaexceçãonuncaéaregra!Issoétãoóbvio.Seatéentreos</p><p>homensagenialidadeérara,umaexceção,imagineentãoentreasmulheres!Ora,</p><p>pararealizarumaobradevulto,elasprecisamircontraapróprianatureza!Mas</p><p>não, o feminismo não aceita isso, ele afirma que elas não apenas podemmas</p><p>devemsermagníficas,deslumbrantes,incríveis,enfim:geniais!Sim,atualmente,</p><p>elasmesmas</p><p>cachorrinhamoribunda.Naépoca,</p><p>sempre que saía para trabalhar, ele deixava Marie Roget na casa delas. Ao</p><p>contráriodamãe, amenina—umagarotinhaalbinaque,devidoa seuperene</p><p>estadode espanto, aparentava ser aindamaisbranca—parecia temê-lo, talvez</p><p>por elemorar sozinho, usar bigode e ser tão tímido e introspectivo. E, apesar</p><p>disso,Madeline—assimsechamavaaassustadiçagarota—,mesmoevitandoa</p><p>todo custo trocar palavras ouolhares comEdgar, tambémajudara a cadelinha</p><p>dele.Elasódeixaradefazê-lonosdiasemquepermaneceunacasadopai,um</p><p>padeiroquevivianoutrobairroemsegundasnúpcias.Considerandotodosesses</p><p>dados, Edgar se esforçava por racionalizar a situação e aliviar a própria</p><p>consciência.Precisavaencontrarumafalhadesegurançanosistemadasuaculpa.</p><p>Eentão,repentinamente,atingiu-lheamemóriaumfatoquelhefoibastanteútil</p><p>nessaempreitada:talvezessaaparentebondadededonaBerenicetivesseorigem</p><p>na sua incapacidadedeolfato!Sim,pormais estranhoque isso lheparecesseà</p><p>época,faziaagoratodoosentido.Eistoporque,nomesmodiaemquemorreu</p><p>MarieRoget,ocorreraoseguintediálogo:</p><p>“Dona Berenice, fico muito agradecido por tudo o que a senhora fez pela</p><p>minhacachorrinha.”</p><p>“Ora,nãoprecisaagradecer,agentefazoquepode.”</p><p>“Quandoadoençadelaseagravou”,continuouele,“juroprasenhoraquenão</p><p>consegui parar de pensar nas pessoas que morriam de peste negra na Idade</p><p>Média.”</p><p>“Credo,seuEdgar!”</p><p>“Sei lá… O jeitão dela me fez lembrar aquela praga… Uma coisa que vai</p><p>reduzindo o doente a um zumbi… E o cheiro! Nossa, que horrível!… Até a</p><p>caminhadelaficoufedida.Eeudeixandoelanasuacasa,nessacondição…Com</p><p>seugatolá…”</p><p>“Eunãodeixava os dois juntos, seuEdgar. E oValdemar, alémde velho, é</p><p>vacinado.”</p><p>“Sim, mas só o cheiro já era… nossa! Um cheiro de morte, de doença</p><p>incurável…Sempreme fazia pensar que a peste negra devia causar um futum</p><p>parecido. Que só o amor pelo doente impedia que os parentes o</p><p>abandonassem…”</p><p>“Ah”, replicouela, “pramim issonão faria amenordiferença.Eu tiveuma</p><p>doença,umataldeKalmão,Kallmann,sei lá…eporcausadelanãosintomais</p><p>cheironenhum…”</p><p>Naocasião,Edgaraencararacomumdiscretosorriso, tentandoocultarseu</p><p>espanto. Ele, que amava o cheiro da noiva, o cheiro da própria casa, que não</p><p>suportavaapresençadealguémcomcê-cê,nãoconseguiaimaginarcomoseria</p><p>viversemoolfato.Paraele,ocheirotinhatudoavercomamoreaversão.Quem</p><p>nãoeracapazdeperceberosodorestalvezfossetambémincapaztantodeamar</p><p>quanto de odiar. Talvez sua vizinha fosse uma pessoa fria… Talvez essa sua</p><p>incapacidade até tivesse alguma relação com o fato de já não ter nenhum</p><p>companheiro… Talvez sua aparente bondade não fosse senão resignação e</p><p>complacência…Ademais,nuncaaviraacarinhandosequerosprópriosfilhos,os</p><p>quais,aparentemente,passavammaistempocomopai.Edgariaconfundindoa</p><p>esse modo características físicas com princípios determinantes da alma.</p><p>Portanto, para auxiliar sua extravagante racionalização, rememorava vezes</p><p>seguidasoreferidodiálogo:sedonaBerenicefosserealmenteincapazdeamare</p><p>deodiar, talveznão tivesseajudadoa cachorrinhadele senãoporumacortesia</p><p>convencionaldevizinhasolitária,e,portanto,pelamesmarazão,elanãosentiria</p><p>tantafaltaassimdogato.Omaisprováveléqueelafossetotalmenteindiferente</p><p>aos animais.O rapaz,porém,pormaisque especulasse atenuantes, continuava</p><p>sendo espicaçado pelas Fúrias da própria consciência, sentindo-se ora um</p><p>criminoso,oraumingrato.E lávinhaentãoanecessidadede inculparo felino,</p><p>essecretinopeludoqueiniciaratodooproblema.</p><p>—Masquebesteira…—resmungouporfim,cansado.—Erasóumanimal,</p><p>cacete!Ocoitadoseguiaoinstinto.EanteseledoqueoNevermore…</p><p>Edgar, ao contrário do gato preto, era um ser humano, tinha livre-arbítrio,</p><p>responsabilidades e…— e, por essa razão, foi repentinamente dominado por</p><p>umaoutrataquicardia,destavezumamaisforteeparanoica:aoesbarraremsua</p><p>própria responsabilidadede gentehumana, recordouos recentes linchamentos</p><p>moraisdediversaspessoasenvolvidasnamortedeanimaisdomésticos!Asredes</p><p>sociaisestavamrepletasdessescasos.Atalinjeçãoletaldadaaalgumbichanopor</p><p>uma enfermeira… A mãe que matou o cachorro doente na frente da filha…</p><p>Laboratórios invadidos por utilizarem beagles em suas experiências… Enfim,</p><p>coisas antes tão banais, tão comuns, tão próprias de um ser que decide</p><p>livremente…Edgarfaziasuaselucubrações:suaavó,queparaalimentarospeões</p><p>da fazenda torcia o pescoço de uma galinha quase todo dia, se viva estivesse,</p><p>correriaoriscodepegarprisãoperpétua…Imagineentãooqueessagenteteria</p><p>feito ao seu tio-avô, o qual, sempre que sua gata paria, separava para si os</p><p>machos, afogando em seguida todas as fêmeas… “Os militantes da internet”,</p><p>prosseguia ele, “caso encontrassem Abraão, iriam apedrejá-lo! Um ancião</p><p>nojento que sacrificou, no lugar do filho Isaac, um inocente cordeiro… ‘Ah,</p><p>humanos malvados!’, bradam hoje, com tochas acesas nas mãos, pela aldeia</p><p>globaldasredessociais,osaldeõesrebelados,oscaçadoresdegente!‘AntesIsaac</p><p>queopobrecordeirinho!’,clamariamessesmalucos.”Éclaroqueele,Edgar,não</p><p>escapariadeumassassinatodereputaçãodessetipo…Nofundo,éverdade,não</p><p>seimportavatantocomaquelagentedistantedoFacebookedoTwitter—essas</p><p>praçasdigitaisdohomemmoderno.Piormesmoeraimaginarqueatésuanoiva</p><p>poderiasevoltarcontraele!Isto,sim,odeixouquaseapavorado!Apesardesuas</p><p>diferenças,elerealmenteaamava,nãosuportariaseralvodeseuódio…Como</p><p>fazê-la entender que matara o gato por amor a Nevermore? Ora, ele estava</p><p>apenas defendendo o que era seu! Mas Virgínia entenderia isso? Se ela se</p><p>enfezara,certafeita,aoouvi-lodizerqueseriacapazdematarumcriminosopara</p><p>protegê-la,imagineentãooquediriaseovissematarumgatoparaprotegerum</p><p>passarinho!… Para ela um gato deveria valer mais do que um humano</p><p>criminoso. “Mas era ele ou o sabiá,Virgínia!”, argumentaria. “Isso é apego! É</p><p>fúria assassina, não é amor!”, retrucaria ela. “Mulheres”, remordia-se</p><p>antecipadamente Edgar…Na verdade, a noiva considerava uma crueldade até</p><p>mesmo manter animais na gaiola, uma discussão recorrente entre os dois. É</p><p>óbvioquetudoissotinhaumúnicosignificado:atemporadadecaçaaosbruxos</p><p>quematamgatospretosestavaaberta!Emsuma:eleprecisavalivrar-sedaquele</p><p>cadáveri-me-di-a-ta-men-te!</p><p>Edgar foi então à cozinha e pegouuma sacolaplásticade supermercado.A</p><p>ideia era ir até o córrego nos fundos da casa e discretamente despejar nele o</p><p>animal.Voltouemseguidaaoquartoenotouque,mortoogato,passaraasentir</p><p>nojodaquelepelo tãomacioebrilhante.Ecomooanimalestavamagro!Dona</p><p>Berenicenãodeviaalimentá-lomuitobem—docontrárioValdemarnão teria</p><p>tentado invadir sua casa tantas vezes —, mas certamente ela o escovava e</p><p>banhava,poisopeloreluziafeitoumaestoladevisom.Comamesmaluvaque</p><p>usava para lavar a louça, depositou o animal na sacola. Desceu novamente as</p><p>escadas. Ao chegar à cozinha, espiou pelo vitrô, que também esquecera</p><p>entreaberto—outrapossívelviadeentradadobichano.</p><p>—Que saco!— praguejou, ao perceber que, além da cerca, havia crianças</p><p>correndodeum ladoparaooutro,porentreasárvores,deambosos ladosdo</p><p>riacho.Comoseuquintalnãopossuíaomurodosfundos,mesmoseoptassepor</p><p>enterrarogato,</p><p>atrairiacuriosidade.Eatrairaatençãoalheianumaépocaemque</p><p>atémenininhasdedezanosdeidadepossuemcelularescomcâmerasdevídeo…</p><p>que temeridade! O que fazer então?... Sentou-se por um instante e coçou os</p><p>olhos,acabeça.Logomaissuanoivairiatercomeleparajantaremjuntos,não</p><p>podia deixar as provas do crime assim à vista. E, olhando para o chão, viu as</p><p>penas deNevermore. Resolveu colocá-las namesma sacola, afinal eram pistas</p><p>quepoderiamincriminá-lo.Pegoudavassouraeasajuntou.Subiuasescadase,</p><p>tantonobanheiro quantonoquarto, recolheu resquícios de pelos e penas.Ao</p><p>concluiratarefa,voltouparaacozinhaepercebeuqueascriançasjánãofaziam</p><p>tanta algazarra lá fora. Tornou a espiar: havia apenas um garoto, de pé,</p><p>debruçadocontraotroncodoenormeguapuruvu,ocultandoorostonopróprio</p><p>braço. Reconheceu nele o filho mais velho de dona Berenice, cujo nome</p><p>desconhecia,acontaremvozalta—certamentebrincavamdeesconde-esconde.</p><p>—Éisso!—sussurroucomenergia,quaseeufórico.</p><p>Sim,esconde-esconde.Numafraçãodesegundo,Edgarprojetoutodaaação:</p><p>ali,sobacozinha,ondediasantesiniciaraaconstruçãodeumaparederenteao</p><p>barranco, daria sumiço ao gato preto! Sim, bastava escondê-lo, emparedá-lo!</p><p>Tinhavistoesserecursonumfilmeantigo.Quemeramesmooator?PeterLorre?</p><p>Era possível, afinal Lorre participara de muitos filmes de horror dos mais</p><p>sinistros.Enfim,aquestãoéqueEdgaremparedariaocadávernaquelequeseria</p><p>seufuturoquartodedespejo.Aparedejá iniciadatinhacomoprincipalfunção</p><p>ocultar uma enorme barriga de rocha, isto é, disfarçar parte do declive do</p><p>terreno.ParaEdgar,apesardeserumaboafundaçãoparaorestantedacasa,a</p><p>superfícieirregularecheiadesaliênciasdaquelarochanãoficarianadabonitano</p><p>futuroporão.E essaparede já estavaquase concluída, umavezque lhe faltava</p><p>meramenteaquintapartedototaldesuaextensão.Comissoemmente,esem</p><p>maispreocupações,abriuaportadacozinhae,levandoasacola,desceuaestreita</p><p>escadaqueconduziaatéoquintal.Entrousobacasa,olhouomontedeareia,os</p><p>sacosdecimento,ostijolos,esorriu:ninguémjamaisdescobririaoocorrido.</p><p>—Mãosàobra!—falouemvozalta,cheiodeconfiança.</p><p>E então dirigiu-se até a abertura que restava, em cujo estreito vão atirou a</p><p>sacola,quedesapareceunaescuridão.</p><p>—Noventa enove, cem!! Lá vou eu!!!—gritoudooutro ladodo riachoo</p><p>filhodedonaBerenice.</p><p>Edgarolhouparatrásemurmurouparasimesmo:</p><p>—Podevir,garoto,podevir.Essecorpinhoaquivocênãovaiencontrarmais</p><p>não…—e,sorrindo,oolharcheiodeastúcia,passouamisturarcimento,águae</p><p>areia.Levouquasetrêshorasparacompletaraparede.Ascrianças,porsuavez,</p><p>continuaram brincando e gritando até o pôr do sol, quando finalmente</p><p>atenderamaoschamadosdasmães.Aoanoitecer,Edgarjáhaviafeitoatémesmo</p><p>umrebocomaistosco.Edeixouparaoutrodiaatarefadepassarmassacorridae</p><p>caiar a parede. Precisava apenas tomar umbanho para aguardar a chegada de</p><p>Virgínia.Elanãodesconfiariadenada,ogatojádescansavasobacozinhaemseu</p><p>silenciosotúmulo.</p><p>*</p><p>Horasmaistarde,Edgar,decasaarrumadaebanhotomado,recebeuVirgíniaà</p><p>porta. Ela havia passado por um restaurante japonês e trazia três pequenas</p><p>sacolas com o jantar daquela noite: um combinado vegetariano e mais um</p><p>amontoado de vegetais que ambos certamente teriam de afogar num pote de</p><p>shoyu,essa“glândula”defitoestrogêniodohomemafeminadomoderno.Ele,por</p><p>sua vez, pretendia abrir a garrafa deAmontilladoTioDiego, umpresente que</p><p>ganharadochefenasemanaanterior.</p><p>—Gostoudomeucabelo?</p><p>—Gostei.Vocêficalindacomocabelopreso.</p><p>Elariu:</p><p>—Vocênemreparou,né?—disse,mostrando-sedeperfil.—Meucoquetá</p><p>presocomhashis.</p><p>—Hummm—aquiesceuEdgar, arqueandoas sobrancelhas.—Esperoque</p><p>nãosejamosmesmosqueagentevaiusarpracomer.</p><p>Virgínia fingiunãoouvi-lo—nãoqueriadarcordaàmáquinade boutades</p><p>dele—esedirigiuàcozinha,ondedepositouassacolassobreamesa.</p><p>—Ué,cadêopassarinho?—indagou,notandoagaiolavazia.—Finalmente</p><p>fugiu?</p><p>O rapaz, que já havia ensaiado previamente uma resposta, explicou que o</p><p>pobreanimalamanheceradoenteeagoraestavadeitadonumacaixadesapatos,</p><p>cobertocomumpaninho.Elaquisvê-lo.</p><p>— Tadinho! — suspirou, observando o sabiá que mantinha apenas a</p><p>cabecinhaàmostra.—Távendonoquedácriarobichinhopresodessejeito?</p><p>Contrariado,elenãoconseguiuevitarumdiscretoesgar:</p><p>—Nãofoiminhaculpa,Vi.Eelenãoiasobreviversozinholongedagaiola.Já</p><p>táacostumado.</p><p>— Tá bom, já conheço esse papo… — devolveu ela, com enfado. E</p><p>amenizandootom:—Vamoscomer?</p><p>Sentaram-se àmesa.Os pensamentos deEdgar agitavam-se embusca dum</p><p>assuntoqualquer, oqual, é claro,nuncadava as caras.Averdade éque estava</p><p>cansado,aqueleforaumdiaextenuante.Aescaladadasemoçõeslheexauriraas</p><p>reservas de energia. As irritantes postagens no Facebook, o passarinho</p><p>desaparecido, os dentes assassinos do invasor, a raiva, a luta, o descontrole, o</p><p>pescoçoquebrado, a culpa, aparede erguida…Tudoaquiloo consumira e lhe</p><p>seguiaroubandoavontadedeentabularumaconversação.</p><p>Notandooestadodeespíritodonamorado,Virgínia, taçaàmão,procurava</p><p>umamaneira de animá-lo, afinal, segundo sua perspectiva, aquela deveria ser</p><p>umanoiteespecial.</p><p>—Ed…Tátudobemlánoseutrabalho?</p><p>—Omesmotédiodesempre—replicouele,seco,umtantodistraído.</p><p>Aquela resposta sincera, porém atravessada, a deixou tão ensimesmada</p><p>quanto ele. Nos últimos meses, ela vinha sentindo a necessidade de dar uma</p><p>guinadaemsuasvidas,dedarumpassoalém.Rememoroualgunsdiálogosem</p><p>que pescara uma anuência implícita da parte dele. Meditava a respeito. Sim,</p><p>tinhacertezadequeestavamnomesmobarco.</p><p>—Hum,gostosoessevinho—disseela,rompendoosilêncio.</p><p>Amboscomiamlentamente,sorvendodetemposemtemposoAmontillado,</p><p>que,naomissaopiniãodeEdgar, teriacombinadomaravilhosamentebemcom</p><p>um frango xadrez, por exemplo, e não comaquela insossa sabe-se-lá-o-quêde</p><p>soja.</p><p>—Edgar…—tornouela,adentrandooterreno.—Vocênãoachaqueagente</p><p>jápodiapelomenosmorarjunto?</p><p>Ele caiu das nuvens. Aquele não era de forma alguma omelhormomento</p><p>paradiscutirtematãodelicado.Desanimado,oslábiosentreabertos,vaciloupor</p><p>doisoutrêssegundos.Precisavaalterarorumodaconversa,nãoqueriacorrero</p><p>risco de iniciar uma discussão difícil. Infelizmente, o ímpeto que o fez abrir a</p><p>bocanãosoubeescolherassuntomenosespinhoso.</p><p>— Sabe, Vi. Andei lendo seus posts no Facebook. Aqueles de defesa dos</p><p>animais…</p><p>Virgínia fez um muxoxo, torceu os lábios, olhou para baixo. Não podia</p><p>acreditar que a resposta à sua acalentada indagação, em vez de uma palavra</p><p>romântica,seriaumapolêmicadessenaipe.Logoergueuosolhosevoltouafitá-</p><p>lo:</p><p>—Oqueéquetêmosmeusposts?</p><p>—Acadacincoposts,vocêmedátrêsalfinetadas.</p><p>Elaarregalouosbelosolhosnegros:</p><p>—Oquê?!Cêtáviajando,Ed…</p><p>—Nãoéviagem.Vocêvivemedandoumasindiretasmuitochatas.Àsvezes</p><p>atéestragamomeudia—contestouele,jásearrependendodotomempregado.</p><p>Amoça,visivelmentedesconcertada,seaprumounacadeira:</p><p>— Olha, se você veste a carapuça, a culpa não é minha. Talvez seja um</p><p>recadinhodasuaconsciência…</p><p>Essaúltimaobservaçãooirritouprofundamente.Fezopossívelparaseconter</p><p>enãoreplicaràaltura.Odiavaessacondescendênciatãocomumaosmilitantese</p><p>aosdogmáticos.Respiroufundo.Entãoesboçouumsorrisoque,ao</p><p>contrárioda</p><p>tranquilidadequeesperavatransparecer,apenasadeixoualertaeintrigada.Era,</p><p>porassimdizer,umsorrisodecuringa.</p><p>—Vi,nósdescendemosdecaçadoresepastores.</p><p>—E,graçasaosdeuses,evoluímosmuitodelápracá.Vivaaagricultura!</p><p>—Tá,podedizer“vivaaagricultura”,nãodiscordo.Ésóporcausadelaqueo</p><p>Brasil ainda não foi pro brejo. Mas esta comida vegetariana, por exemplo…</p><p>Sashimi de tofu? Pelo amor de Deus… “Viva a agricultura!” não quer dizer</p><p>“morteaopaladar!”.</p><p>AgorafoiVirgíniaquemseirritou:</p><p>—Eunãotenhopostadonadasobrevegetarianismo.</p><p>—Vocêjáépraticamenteumavegana.Seuvegetarianismoésubjacenteaesse</p><p>seuamorabstratopelosanimais.Epõeabstratonisso!Oengraçadoéquevocê</p><p>dizamarosanimais,masnuncatevesequerumpeixedourado.</p><p>—Quando eu amo alguma coisa, quero que essa coisa seja livre. Não vou</p><p>colocarumpassarinhonagaiolanemumcachorronumapartamento.</p><p>Por pouco Edgar não lhe atirou uma armadilha venenosa: já que ela</p><p>respeitavatantoaliberdadedosseresamados,porqueentãoquerialheimpora</p><p>prisãodemoraremjuntos?Maselenãoseatreveu,poisnãoacreditavamaisna</p><p>existênciadesse suposto cárcere.Principalmente se taldecisãoevoluísseparao</p><p>casamento.Seuconceitorelativoaomatrimôniojánãoeradotipoadolescente,</p><p>imaturo. Há já algum tempo havia notado que o casamento por amor não é</p><p>senãoamelhormaneirade libertar tantoohomemquantoamulherdaprisão</p><p>das paixões transitórias. Quem, além de não possuir um cônjuge, tampouco</p><p>possuiumtemperamentocelibatário,dificilmenteocupaamentecomalgoalém</p><p>dabuscapelosexooposto.E,sendoavidacurtacomoé,haveráumpreçoaser</p><p>pago:seosujeitonãopossuiumacompanheira juntoaquemseguiremfrente,</p><p>andaráemcírculosàprocuradeuma.</p><p>— Olha, Vi — recomeçou ele, procurando uma nova abordagem. — O</p><p>problema real é que, no fundo, temos visões de mundo completamente</p><p>diferentes. Como a gente vai conseguir caminhar namesma direção se você é</p><p>capazdedizerquecertosanimaisvalemmaisdoquecertossereshumanos?</p><p>—Evaimedizerquenão é verdade? Seupassarinhonão émelhordoque</p><p>Hitler?</p><p>—Ai,ai…Lávemvocêcomessevegetarianonazi.Típico.Issonãopassade</p><p>ReductioadHitlerum…</p><p>—Hum?</p><p>—O ser humano pode se redimir, Virgínia!— tornou ele.—Um animal</p><p>apenassegueseusinstintos.VocêselembradaquelefilmeOsdeusesdevemestar</p><p>loucos ? Nele a gente vê o que um caçador bosquímano costuma fazer após</p><p>flecharumapresa:ele seaproxima,pedeperdãoaobichoeexplicaqueprecisa</p><p>alimentarsuafamília.Umaonçajamaisfariaisso:elanãoéautoconsciente!</p><p>— Os humanos civilizados não são assim: compram tudo no açougue e</p><p>reclamandodopreço.Oshumanosnãovalemnada.</p><p>— Os judeus e os muçulmanos, por exemplo, só comem carne quando o</p><p>animal é morto ritualisticamente. Mutatis mutandis , é a mesma atitude dos</p><p>bosquímanos.</p><p>Elafezumacareta:</p><p>—“Mutatismutandis”…—repetiu.—Ai,sóvocê.</p><p>—Animaispodemsermuitodevotadosaseussemelhanteseatéaseusdonos,</p><p>mas não são capazes da verdadeira compaixão. Eles não podem conceber um</p><p>Criador.</p><p>—Ah,não,porfavor,nãocomeçacomreligião!—retrucouela,irritada.—O</p><p>fatoaquiéoseguinte:vocêdizamarosanimaismaisdoqueeuapenasporque</p><p>gostadecriá-losemcativeiro.Edecomê-los!Quemamanãocomeoseramado!</p><p>Nãopercebeacontradição?</p><p>—Umhomemquer semprecomeramulheramada—respondeuele, com</p><p>umsorrisozombeteiro.</p><p>Elanãoachouamenorgraçae,exasperada,repetiu:</p><p>—Nãopercebeacontradição?!</p><p>— Seria contradição se eu fosse um hindu que adora churrasco ou um</p><p>islâmicocomedordebacon—tornouEdgar,nomesmotom.—Háanimaispara</p><p>toda serventia,Vi. E, se vocênãonota que somos superiores a eles, podepelo</p><p>menosassumirqueamaioriadeles,dosprópriosanimais,nota.Sevocêtivesse</p><p>um bicho qualquer, perceberia que os animais nos olham como se fôssemos</p><p>deuses,comummistodeadmiraçãoedevoção,eàsvezesdemedotambém,né,</p><p>porqueafinalagentetemtantaspaixõesefalhasquantoumdeusgrego.</p><p>—Vai testar isso lánaÁfricaentão,Ed.Apostoqueum leão, emvezde te</p><p>achardivino,vaiteacharéumadelícia.</p><p>Edgarestavasecansandodaquilo.Sempreseacharaumpéssimodebatedor.</p><p>Nunca conseguia ir até o fim de uma controvérsia sem se deixar envolver</p><p>emocionalmente. Respirou fundo mais uma vez e decidiu reformular sua</p><p>estratégia.Entreoutrascoisas,precisavaevitarataquespessoais.</p><p>—Você diz para eu “não começar com religião”,mas, no final das contas,</p><p>esse é o cerne da questão. Você não acredita que fomos criados à imagem e</p><p>semelhançadeDeus.Achaquesomossimplesmentemaisumtipodeanimal.</p><p>—Esomosmesmo.Comercarneécanibalismo,qualquercarne.</p><p>Eletentouseguircomoraciocínio:</p><p>— Toda liderança implica unidade, Vi. Como iremos liderar juntos uma</p><p>famíliasenãoconcordamoscomoessencial?Criaremosfilhosesquizofrênicos?</p><p>Jáimaginouoqueessalenga-lengadequehumanosnãovalemnadavaicausar</p><p>nacabeçadeumacriança?</p><p>—Ai,Ed,issoébesteira!Ascriançassãomaisespertasdoquevocêimagina.</p><p>Eninguémaqui falouem filhos.Eu trabalho, lembra?Não tenho tempo.Você</p><p>exageratudo!</p><p>—Não é uma questão de esperteza, de cabeça. É uma questão de coração.</p><p>Quandoapessoasevêmetidanumasituaçãodrástica,premente,quemmandaé</p><p>ocoração.Eocoraçãoseorientapelavisãodemundodapessoa.</p><p>—Ninguémfalouemfilhos,Ed!</p><p>—Eu estou falando! E tô falando porque, se você acha que humanos não</p><p>prestam,certamentenãovaiquererterhumanosemminiaturadentrodecasa.E</p><p>quersaber?EuqueriaerateravidadaquelepessoaldoseriadoOspioneiros:uma</p><p>fazendinha no Meio-Oeste, uma esposa compreensiva, três ou quatro filhos</p><p>saudáveis e ativos, liberdadepara defenderminha família, para cultivarminha</p><p>terraecriarmeusanimaiscomobementender.</p><p>—Ai,Ed, agentevivenomundo real,nopresente…—retrucouVirgínia,</p><p>ofendidacomaquele“esposacompreensiva”.</p><p>— A família é a única instituição humana atemporal! Pouco importa o</p><p>períodohistóriconoqualvivemos.</p><p>AgorafoiVirgíniaquemrespiroufundo:</p><p>—Olha,Ed,eupergunteisevocêqueriamorarcomigoevocêcomeçouessa</p><p>conversa chata sobre polêmicas do Facebook. Se você não quiser dividir o</p><p>mesmoteto,ésómefalar,nãoprecisainventardesculpas.</p><p>—OGracilianoRamos ainda é seu escritor brasileiro predileto?— insistiu</p><p>Edgar,encarando-a.</p><p>—Caramba,vocênemmeouvemais!</p><p>—Éounãoé?</p><p>Virgíniaexplodiu:</p><p>—É,sim!Masedaí?!Vocêficafugindodaminhapergunta,droga!</p><p>—Sabiaque,numdosrelatóriosdelecomoprefeitodePalmeiradosÍndios,</p><p>eledizquesuaprincipalatividadeerarecolheroscachorrosderuaematá-los?</p><p>Elacerrouosolhos,refestelou-senacadeiraeemudeceucomumaexpressão</p><p>rancorosa. Em seguida, levou amão à testa,mais atormentada que pensativa.</p><p>Seus nervos estavam em frangalhos. Ela e Edgar já haviam tido discussões</p><p>semelhantes,mas,agora,oquerealmenteamagoavaeraessatergiversaçãosem</p><p>fim. Não sabia dizer se ele realmente levava a sério tais questões ou se</p><p>simplesmentenãotinhacoragemderejeitaràsclarassuaproposta.Decidiunão</p><p>dizermaisnada.Omelhorafazererasairdaliomaisrápidoquepudesse.</p><p>—Vouembora—disse,levantando-se.</p><p>— Espera, Vi. Eu preciso te contar uma coisa. Só estou dizendo tudo isso</p><p>antesporqueachoqueasinceridadeéimportantenumrelacionamento.Espera,</p><p>deixaeutecontar.</p><p>Sentindoquechegaraaoportunidadedezombardeletalcomoelecostumava</p><p>fazer,elaretirouocelulardabolsaeoapontou</p><p>paraele:</p><p>—Falacomomeucelular—disse,emtomsarcástico.—Mais tarde,seeu</p><p>aindaestiverafim,vououvirsuaconversafiada.Jácanseidassuasbesteiraspor</p><p>hoje.</p><p>—VocêperdoariaoGraciliano?—tornouele,semsealterar.</p><p>Ela manteve-se em silêncio, uma expressão gélida no rosto, olhando na</p><p>direçãodaportaquedavaparaasala.Obraçocontinuavaerguido,apontandoo</p><p>celularparaorostodeEdgar.</p><p>—Senãovairesponder,tudobem,voucontarassimmesmo—e,apósuma</p><p>brevepausa:—Hojeeumateiogatodavizinha,oValdemar.</p><p>Semmoverummúsculoda facesequer,elavoltoua fitá-lodiretamentenos</p><p>olhos.</p><p>—MateiogatodadonaBerenice.Quebreiopescoçodele.</p><p>—Issoémesmoverdade?—elafinalmenteperguntou.</p><p>—É.</p><p>—Elasabe?</p><p>—Não.</p><p>—Eoquevocêfezcomele?</p><p>—Comocorpo?Taíatrásdacasa.</p><p>—Porquevocêfezisso?</p><p>—Nãoteveoutrojeito…EletavatentandocomeroNevermore.</p><p>— Então você matou um gato porque ele tava tentando pegar um</p><p>passarinho…</p><p>—Tentando,não…</p><p>—Vocêéumidiota,Edgar!—gritouela,interrompendo-o.Entãoabaixouo</p><p>braço,guardouocelularnabolsaesaiudacozinha.Segundosdepois,eleaouviu</p><p>bateraportadafrentee,emseguida,arrancarcomocarro.</p><p>“Aleajactaest”,pensouorapaz.“Seelaconseguirmeentender,irávoltar.”</p><p>Antesde subirparaoquarto, ele foi trancar aportada sala: oshashis, que</p><p>antesprendiamocabelodanamorada,estavamagoranochãodasalaformando</p><p>umacruz,oquelhepareceudemauagouro.Correu,pois,atéacaixadesapatos:</p><p>Nevermoreestavamorto.</p><p>*</p><p>Naquela noite, Edgar dormiu muito mal. Sentia-se inquieto, tendo acordado</p><p>duasoutrêsvezesduranteamadrugada,ocorpodolorido,orostosuado.Saber</p><p>que na manhã seguinte teria de enterrar Nevermore o enchia de tristeza.</p><p>Revolvia-se na cama sem parar. A certa altura chegoumesmo a acreditar que</p><p>ouvia a cantoria noturna do falecido gato preto, o quemuito o impressionou.</p><p>Umalamúriafelina,distante,comoodeummachoadisputar,numarremedode</p><p>choro humano infantil, a fêmea indiferente. Claro que só podia ser outro</p><p>bichanoqualquer,talvezaumoudoisquarteirõesdedistânciadali.</p><p>—Quesaco.Ofilhodamãeerasóumgato…—resmungouaoacordarpela</p><p>segundavez.</p><p>Depois de lutar contra a insônia — uma insônia também recheada de</p><p>remordimentosdevidoàmaneirapelaqualtrataraVirgínia—,Edgarfinalmente</p><p>caiuemsonoprofundo.SófoidespertarquandooSoljáestavaalto,aípelasdez</p><p>da manhã daquele domingo, pois alguém, provavelmente numa das casas</p><p>vizinhas,berravaaplenospulmões:</p><p>—Cadêobandido?!Vamopegáessecara,galera!</p><p>Apurandoosouvidos,percebeuquehaviaumintensorumordefundo,como</p><p>se dezenas de pessoas, talvez centenas, rezingassem todas ao mesmo tempo.</p><p>Alguémcertamentereuniraavizinhançaparajustiçarumladrãozinhoou,quem</p><p>sabe, um traficante. Isso não era tão incomum nesses bairros novos mais</p><p>afastados. Emgeral, a polícia só apareciamuitas horas depois, quando tudo já</p><p>estavaconsumado.</p><p>—Eletáaídentro!Vamoentrar!—secundououtravozmasculina.</p><p>E o rumor intensificou-se, transformando-se numa vozearia confusa, mais</p><p>próxima.EentãoEdgarouviuajaneladevidrodasaladafrenteseestilhaçando.</p><p>Assustado, dum único pulo levantou-se da cama: e se o tal bandido estivesse</p><p>escondidoemsuacasa?</p><p>—Caramba!—murmurou,sentindooderramesúbitodeadrenalina.</p><p>Péantepé,Edgarfoiatéajaneladoquartoquedavaparaaruaeaabriu.</p><p>— É ele, pessoal! É ele! — rosnou dona Berenice, que já estava em sua</p><p>garagem.</p><p>Aparvalhado, Edgar arregalou os olhos: uma multidão tomara toda a rua</p><p>diante de sua casa!Não lograva compreender como um bairro tão desabitado</p><p>poderia produzir semelhante concentração de gente. Talvez, além dos</p><p>moradores,tambémhouvesseestudantes,professoresesindicalistasentreaquela</p><p>súcia,poisumeventopolíticoestavaemandamentonumclubepróximo,oque</p><p>explicaria o grande número de jovens e toda aquela gente uniformizada de</p><p>vermelho. Dentre estes, alguns já haviam pulado o portão da frente e agora</p><p>acompanhavam a vizinha, rodeando seu carro. Três ou quatro,mais ousados,</p><p>alternavam-sedepésobreocapôeotetodoveículo.Aovê-lo, inúmerasvozes</p><p>levantaram-secontraele:</p><p>—Assassino!</p><p>—Éele!Éele!</p><p>—Vamoacabarcomessefilhodaputa!</p><p>ComoumpapaaabençoardajanelaopovoreunidonapraçadeSãoPedro,</p><p>Edgar acenava: na verdade, pedia silêncio. Incapaz de consegui-lo, alcançou</p><p>gritar:</p><p>—Oqueéquetárolando,pessoal?!</p><p>Umaprofusãodeinvectivas,anátemasepalavrasdeordeminvadiuoquarto</p><p>emuníssono,masEdgarnãoentendeuabsolutamentenada.Entendeuapenasa</p><p>pedra que passou a um centímetro de sua cabeça, indo atingir em cheio o</p><p>monitordocomputador,quetrincoufeitoopara-brisadeumcarroacidentado.</p><p>Fechou a janela num átimo e correu a buscar o celular: precisava chamar a</p><p>polícia.</p><p>“Aspessoasenlouqueceramdevez!”,pensava,enquantodesplugavaocelular</p><p>docarregador.</p><p>Quandoateladebloqueioseiluminou,Edgarnotouquehaviamaisde4mil</p><p>notificaçõesdoFacebook:oqueestariaacontecendo?Quisabriroaplicativoda</p><p>rede social e verificar se havia alguma relação coma situação absurdaqueora</p><p>experimentava,mas,nessemesmoinstante,ouviuumforteestrondoe,paraseu</p><p>horror,percebeuquehaviamarrombadoaportadarua.Agritariaeabalbúrdia</p><p>resultantes subiam pelo vão da escada como a fumaça por uma chaminé,</p><p>indicandoquesuacasaforarealmenteinvadidapelosbárbarosvizinhos,oupor</p><p>seja lá quem fossem. No térreo, sons terríveis de objetos sendo derrubados,</p><p>atiradosequebradosatestavamqueovandalismoeossaques iamdeventoem</p><p>popa.Indecisoentreaideiadevestir-se—eportantodenãoserpegodecuecas</p><p>— e a opçãomais sábia de correr e trancar-se no banheiro do outro lado do</p><p>corredor—aportadeseuquartonãotinhachave—,Edgarviu-separalisadopor</p><p>segundos assaz valiosos. Eis o seu erro!Quando finalmentedecidiu alcançar o</p><p>banheiro, já era demasiado tarde: um sem-número demãos o agarraram pelo</p><p>braço,pelaspernas,pelopescoço,pelocabeloeatépelascuecas.Perdeuochãoe</p><p>derepentejáflutuavasobreascabeçasdaquelachusmairada.</p><p>—Socorro!Socorro!Melarguem!—desesperava-se.</p><p>Foi conduzido à força escada abaixo por um aluvião de gente cujos dentes</p><p>rangiamdefrenesiecujosolhosfaiscavamdecólera.Sim,haviatambémrisadas</p><p>emuitasgritasdetriunfo,comoseatorcidaorganizadadealgumtimedefutebol</p><p>estivessepresenteecomoseele,Edgar,fosseotroféu.</p><p>—Socorro!</p><p>Atravessou a casa de ponta a ponta, a bem dizer, por via aérea, sendo</p><p>despejadodoaltodaescadadosfundosdiretamentenoquintal,ondecaiumeio</p><p>dequatro,afundandoorosto,oscotoveloseos joelhosnaterra.Aindacomos</p><p>olhos cerrados e sujos, a expressão amargurada e dorida, foi agarrado pelos</p><p>cabeloseforçadoaficardejoelhos.</p><p>—Éesteaqui,donaBerenice?—disseumavozmasculinaesganiçada.</p><p>—Éele,sim.</p><p>— É ele! É ele! — bradaram em coro dezenas, talvez centenas de vozes</p><p>enfurecidas,entreasquaishaviainclusivevozesinfantis.</p><p>Edgar tentou limpar os olhos para podermirar a vizinha,mas seus braços</p><p>erammantidos presos por mãos invisíveis. Apesar daquela resposta, a voz de</p><p>donaBerenice lhe trouxealgumaesperança,eeleentãovoltouaprocuraruma</p><p>razãoportrásdetodoaqueleabsurdo.</p><p>—DonaBerenice!DonaBerenice!Porfavor,meajuda!</p><p>—Nãomecomprometa.Pramimvocênãocheiranemfede.</p><p>—Porqueisso?Oqueéquetáacontecendo?</p><p>—AgenteviuseuvídeonoYouTube,Edgar—tornouohomenzinhodavoz</p><p>esquisita.— Todo</p><p>mundo já sabe que vocêmata os gatos da vizinhança. Sua</p><p>confissãotábombandonoFacebook.</p><p>—Oquê?!Masqueconfissão?</p><p>AlguémaproximouumcelulardeseuouvidoeEdgarpôdeouvirclaramente</p><p>aconfissãofeitaparaVirgíniananoiteanterior.Eopior:ovídeoestavaeditado,</p><p>nãotraziaainformaçãodequeapenastentarasalvarumpassarinho.Nãopodia</p><p>acreditarqueelafizeraaquilocomele—suapróprianamorada!Ele,pois,sentiu</p><p>umintensovácuonaalturadoplexosolare,pelaprimeiravez,realmentetemeu</p><p>porsuavida.Umaagitaçãopânicaodominou,eelecomeçouasuarfrio.Aquela</p><p>gente doida certamente o havia pego para gato… ou melhor, para bode</p><p>expiatório.</p><p>—Serialkillerdegatos!!—esbravejouumavozcavernosaatrásdele.</p><p>—Mas isso é mentira! — protestou Edgar, atônito. E então, desesperado,</p><p>acrescentoucomtodaainocênciadomundo:—EusómateioValdemar.</p><p>Amultidãoseexaltou:</p><p>—Eleconfessoudenovo!Confessou!</p><p>—Vamosacabarcomele!—berrouhistericamenteumamulhermetidanum</p><p>jaleco branco, em cujo crachá podia-se ver um “psi-alguma coisa”: talvez uma</p><p>psicóloga,talvezumapsiquiatra.</p><p>Ohomenzinholevantouobraçoeinstou-osasecalar:</p><p>—Calmaaí,turma!—disse,cheiodeautoridade.—Primeiroagenteprecisa</p><p>encontrarocorpodogato.Agenteprecisadeprovas,né?Novídeo,nossoamigo</p><p>aquidizqueescondeueleatrásdacasa.Alguémjáencontrouobichano?</p><p>Conforme esse improvisado comissário do povo ia olhando em redor, as</p><p>pessoasiamseafastandodoseucampodevisão,deixando-oentreverumquintal</p><p>já todo esburacado, com covas de todos os tamanhos e profundidades. Não,</p><p>ninguémencontraranada.</p><p>—Possolavarorosto?—solicitouEdgar,humildemente.</p><p>O homem fez então um sinal para que levassem o prisioneiro até uma</p><p>torneiralocalizadasobacasa.Ali,encheramomesmobaldeutilizadopelorapaz</p><p>napreparaçãodocimentoeatiraramáguaemseurosto.Semsoltarseusbraços,</p><p>permitiram que usasse as mãos para limpar-se. Sua cueca, enlameada, pendia</p><p>feito um coador de café usado. Quando finalmente conseguiu abrir os olhos,</p><p>Edgarviuumaespessaeintransponívelmuralhadegenteabloquear-lheasaída.</p><p>Atrásdesi,apenasaparededofuturoporão,recentementerebocada.</p><p>—Vocêsestãoenganados!Eunãofiznada!—disseele,avozembargada.</p><p>—Mas,véio,cêconfessouduasvezes:novídeoeagora.</p><p>—Ovídeofoiumabrincadeirademaugosto.</p><p>—Eessaconfissãoquecêacabadefazer?Éoquê?</p><p>Edgar,opressotantopelosânimosexaltadosàsuavoltaquantopelavisãodos</p><p>pedaçosdepauemriste,estavaquaseaosprantos:</p><p>—Faleiporfalar,paramedefenderdessaacusaçãodeassassinoemsériede</p><p>animais…Eusempretivebichosdeestimação,sempre,eu…</p><p>—Vãodeixarelecontinuarcomessaconversamole?—berroualguémpor</p><p>trásdamuralhahumana.—Tánacaraqueeleéculpado,mano!</p><p>—Verdade!Tinhaumpassarinhomorto lánasaladele—comentououtro</p><p>emvozalta.</p><p>—Eletácomosbraçosarranhados!Devetersidoogato!</p><p>Ocomissáriodopovovoltouaintervircomsuavozinhaestridente:</p><p>— Calma, galera. Vamo deixar o desgramado falar? Se todo mundo ficar</p><p>quietoagentelogovaiverseopapodeleéretoounão.</p><p>Restabelecido o silêncio — e isso deixou Edgar bastante apreensivo, pois</p><p>aquele sujeito diante dele parecia deter um poder real —, reiniciou-se o</p><p>interrogatório. Edgar respondia a tudo da melhor forma que podia, tentando</p><p>aflitivamentepreencherosburacosdeumahistórianaqualValdemarseriaum</p><p>vilãoassassinodepassarinhos,eele,umdefensordavidaselvagem.Claro,nasua</p><p>versão,Valdemarteriafugidovivopelamesmajanelaporondeentrara.Orapaz</p><p>sabiaque,comumamultidão,denadavaleriaapuralógica.Teriaeradeseaterà</p><p>retórica, tentando persuadi-los de sua inocência da maneira mais emocional</p><p>possível. Chegou a falar do tatu que ganhara do avô na fazenda, de como o</p><p>tratarabemeosoltaraaofimdetrêsdias.Éóbvioquenãolhescontouque,na</p><p>verdade,mantivera o bicho amarrado por uma perna para, depois de deixá-lo</p><p>cavartúneisprofundos,poderpuxá-lodevoltaàsuperfície.Issoteriatransmitido</p><p>umaimagemdemasiadocrueldesi.Porisso,preferiuenumerarenomeartodos</p><p>oscãesquetiveradesdeainfância,sendoMarieRogetamaisrecente.Descreveu</p><p>tambémosinúmerosgatoscriadosporsuairmãmaisvelhaaolongodosanos,</p><p>tal comoPlutão,umgato tãopretoquantoValdemar, edoqual tantogostara.</p><p>Com lágrimas nos olhos, falou ainda daMarta Suplicy, um risonho papagaio</p><p>fêmea—mortoporumgambáquandoeletinhaapenas11anosdeidade—,e</p><p>também da tartaruga Marina e do mico-de-cheiro Luís Inácio. Enquanto</p><p>descrevia uma infância digna de um filho de Noé, notou que finalmente</p><p>começara a tocar boa parte daqueles corações empedernidos. Aquele</p><p>autonomeado juiz, que ele descobriu chamar-se Josemar, estava claramente</p><p>inclinadoaliberá-loenãoparecianemumpoucointeressadonaopiniãodeum</p><p>júri. Isto deixou Edgar mais tranquilo e ainda mais convicto de sua própria</p><p>absolvição.</p><p>—Alguémarranjaumatoalhapraessecarasecobrir—disseJosemar,acerta</p><p>alturadodepoimento.E,arrancandorisosdaassembleia,acrescentou:—Parece</p><p>atéqueocoitadodomanotácagado.</p><p>—Móporcão!—gritouumadolescente,jogandomaislenhanafogueiradas</p><p>risadas.</p><p>Foientão,enquantoesperavampelatoalha,queaconteceu:ummiado,talvez</p><p>umgemidodegato,sedeixououvirdistintamente.SópodiaseroValdemar!Um</p><p>princípiodealvoroçotevedesercontido:</p><p>—Vocêouviu?Vocêouviu?—dizia-seaquieali.</p><p>—Quietos!—disseJosemar,enérgico.—Vamoouvir.</p><p>EraomesmomiadodegatomachoqueEdgarouviraduranteanoite.Feitoos</p><p>gemidos de uma criança, o animal parecia cortejar uma fêmea no cio. Uma</p><p>estranhaeletricidadepercorreu igualmentea todososcircunstantes.Entreeles,</p><p>Edgar era o mais pasmado, mal podendo acreditar em seus ouvidos: teria o</p><p>malditoanimalsobrevividoaumpescoçoquebrado?!Esticandoascabeças,todos</p><p>tentavamdetectar aorigemdo som.Aumsinalde Josemar, aquelepelotãode</p><p>orelhas revirou sacos de cimento, tijolos, carrinho de mão, ferramentas,</p><p>mangueiras e atémesmo as covas recém-abertas e o balde que acabara de ser</p><p>usado:masnadadegato.</p><p>—Chefe!Escutasó—disseaofimdeumminutoumsujeitosemcamisa.—</p><p>Vemdaparede!</p><p>Josemar aproximou-se e colou o ouvido ao reboco ainda fresco. Perdeu</p><p>instantaneamente a boa vontade e a recém-manifestada simpatia. Virou-se e</p><p>encarouEdgar:</p><p>—Temalgumaentradaláporcimadacasa?Algumaentradadeporão?Oué</p><p>sóporaquimesmo?</p><p>Edgar, com olhos esbugalhados e o rostomorbidamente pálido, respondeu</p><p>comumfiodevoz:</p><p>—Nãotemoutraentrada…</p><p>—Comoé?!</p><p>—Nãotem.Sóessaparede.</p><p>Opróprio Josemar tomoudumamarretaencontrada juntoàs ferramentase</p><p>começouagolpearaparedejustamenteondenotaraocimentofresco.Amuralha</p><p>humanase fechouaindamaisemtornodesseextraordinárioacontecimento.A</p><p>expectativaeraquasepalpável.Edgar, logoatrásdeJosemar,e já indiferenteao</p><p>fatodeestardecueca, aomesmo tempoque tentavaconvencera simesmode</p><p>que todos compartilhavam duma alucinação auditiva, esticava-se cheio de</p><p>curiosidade.E,assimcomoosgolpesdemarreta,osmiadosprosseguiam.Seria</p><p>possívelqueValdemarfosseagoraummorto-vivo?</p><p>“Queloucura…”,pensavaEdgar.</p><p>Logo que Josemar conseguiu abrir um buraco grande o suficiente para</p><p>introduzirasduasmãos,pôs-seapuxaraquelapartedaparede,que,apósalgum</p><p>esforço, veio abaixo quase que inteiramente. Uma exclamação de espanto</p><p>dominouatodos:depé,arrimadadecostasàrocha, láestavaMadeline,a filha</p><p>albinadedonaBerenice!Aindamais</p><p>brancaquedecostume,todacobertadepó</p><p>decimento,ameninaestavaabraçadaaodefuntogatoValdemar.Eelachorava,</p><p>numalamúriamonótonadequemjáhaviagastotodasuareservadelágrimas.</p><p>—Madeline!!— separou-sedamultidãodonaBerenice.—Vocênãodevia</p><p>estarcomseupai,menina?</p><p>—Não…—ameninasoluçavacopiosamente,onarizescorrendo,oscabelos</p><p>hirtos.—Tavabrincando…deesconde-esconde…</p><p>Em choque, Edgar caiu de joelhos: ele quase matara uma criança! O</p><p>sentimento de culpa que o invadiu — a menina provavelmente chorara em</p><p>desespero a noite inteira! — paralisou-o a tal ponto que mal percebeu a</p><p>indiferençadosdemaisparaaquelefato.</p><p>—Suaidiota!—berroudonaBerenice.—Vaijápracasa,tomaumbanhoe</p><p>ligaproteupaivirtebuscar.Hojeeuvousaircomminhasamigasenãoquero</p><p>saberdecarregarvocêcomigo.</p><p>—Nãofalei?—gritouohomemdavozcavernosa.—Olhaláogatomorto.</p><p>—Mas,gente,ameninaprecisa…—aindatentoudizerEdgar.</p><p>—Assassino!!— interrompeu-oumamulher atarracada, de seios enormes,</p><p>vestidacomumacamisetadeumsindicatoqualquer,aqual,aproximando-se,o</p><p>chutounoestômago.</p><p>Foioestopimparaquecadaqualpegassedumtijolo,dumpedaçodepauou</p><p>duma ferramenta qualquer e começasse ali mesmo a linchar Edgar, que não</p><p>moveu sequer ummúsculo para fugir ou para se defender. Emmenos de um</p><p>minutojáestavadesacordado.</p><p>—Vamoacabarcomessedesgraçado!!—berravam.</p><p>—Assassino!!!</p><p>Alguémentãooarrastouporumapernaeoatirounomeiodoquintal,onde</p><p>seusuplícioprosseguiu.NinguémmaisligavaparaMadeline,que,aessaaltura,</p><p>jádeviaestarchorandoemsuaprópriacasa,paraondeseencaminharavagarosa</p><p>e amarguradamente com o gato morto no colo. Josemar observava o</p><p>linchamento a curta distância, com ar circunspecto. Já não havia o que fazer:</p><p>uma vez que se perde o controle de uma multidão, não há volta. Em dado</p><p>momento,notouquedoisadolescentesregistravamtodaacenacomascâmeras</p><p>deseuscelulares.Josemarchamouohomemsemcamisaaumcantoelhedisse:</p><p>—Rodrigão,aviseaquelesdois,equemmaisestiverfilmando,que,sealgum</p><p>vídeo aparecer na internet amanhã, eles é que vão estar no lugar desse aí. Tá</p><p>ligado?</p><p>—Beleza,chefe.</p><p>—Vai lá, tomao celulardeles.Depoisque terminaro serviço, enxota todo</p><p>mundodaqui.</p><p>—Tácerto.</p><p>Foramapreendidosdezoitosmartphones.Eopovo,então,sedispersou.</p><p>*</p><p>Naquelemesmodomingo,aoanoitecer,Josemarconvidouosvizinhosparaum</p><p>churrascoemsuaresidência,acincoquarteirõesdacasadeEdgar.Sentadonuma</p><p>espreguiçadeira, com um enorme gato siamês no colo, estava satisfeito: havia</p><p>recebidoaencomendafeitanasemanaanterioresuasbocasestavamabastecidas</p><p>com a mais pura cocaína. Boa parte dos vizinhos que haviam presenciado o</p><p>linchamentonaquelamanhãcompareceuàboca-livre,sejaporrespeito,sejapor</p><p>cumplicidade,sejapormedo.Inclusiveumvereador,ex-sindicalista,acudiraao</p><p>convite,poisprecisavarecolherumacontribuiçãodecampanha.Curiosamente,</p><p>nenhumdosconvidadosestranhouosabor levementeadocicadodaquelacarne</p><p>deporco.Talvezfosseumtemperonovo.</p><p>—Nãoquerumpedaço,chefe?</p><p>— Eu? Não, não. Parei de comer porco — respondeu calmamente o</p><p>homenzinho da voz esganiçada. — Acho que vou me converter ao Islã… —</p><p>acrescentoumaliciosamente,piscandoumolho.</p><p>QuantoaEdgar,ummistériopermanentecercouseudesaparecimento:para</p><p>ondehaviaido?Oquelheacontecera?Teriaficadocomvergonhadaquelevídeo</p><p>queviralizarana internet?As inúmerasameaçasquereceberanoscomentários</p><p>doFacebookoamedrontaram?Teriafugidocommedodasconsequências?Por</p><p>que não pedira férias ou demissão? Por que não se despedira de ninguém?</p><p>Passaram-sedezdiasatéqueVirgíniafinalmenteconvenceuapolíciaaentrarna</p><p>casadele,quepermaneceratrancadatodoaqueletempo.Parasurpresadetodos,</p><p>o local estava completamente vazio, sem móveis, sem chuveiro elétrico, sem</p><p>torneiras, semnada: Edgar certamentemudara-se demala e cuia.A irmã e os</p><p>pais dele,muito estremecidos com a situação, já não sabiam onde obtermais</p><p>informações. Os amigos, motivados por uma de suas últimas mensagens,</p><p>publicadatantonoFacebookquantonoTwitter,acreditavamqueelelogodaria</p><p>notíciasapartirdealgumpaísestrangeiro,talvezdosEstadosUnidos,talvezdo</p><p>Chile, do qual costumava alardear a beleza e o clima. Dizia essa postagem:</p><p>“DesistodoBrasil!Aúnicasaídaémesmooaeroporto.”</p><p>Amarásaoteuvizinho</p><p>—GrandedoutorPinto!</p><p>Odoutorestavanagaragemdesuacasa,onde forabuscarapastadecouro</p><p>esquecidaquandodesuachegadadotrabalho.Preparava-separatornarasaire</p><p>— no interior do carro, absorto, e apesar da porta aberta — não ouvira o</p><p>cumprimento:apenasdevaneavacommileumaimagensdainfânciapipocando</p><p>à mente. Uma pergunta que não o abandonava: seria verdade que o falecido</p><p>pastor-alemãoedonaDragaforaoúnicoresponsávelporaniquilartodasasbolas</p><p>que as crianças acidentalmente jogavam no quintal da casa dela? Sempre</p><p>desconfiara que não. Tantos jogos de queimada, de futebol e de vôlei</p><p>repentinamente abortados! E nunca havia indícios de mordidas, apenas um</p><p>reincidenteesuspicazrasgão.Adúvida,quepairarasobreoslargosanosdesua</p><p>infância,voltavaagora.Talvezobtivesseumarespostaduranteo jantardaquela</p><p>noite.Haviasidoumirônicoacasoaqueleconvite,jáquedona…</p><p>—Doutor!!</p><p>O grito atravessou as grades do portão, tomouo carro de assalto, e doutor</p><p>JoãoPintoGrande caiudasnuvens: eraChico,obêbadoquemorava comsua</p><p>numerosa famílianobarracãoda esquina, único casebremiserável da rua. São</p><p>Paulotinhadessascoisas:umbairrodeclassemédiaqualquercostumava,num</p><p>lote ou noutro, possuir ao menos uma, por assim dizer, minifavela. Talvez</p><p>porqueosproprietários,aopermaneceremnolocalporgerações—istoé,desde</p><p>queo bairronãopassavadeuma infindável série de terrenos baldiosde baixo</p><p>valor de mercado—, nunca conseguiam dinheiro suficiente para erguer uma</p><p>casa condizente com a vizinhança temporã. Dona Sílvia, vizinha contígua ao</p><p>doutor, inimiga declarada de Chico, lhe dissera que “aqueles maloqueiros”</p><p>estavam ali desde os anos 1960, quando a região mais se assemelhava a um</p><p>conjuntode chácarasdoqueaumaáreaurbana.EChico, apesardeaparentar</p><p>estarpróximodosquarentaanosdeidade,aindaviviacomavós,pais,irmãosea</p><p>famíliadairmãmaisvelha:sim,novepessoasnumapequenacasa.DoutorPinto,</p><p>semprequeovia,lembrava-sedobêbadodofilmeLuzesdacidade ,deCharles</p><p>Chaplin. Afinal, tal como esse personagem, o sujeito só o reconhecia quando</p><p>embriagado. Sóbrio, só cumprimentava os demais vizinhos — isto é, caso</p><p>estivessedispostoatanto—seotratassemporFrancisco,poissomenteoálcool</p><p>reagiaaoapelidofamiliar.</p><p>—Chico?…—indagouodoutor,jádepé,incertoseestavadiantedeChico</p><p>oudeFrancisco.</p><p>—Eaí,doutor?Cadêagravata?</p><p>Odoutorsorriu:</p><p>—Vouaumjantardaquiapouco.Nadaformal.</p><p>Um sorriso estúpido de dentes amarelados, os olhos injetados, o cabelo</p><p>ensebado,abarbadesgrenhada,asroupasdesmazeladas,ohálitohediondo:tudo</p><p>indicava que a bebedeira já havia atravessado toda aquela tarde. Enquanto o</p><p>observava,doutorPintoaguardavaasolicitaçãodemaisdinheiro,àqualjamais</p><p>se furtou—anão sernosdias emque realmentenão levavanenhum trocado</p><p>consigo.Nuncacensurouaovizinhoaintençãotácitadegastarodinheirocom</p><p>bebidas.Porquedeveria?Preferiao conselhodadoporHenryMillernumdos</p><p>relatosdolivroAsabedoriadocoração: seumalcoólatra lhepede</p><p>umcopode</p><p>uísque,dê-lheumengradadocheio.Sim,encaravaasituaçãocomamesmatática</p><p>dojiu-jítsu:nãoseoponhaaogolpe;emvezdisso,dê-lhemaisforçanosentido</p><p>almejadopeloadversário,que,graçasaisso,derrubaráasimesmo.Háviciados</p><p>—nãotodos,claro(algumasdrogasmatammaisrápidodoqueveneno)—que</p><p>necessitammaisdo fundodopoçodoquedemaisuma censura semelhante a</p><p>tantas outras, para eles há muito carentes de sentido. Mas Francisco,</p><p>equilibrando-seacusto,pareciamaisinteressadoemoutracoisaqueodoutor,ao</p><p>contráriodosdemaisvizinhos,nuncalhenegava:atenção.</p><p>—Algumanovidade,Chico?Comovaiafamília?</p><p>—Ah!—efezumgestodedesdémnadireçãodobarraco.—Elesaindame</p><p>odeiam.</p><p>DoutorPintotornouadepositarapastanobancodafrentedocarro:</p><p>—Porquevocêachaisso,Chico?Seelesoodiassem,nãoodeixariammorar</p><p>lá.</p><p>— Ao contrário, doutor: eles me deixam morar com eles porque…</p><p>justamenteporquemeodeiam,prametorturar.</p><p>—Quebobagem,homem!</p><p>Chico o encarou com olhos vazios, no rosto a expressão de uma profunda</p><p>derrota:</p><p>—Osenhordevetertidoumafamíliabacana,doutor.Nãosabecomopessoas</p><p>ignorantes…Naminha casa todomundoé ignorante…Todomundo, juro.O</p><p>senhor não sabe como eles podem ser terríveis com quem… só por ser mais</p><p>inteligente…Táligado?Comqueméconsideradolouco.Ésóagenteacreditar</p><p>umavezinhasóqueelestalveztenhamrazão,querdizer,quetalvezagenteseja</p><p>mesmodoido…aíferracomtudo…</p><p>Era a primeira vez que o vizinho iniciava um diálogo mais substancial. O</p><p>doutor,pois,encostouaportadocarroeseaproximoudoportãogradeado.Em</p><p>SãoPaulo,todavisitaàportadaruasugereumavisitaàprisão.</p><p>—Vocêtrabalhacomalgumacoisa,Chico?</p><p>Obêbadovoltouasorrirestupidamente:</p><p>—Euestudei.Sabia,doutor?</p><p>—Nãosabia.</p><p>—Teveumaépocaemqueeuliauns…unstrêslivrospormês.</p><p>— Não lê mais? — indagou com naturalidade o doutor, ocultando sua</p><p>surpresa.</p><p>—Não.Elesqueimaramtodos!—evoltouaapontarnadireçãodesuacasa.</p><p>—Asrevistastambém.Issotemanosjá,né?Seeucompromaislivros…nosebo,</p><p>táligado?…elesqueimamdenovo.</p><p>DoutorPintoapoiouascostasnatraseiradoSienaetirouocigarroeletrônico</p><p>dobolsodopaletó:</p><p>— É estranho isso, Chico.Qualquer um, hoje em dia, sabe que os estudos</p><p>ajudamapessoaamelhorardevida.</p><p>—É,maselesachamquemeuslivros…quemeuslivrosnãosãoestudo.Pra</p><p>eles,doutor…Praeles,estudarélermatemática,biologia,geografia…Entende?</p><p>Coisasquecaemna…no…Comoémesmo?</p><p>—Novestibular?NoEnem?</p><p>—NaFuvest—esoluçou.Umsoluçoébrio.</p><p>— E você costumava ler o quê?— e o doutor deu uma longa tragada no</p><p>Dripbox.</p><p>Chico levou amãodireitapara trásda cabeça, contorcendo-se comonuma</p><p>imagemdeSãoSebastião:</p><p>—MeupreferidoeraHermannHesse…ESchopenhauer.Gostodashistórias</p><p>dodetetiveMaigret…Tambémjálimuitosobrereligiõesorientais:hinduísmo,</p><p>budismo…Saca?Duranteunsdoisanos,frequenteiaulasnaUSPcomo…como</p><p>ouvinte,né?Euia láepediaprosprofessores…Algunsmedeixavamentrarna</p><p>sala…—eentãofitouodoutor:—Mas…quecachimboéessequeosenhortá</p><p>fumando?</p><p>—Éumcigarroeletrônico.</p><p>Chico,então,estupidificado,permaneceuemsilêncioporquaseumminuto,</p><p>observando as volutas de vapor mergulharem em direção ao chão, onde se</p><p>desfaziam como ondas numa praia. O bêbado equilibrava-se com mais</p><p>dificuldadequeumfunâmbulo.DoutorPinto,queaguardavaaesposaconcluira</p><p>toalete, não tinha pressa. Ambos iriam jantar na casa de uma ex-vizinha do</p><p>doutor que ainda vivia na rua onde ele crescera, mulher já idosa, a qual</p><p>encontrara por puro acaso no Fórum de SantoAmaro.Mas amudez daquele</p><p>homemcambaleante começava a constrangê-lo.Percebendoqueobêbadonão</p><p>sairiaporsimesmodeseuestupor—Chicovoltaraasorrirparvamente,oolhar</p><p>perdidoalgures—,odoutorguardouocigarroedecidiupuxaroutroassunto.</p><p>— Chico, ontem, quando virei a esquina, você estava descendo a rua</p><p>completamente encharcado. E não chovia! Dei um toque na buzina, acenei, e</p><p>vocênemmeolhou.Oqueaconteceu?</p><p>—Ah,ontem…FoiadonaSílvia—esorriucomoumacriançaaconfessar</p><p>umatravessura.—Elamejogouumbalded’água.</p><p>Odoutorarregalouosolhos:</p><p>—Sério?Porquê?</p><p>—Ah,elajátinhafeitoissoantes.Daoutravezconseguiescaparporquefoi</p><p>comesguicho.Osenhordevesaberqueelanãogostademim,né?</p><p>—Jánotei.</p><p>—Naverdade,sóosenhorconversacomigo.</p><p>—Conversariamaissevocêmedesseatençãoquandoestásóbrio,quandoéo</p><p>Francisco. — Como Chico nada replicasse quanto a esse tema, doutor Pinto</p><p>repetiuapergunta:—Mas,Chico,porqueelalhejogouumbalded’água?</p><p>—Então…—começouele,secandoonarizmeladonoantebraçoesquerdo.</p><p>—Elanãogostademim.Eontemeuachei…hum…acheiquedeviamudarisso,</p><p>queagentedevia se entender.Tinhacertezaqueoproblemaera euaindanão</p><p>dominar…Querdizer…PorqueeuaindanãodominoaFalaPerfeita.</p><p>—FalaPerfeita?</p><p>—É.OdoutornãoconheceasOitoViasdeBuda?OCaminhoÓctuplo?</p><p>—Ah,sim.Jálialgumacoisaarespeitoanosatrás.Masnãomelembrodos</p><p>detalhes.</p><p>Aconversadomendigodeixaraodoutorcurioso,mas,aotentardisfarçarseu</p><p>pasmo por ouvir daquele homem semelhante expressão, não soube</p><p>imediatamenteoque acrescentar.Chico, incapazdemanter-sedepépormais</p><p>tempo, e aproveitando a deixa, sentou-se na calçada, as pernas cruzadas em</p><p>posiçãodelótus,asmãosdescansandonosjoelhos,aspalmasvoltadasparacima.</p><p>Osúltimosraiosdesoldaquelediadeoutonoprojetavamumaluzavermelhada</p><p>sobresuafigurapatética.Jádeviamserumasseisemeiadatarde.</p><p>—EusóqueriameentendercomadonaSílvia,doutorPinto.Aterceiravia…</p><p>AterceiraviaéaFalaPerfeita.</p><p>—Sei.</p><p>— Tentei usar as palavras direito. Falar certinho, que nem repórter de</p><p>jornal…Tinhacertezaquedessaveznãotomariaumbanho.Fuiagradável…fui</p><p>gentilcomela.</p><p>—Nãoadiantou,pelojeito.</p><p>—Adonatavalavandooquintaledeveterachadoqueeutavaenrolandoela,</p><p>que eu ia pedir esmola. Não preciso de esmola… Não preciso! Meu pai é</p><p>aposentado,minhamãetembolsadogoverno, tá ligado?Essascoisassociais…</p><p>—eencarouodoutorcomumaseriedadecômicaeoficial,comose jamais lhe</p><p>tivessepedidodinheiro.—Masaí,comoeunãodesistia,amulhercomeçouame</p><p>chamar de inútil, de vagabundo, demendigo, de louco…— e Chico fez uma</p><p>careta.—Ah,não!Louconão!</p><p>—Eaíelalhejogouaágua.</p><p>Obêbadodeuumarisadinhasardônica:</p><p>—Não, doutor! Aí eume enfezei, né? Então coloquei o senhor pra fora e</p><p>mijeinacalçadadela.</p><p>Apesar de condoído, o doutor Pinto não pôde conter um sorriso diante</p><p>daquelechisteàcustadoseunomeedaquelaconfissãode“atoobsceno”:</p><p>—Vocêcolocouopintoparaforaemijou.</p><p>—Isso.</p><p>—Efoiaíqueelalhedespejouobalde.</p><p>—É.</p><p>Odoutorcruzouosbraços:</p><p>— Parece que você ignorou uma outra via dométodo budista, né, Chico?</p><p>Umadelas,senãomeengano,nãodizqueapessoatemdesecomportardireito?</p><p>Elevoltouasorrir,masdestavezcomarcontristado:</p><p>—Eusei,doutor.ÉaPerfeitaConduta—edeuumlongosuspiro,sustado,</p><p>repentinamente,poroutro soluçoébrio.Levouentãoamãoesquerdaàboca e</p><p>aguardoualgunssegundos.Depoisvoltouadescansá-lasobreojoelho.—Budaé</p><p>muitodifícil,né?Talvezporqueestemundosejaoinferno.</p><p>Detectando naquela declaração uma sombra de gnosticismo, sempre</p><p>perigoso,doutorPintofranziuosobrecenho:</p><p>— Só porque podemos ter experiências infernais, isto não significa que o</p><p>mundosejauminferno,meucaro.Acreditarnissonãolevaanadadebom.</p><p>—Budadizqueomundoésofrimento.</p><p>Avidaésofrimento.Tipoodesenho</p><p>doPica-Pau.</p><p>— Bom, até onde sei — começou o doutor, ignorando aquela referência</p><p>abstrusaaofamosopersonagemdosdesenhosanimados—,essesofrimentoseria</p><p>frutodosdesejos,né?</p><p>—É,odesejoéqueénossocarrasco.</p><p>Odoutorfezummuxoxo:</p><p>—Poisé,rapaz.Issonemsempreéverdade.Hádesejospositivosehádesejos</p><p>negativos. Ignorarospositivosapenasporquehánegativos só farádevocêum</p><p>zumbi. Porque, para eliminar o desejo, o budista cai na pretensão de querer</p><p>anular o próprio ego. Isso elimina a dinâmica que uma religião sadia deve</p><p>possuir: se você faz pouco caso de simesmo, por que ligaria para o próximo?</p><p>Ora,destemodovocê se torna totalmentepassivodiantedomundo:omundo</p><p>ageevocêsofreaação.Vaicomacorrenteza…Esó.Osujeitoentãoacreditará</p><p>que bastanão incomodar os demais, que basta tolerá-los, para que tudo esteja</p><p>bem,quando,nofundo,muitagenteprecisaédeajuda,deumamãoamiga,de</p><p>atos de caridade, de misericórdia ativa… Da atenção de outra pessoa, quero</p><p>dizer,nãodaassistênciadopoderpúblico.Entende?Um“iluminado”podenão</p><p>experimentar o sofrimento causado por desejos insatisfeitos, mas continuará</p><p>sofrendo o impacto do mundo, com todas as suas injustiças e acidentes,</p><p>continuará sofrendo a lei da necessidade. Precisará lidar com ela, precisará</p><p>comer.Eépor issoqueBuda,paracompensaressa falhaemsuateoria, falade</p><p>“nãoação”, istoé,deagir semteroegocomocomandante. Imaginoque,para</p><p>ele,tudooqueexperimentamosvemdanossasupostainsignificânciadianteda</p><p>realidade total.No final das contas, ele pregava a indiferença tanto diante dos</p><p>fatos positivos quanto dos negativos. Uma coisa com a qual alguns santos</p><p>cristãosaté concordariam…masapenas emparte!Olha, sequiser entenderde</p><p>budismo, você precisa esquecer esses livros budistas comuns e ler LiHongzhi,</p><p>consideradopormuitosorestauradordobudismooriginal.</p><p>—Nuncaouvifalar…</p><p>— Pense no seguinte: Deus respeita nosso livre-arbítrio, nossa soberania</p><p>enquanto indivíduos. Não fosse isso uma verdade, não haveria o mal. O mal</p><p>existeporqueháliberdade,porqueDeusnãoéumopressor.</p><p>—Hum.</p><p>—Háquemfaleemeu-superior…—prosseguiuodoutor,numentusiasmo</p><p>ingênuo, já esquecido de que seu interlocutor estava bêbado demais para</p><p>acompanhá-loemprofundidade.—AverdadeéqueoEspíritodeDeusemnósé</p><p>nosso “espírito assistente”, entende? É um fragmento Dele, da fonte de todo</p><p>espírito,masnãoénossochefe!Semnossacooperação,Deusnão faznadaem</p><p>nossasvidas.Nocristianismo,issosignificaquevocêprecisaaproximar-sedessa</p><p>perfeição,buscá-la,desejá-la!PrecisaaceitaraassistênciadoEspíritoeagir.Ele</p><p>não agirá por conta própria. Isto torna o mundo muito real, um local onde</p><p>devemos ser responsáveis, dinâmicos.O cristianismonão rejeita o sofrimento:</p><p>enfrenta-o e o supera. Tal como o budismo, o cristianismo almeja o bem</p><p>mediante certo desprendimento, mas não pela negação de si, e sim pelo</p><p>renascimentodesi!OativoapóstoloPaulo,cujonomeéhomenageadopornossa</p><p>cidade,tambémpregavaumaformadenãoação:vocêdevefazerascoisascomo</p><p>senãoasfizesse.Econcluiu:“porqueaaparênciadestemundopassa”.Masnão</p><p>diziaquenossasalmastambémsãoumaaparênciaquehádedesaparecer.Nossas</p><p>almassãopotencialmentereais.Eporissoeleinsistiaquedevemosrenascerdo</p><p>Espírito!Semessepequenodetalhe—eodoutorsorriu—chegaríamosàmesma</p><p>conclusãodosintérpretesdobudismo:avidainteira,inclusivenossoeu,éapenas</p><p>uma ilusão, éMaya. Digo “intérpretes” porque o verdadeiro budista sabe que</p><p>Maya,naverdade,significa“jogo”,“brincadeira”,e...</p><p>— Quando eu bebo, tenho certeza de que tudo é mesmo ilusão —</p><p>interrompeu-o Francisco, voltando a suspirar em seguida, desta vez mais</p><p>profundamente e sem interrupções. — Pena que não bebi nada hoje… —</p><p>acrescentou,oolharesgazeado,ébrio.</p><p>— Pois é, Chico… — e o doutor sorriu frente àquele perpétuo estado de</p><p>negação.—Aíestáoerro.Avidanãoéumailusão.Nãoéporhaverrealidades</p><p>maisespirituaisqueestenossomundoseráapenasumaficçãosemimportância.</p><p>Qualquer criança sabe que uma brincadeira, mesmo não sendo a realidade</p><p>inteira, é coisa séria. Nós conhecemos a vida em parte, como por espelho.</p><p>Lembradisso?—Ovizinhopermaneceucalado,orosto já imersonassombras</p><p>danoitequechegava.Odoutorretomouapalavra.—Umamigomeudiziauma</p><p>coisainteressantesobreobudismo:“Eleensinaamelhormaneiradenavegarno</p><p>mardavida:penaquenãonosdiznemparaqualportodevemosnavegaremuito</p><p>menosquetodonavionecessitadeumcapitão.”Querdizer…paraobudismo,o</p><p>destino final, no fundo, é aceitar que o capitão desse navio não existe em</p><p>absoluto, o que obviamente é absurdo. Ora, meu caro: algo em nós toma</p><p>decisões, algo em nós percebe a realidade das coisas, algo em nós produz e</p><p>reconhecesuaprópriahistóriadevida,suabiografia.Defato,ocapitão,ouseja,</p><p>nosso eu,não existepor simesmoe, emmuitos casos, podemesmodeixarde</p><p>existir após a morte. Mas a principal tarefa humana é justamente sobreviver,</p><p>levar o capitão ao Bom Fim. O Espírito de Deus é nosso imediato, nosso</p><p>navegador,e,semoconsentimentodonossoeu,nãopoderánosguiar.Entende?</p><p>ObudismoatéintuiquehajaesseEumaior,masinsistenaderrotadocapitão.E</p><p>amanutenção dele é a única forma de ver a vida face a face. Por isso, com o</p><p>budismo,navegamosemcírculos—enãomerefiroao“Samsara”!</p><p>—Meucapitãoéolobo—murmurou.</p><p>—Comoassim?Umlobodomar?</p><p>Chico,cujaexpressãoeraorostodofracasso,tinhaosolhosfixosemalgum</p><p>pontoàsuafrente:</p><p>—Não,doutor:olobodaestepe.</p><p>—Ah,sim,olivrodoHermannHesse.</p><p>—É.Aquelenegóciodequeohomeméolobodohomem…</p><p>—IssoéHobbes.</p><p>— Sei lá, deve ser. Mas esse negócio que todo mundo fala é só uma</p><p>consequência, tá ligado?—ecomeçouacoçaracoxadireita, franzindoacalça</p><p>jeans.—ProHesse, ohomeméo lobodelemesmo.E sódepois é o lobodos</p><p>outros.Agente temumlobodentrodagente…Todomundotem.Esse loboé</p><p>queéomeucapitão—ecerrouosolhos,embevecidocomasprópriaspalavras.</p><p>Odoutor ficou sem saber o que dizer. Se no dia seguinte a uma bebedeira</p><p>Chicomal se lembrava do interlocutor, valeria a pena insistir numa conversa</p><p>edificanteemtalsituação?Seelechegaraacaptaralgumacoisa,certamentenão</p><p>captaraopretendidopelodoutor.Olobodaestepe?Ora,escritoresdeficçãosão</p><p>artistas,nãosãonecessariamentebonsintelectuais,filósofosouguiasespirituais.</p><p>Logo,oqueodoutorpoderialhedizeralémdoquejáforadito?QueHermann</p><p>Hesse escrevera aquele romance sob a influência de certos conceitos</p><p>psicanalíticos, tais como id, libido, superego e assim por diante, e que os</p><p>misturaraàssuasprópriasconcepçõesde inspiraçãooriental?“Ora”,pensavao</p><p>doutor,“esselivrodoHesse,nofundo,éapenasumaboanarrativafundadaem</p><p>ideiasmaldigeridas.Oestadobúdiconadatemavercomessesurfarlivremente</p><p>nas pulsões selvagens que supostamente vêm do id. O impacto anímico dessa</p><p>barafunda literária, em última instância, nada tem de positivo! Nossa face</p><p>imanente, sempre emconflito comsuas limitações,nãodeve entrar emguerra</p><p>comnossafacetranscendente,afontedenossaliberdade.Essesupostolobonão</p><p>é senão o resultado da rejeição, por parte da nossa face terrena, do auxílio</p><p>outorgado por nossa face transcendente. Essa rejeição se dá porque o Logos</p><p>Divino,ponte</p><p>entrenossoserindividualearealidadetotal,énegadodeantemão.</p><p>Mas...dequeadiantadizerissotudoaocoitadodoChico?”,matutava.Eodoutor</p><p>concluiu que necessitaria de mais algumas horas, ou talvez dias, para refutar</p><p>aquilotudoefinalmentelevarseuvizinhoaumportoseguro.Umamigo,poeta</p><p>jáfalecido,lhedisseracertavez:“HermannHesseéPauloCoelhodeintelectual!”</p><p>EraaépocaemquePauloCoelhohaviapublicadoOdiáriodeummago, epor</p><p>isso o poeta queria dizer: Hermann Hesse é “autoajuda” para intelectuais</p><p>confusos—comoagravantedeque,naverdade,nãoosajudaemnada.EChico</p><p>não era sequer um verdadeiro intelectual, muito menos um artista capaz de</p><p>transformarsuasobsessõesemobrasderelevo—era,sim,umapessoacomum,</p><p>desorientada,queprecisavadeajudadeverdade.Talconstataçãoafugentoutodo</p><p>oentusiasmododoutor.</p><p>—Amor?Jáestoupronta!</p><p>Luciana,esposadodoutorPinto,assomaraàporta.</p><p>—Tácerto,donasenhorita!Sóvouguardarminhascoisasnoescritórioea</p><p>gentesai.</p><p>Ela voltouparadentro e odoutor virou-senovamenteparao vizinho, que,</p><p>ainda em posição de lótus, mantinha os olhos fechados. Aquela barba</p><p>desgrenhada, o rosto vincado, o cabelo seboso, eriçado feito uma moita de</p><p>alamanda:nãofosseacalçajeans,passariafacilmenteporumsadhuindiano.</p><p>—Chico,vocêvaificaraí?</p><p>Obêbado,alheioaomundocircundante,nãodeuqualquerresposta.Teriase</p><p>entregadototalmenteàmeditaçãoalcoolizadaouaquiloeraapenaspartedoseu</p><p>show? Pouco importava. O fato é que permaneceu em silêncio, as mãos</p><p>espalmadassobreosjoelhos,arespiraçãolentaeprofunda,onarizaescorrer.</p><p>—Agentepodecontinuaraconversaoutrahora—tornouodoutor.—Mas</p><p>vocêprecisaseafastarparaeuabriroportão.Équevocêestábematrásdomeu</p><p>carro,Chico.Precisosair.</p><p>Ohomemnãomoveuumdedosequer,e,pelojeito,permaneceriaassimpor</p><p>algumtempo—pelomenos,éclaro,atéteralcançadoosamádiou,quemsabe,</p><p>atéjánãoteraquelaplateiadeumhomemsó.Nesseínterim,eaocontráriodo</p><p>bêbado, que certamente ainda não se iluminara, a iluminação pública foi</p><p>acionada e despejou sua luz alaranjada de vapor de sódio sobre a rua de</p><p>paralelepípedo, sobreascalçadas, sobreas fachadasdascasas.A iluminaçãode</p><p>LED,umanovidade alardeadapelaprefeituradeSãoPaulo, aindanão chegara</p><p>àquelebairrododistritodeSantoAmaro.</p><p>Destavez, comoconviteparao jantaremmente, foiodoutorPintoquem</p><p>respiroulongaeprofundamente.</p><p>—Francisco?</p><p>Nada. O sujeito não se importava sequer com o insistente estilicídio, que</p><p>nitidamentejálheatravessavaobigode,umedecendoabarba.Semesperançade</p><p>obterqualquerreação,odoutor,pois, semconterumsorriso,pensouemdona</p><p>Sílvia,suavizinhadeparede—ascasaseramgeminadas—,eemseu“método</p><p>rápidodeselivrar,comapenasumbalded’água,deumbêbadoinconveniente”.</p><p>Avizinhaera,porassimdizer,umapersonagemdenoveladaGlobo:devia ter</p><p>poucomaisdesessentaanosdeidadeetratavaseuBrito,omaridoaposentado—</p><p>cujamentalidadeeraalimentadaporprogramasdeTVdecanalabertoassistidos</p><p>aolongodetodoodia—,comoquemlidacomumsoldadoraso.Àportadarua,</p><p>quandoseencontravacomLucianaoucomodoutor,amulherabriaumenorme</p><p>e dolorido sorriso, sussurrando em seguida os cumprimentos de praxe. Então,</p><p>como quem foge de um vulto suspeito numa rua escura, desvencilhava-se</p><p>daquelecontatosocialinopinadoevoltavarapidamenteparaasegurançadolar.</p><p>Mal fechava a porta da frente, começava a berrar com o pobre espectador de</p><p>programaspoliciaissensacionalistasedetelenovelas,oqual,aparentemente,não</p><p>reagia—aomenosnãodeformaaudível.Nessasocasiões,elaparecianãosedar</p><p>contadequemetadeda ruapodiaouvi-la.Emgeral, abronca tinhaalgoaver</p><p>comalouça—umcopoouumpratosujoabandonadonasala—,comalguma</p><p>lâmpada deixada acesa num cômodo vazio, com o cigarro ou com outras</p><p>ninhariasaessemodo.(Afilhacaçuladodoutorjuravaque,certafeita,aouvira</p><p>acusaraosberrosomaridodeestarvendo“mulherpelada”nocelular.)Quando</p><p>seuBrito,silenciosoqualfantasma—afamíliaGrandenuncaoouviaatravésda</p><p>parede—,nãolhedavarazõesparaserachacado,aesposaentãoralhavacomo</p><p>velhoeencardidopoodle,xodódele.SeuBrito,porseulado,aomenosumavez</p><p>porsemana,mitigavaatensãodomésticaacompanhandoocãoaoquintal,onde</p><p>sedesfaziaempalavrascarinhosas,quemuitasvezesterminavamemcantilenas</p><p>deninar.Claro,seacantoriaseestendessemuito,donaSílviasurgiaàjanelado</p><p>segundo andar e lhe atirava objetos, em geral xícaras e canecas, que se</p><p>espatifavamaochão…(Apósacertaroalvo?Difícildizer:seuBritonuncaemitia</p><p>qualquer som.)Enfim,numa taldinâmica,matutavaodoutor,Chico, comsua</p><p>notóriafaltadehigiene,atésaíalucrandocomaquelesrelesbanhosdeesguicho</p><p>ou de balde. Mas o doutor evidentemente não se via capaz de recorrer a</p><p>semelhantesubterfúgio,nemmesmoseaquelearremedodesadhuutilizassesua</p><p>calçadacomomictório.Porisso,preferiudesistirdoSienaeirpegarachavedo</p><p>FoxRoutedaesposa,cujaentradaestavadesimpedida.</p><p>— Com quem você tava falando, João?— perguntou a esposa, assim que</p><p>doutorPintotornouàsala.</p><p>—ComoChico.Ocaratácompletamentebêbado,pravariar—respondeuo</p><p>doutor,quesóutilizavaumalinguagemmaiscoloquialquandoemfamília.—Só</p><p>que tá mais falante do que o normal. Quer dizer: tava falante. Agora tá lá,</p><p>tentandochegaraosamádi.</p><p>Elasorriu:</p><p>—Devezemquandoelesesentamesmoporaíefazquemedita.</p><p>— Coitado, Lu. Amanhã vou tentar pegá-lo sóbrio e ter uma conversa de</p><p>verdade. Sei lá. Se ele aceitar uma reabilitação, sei quem pode arranjar uma</p><p>clínicagratuita.Caínabesteiradefalarummontedecoisapraele,mastánacara</p><p>queentroutudoporumouvidoesaiupelooutro.</p><p>—Você e suamania de ficar pregando aos peixes…— e ela lhe deu uma</p><p>piscadela.</p><p>Doutor Pinto levou então sua pasta de couro para o escritório. Na volta,</p><p>pegouachavedocarrodaesposa.</p><p>—AgentevainoFox.Ocaratásentadoatrásdooutroportão.</p><p>—Tá.Masprecisaabastecer.</p><p>—Agentepassanoposto—eolhandoemtorno:—CadêaElisa?</p><p>—Acaboudesubir.</p><p>Gritaramtchaupelovãodaescada,acaçulalhesrespondeu—dostrêsfilhos</p><p>era a única que ainda residia com os pais —, a mãe reforçou as instruções</p><p>costumeiras,eentãosaíram.Chicopermanecianacalçada,àesquerdadequem</p><p>olhadaruaparaacasa,emposiçãodelótus.</p><p>—Oi, Francisco— disse Luciana ao contornar o Siena. Chicomanteve-se</p><p>imóvel, calado, os olhos fechados, ignorando-a completamente. Com uma</p><p>expressãoentreozombeteiroeosério,elaacrescentou:—DonaSílviamedisse</p><p>doquevocêécapaz,hem.Olhelá…</p><p>Entraram no carro, e o doutor acionou o portão eletrônico. Parou o carro</p><p>atravessadosobreacalçadaenotouquealgumasgotasd’águacomeçavamacair</p><p>nopara-brisa.Vinhachuva.Olhouparaoladoeagradeceuemsilênciopelofato</p><p>deque,dobancodepassageiro,Luciananãopodiaveromeditabundovizinho:</p><p>defato,eleacabarademijarnascalças.Umfiodeurinasaíadesobsuascoxase</p><p>corriaparaasarjeta.</p><p>—Estouvendoquevocêacabadeatingironirvana,né,Chico?</p><p>Comum estranho ricto nos lábios, que poderia ser tanto bem-aventurança</p><p>quanto cinismo, o bêbado parecia sorrir. Doutor Pinto limitou-se a sacudir a</p><p>cabeça,levementeirritado:</p><p>—Quefigura!Deroupamolhada,vaiacabarpegandoumapneumonia…</p><p>Partiram.Eachuvadesabou.</p><p>*</p><p>Draga Vuković, a ex-vizinha de sua infância, era iugoslava. Bem, ao menos</p><p>quandoodoutoreracriançaeaindaexistiaumaIugoslávia.</p><p>Nuncasoubeseelae</p><p>omaridoeramdeorigemcroata,sérvia,bósniaouoquê.Lembrava-seapenasde</p><p>quão reclusos ambos eram. Em geral, apenas as três filhas, alguns anos mais</p><p>velhas do que o doutor, eram vistas entrando e saindo de casa. E que filhas</p><p>lindas!Duas loiraseumaruiva, todasde traços finos,corposesguiosecabelos</p><p>lisos que escorriam quase até a cintura.Omarido de donaDraga se chamava</p><p>Josif,etodososvizinhospronunciavamseunometalcomoélidoemportuguês,</p><p>mas, lá entre eles, em família, chamavam-no de “Iôsif”. E o doutor ainda se</p><p>lembravadoscomentáriosdavizinhançaarespeitodasdiversasviagensqueseu</p><p>Josif fazia à pátria mãe, viagens longas, demoradas. Certa vez, entre as</p><p>fofoqueirasdarua,correuatémesmooboatodequeeleteriaabandonadodona</p><p>Draga.Puramaledicência,pois,mesesmaistarde,láestavaohomemadevolver,</p><p>àportadecasa,maisumabolaparaascrianças,umadasinúmerassupostamente</p><p>rasgadaspelopastor-alemão.</p><p>—Agenteesqueceuovinho,João!—exclamouLuciana,assimqueentraram</p><p>na rua Luís Gonzaga Bicudo, no bairro Jardim Santo Antoninho, zona sul</p><p>paulistana.</p><p>— Esqueceu nada, dona senhorita. Não lembrei do vinho porque a dona</p><p>Dragamepediuparanãotrazernenhumabebida.Omaridodelaéalcoólatra,e</p><p>daquelesexaltados.</p><p>—Ah!Nossa…</p><p>—Poisé.</p><p>Estacionaram.CasotivessemchegadopelaavenidaVereadorJoãodeLuca,e</p><p>nãopelaCupecê,ocarroestariaagoracolocandoàprovasuacapacidadeanfíbia.</p><p>Talcomotrintaouquarentaanosatrás,aságuaspluviaiscontinuavamseguindo</p><p>ladeira abaixo e denunciando,mediante uma inevitável enchente, a existência</p><p>préviadeumrionaquelabaixada,hojecanalizadosobaavenida.EmSãoPaulo,</p><p>nãoháchuvafortequenãocausedilúviosesparsos.</p><p>Doutor Pinto correu a mão pelo banco traseiro e tomou o guarda-chuva.</p><p>Então, empunhou o celular e ligou para donaDraga, que lhes abriu o portão</p><p>instantesdepois.Ocasalentrouàspressas,sorridenteeumtantosemjeitopor</p><p>chegarparaumavisitacomossapatosencharcados.</p><p>—Ah, não se incomodem com isso—disse a pequenamulher, fitando-os</p><p>comprofundose simpáticosolhosazuis.Suavozaindaeraamesma:enérgica,</p><p>aguda, mas agradável, embora houvesse algo de gutural no sotaque. — Já</p><p>coloqueiumpanodechãosobreocapacho.Podementrar,vamos.Ocachorrotá</p><p>preso.</p><p>Deixaramoguarda-chuvaabertonochãodagaragemeentraram.Ládentro,</p><p>graçasaumar-condicionadoligadoaomáximo,oarestavagelado,oquealegrou</p><p>o doutor, pois poderiamanter posto o paletó.Na sala de visitas, que também</p><p>deviaserasaladeestar—acasanãoeragrande—,ele,apósapresentaraesposa</p><p>àanfitriã,olhouemtornoelembrou-sedeoutrasvisitasquefizeraaimigrantes,</p><p>mais precisamente a um cliente libanês e a um outro coreano: suas casas</p><p>pareciam células extraviadas de suas nações de origem e enxertadas no</p><p>organismobrasileiro.Estar ali era como ter feito, emummíserominuto, uma</p><p>viagemàoutra facedaTerra.Aportade entradadaquela casa, tal comoadas</p><p>anteriores, era um portal para outro país. Não porque os proprietários</p><p>expusessemobjetos típicos que os remetessemnostalgicamente a suas origens,</p><p>masporquesuascasaseramarranjadasedecoradasemconformidadecomsuas</p><p>almas.A casa dosVuković tinha algumasparedes revestidas de pedra, pisode</p><p>madeirarústica,móveisartesanaisbastantecuriososeumaromasingular,talvez</p><p>oriundodasmadeirasmesmas,ouquiçáporcausadaquelesjarroscujasfloreso</p><p>doutornãosaberianomear.</p><p>—Vocênuncatinhaentradoaqui,né,João?—perguntoudonaDraga.</p><p>Odoutor,paraquemaquelacasasempreforaummistério,sorriu:</p><p>—Não,éaprimeiravez.Masminhamãejátinhavindo.Asenhoradevese</p><p>lembrar.</p><p>—Claro que sim. Ela veiomuitas vezes. Eu e suamãe tínhamos omesmo</p><p>hobby.</p><p>—Ah,asenhoratambémpintatelas?</p><p>—Eu adoro. Todos esses quadros sãomeus.Menos aquele, que é domeu</p><p>falecidoirmão,Gavrilo.</p><p>Luciana se aproximou de uma das telas e a observou com verdadeiro</p><p>interesse.</p><p>—Sãopaisagensdasuaterranatal?</p><p>—São,são.EssequadroaíéumapaisagemdeKrupani.OJosifsempretirava</p><p>muitas fotosquandovoltavaàSérvia.Amaioriadosquadrossãocópiasdessas</p><p>fotos.</p><p>—Josiféseumarido?</p><p>—Sim,sim.MaselenãonasceuemKrupani.Moroulá,eranossovizinho.—</p><p>Efazendoumgesto:—Vocêsnãoqueremsesentar?Essesmóveisforamtodos</p><p>feitospeloJosifanosatrás.Marcenariaeraohobbydele.Masfaztempoquenão</p><p>fabricanada,émuitotrabalhoso.</p><p>—Sãobonitos.Sólidos.</p><p>—Eume esqueci de te dizer, João.O seu Fábio e a dona Lívia vêm jantar</p><p>também. Ligaram agora há pouco, já devem estar chegando. Eles semudaram</p><p>praMoema. Uma daquelas ruas com nome de passarinho. Nuncame lembro</p><p>qual.</p><p>Quandoseacomodaramnosofá,Luciananotouqueomaridohaviareagido</p><p>demodoestranhoànotícia.</p><p>— Bom, fiquem à vontade. Eu estou terminando de arrumar a mesa. A</p><p>comida está quasepronta.Não fiznadadediferente, é apenasumespaguete à</p><p>carbonara.Nósnãosomostãotípicosassim!—esorriu.</p><p>—EoseuJosif?—perguntouodoutor.</p><p>—Ah,eletánasalinhadele.Oescritório…—ecolocouamãoespalmadaao</p><p>ladodaboca,comoquemcontaumsegredo.—Nãoliguem,elenãoélámuito</p><p>sociável. Antes ele costumava ler a tarde inteira. Livros brasileiros mesmo.</p><p>QuandoagenteveioproBrasil,ele,queéengenheirocivil,pediuumasugestão</p><p>deleituraaumcolegabrasileiro,engenheirotambém.Dissequequeriaumlivro</p><p>deengenhariaemportuguês,paraassimilarojargãolocaldaprofissão.Ocolega</p><p>sugeriuOssertões!Eragozação,claro,umapegadinha,comodizemhoje…Mas</p><p>Josifadorouolivro!—edonaDragadeuumarisadinhaesganiçada.—Chegoua</p><p>ler aquele livrão umas cinco vezes! Mas agora… — e suspirou, encarando</p><p>Luciana.—Agora,minha filha, acabou!Nada de livros.Até pouco tempo, ele</p><p>ainda via todas as novelas daGlobo à noite. Era bom porque era um jeito de</p><p>conservaroportuguêsdele,jáquequasenuncasaidecasa.Mas,deunsdezanos</p><p>pracá,comessenegóciodeinternet,elepassaodiatodovendovídeosdaSérvia,</p><p>da Croácia, da Bósnia, deMontenegro… E agora só compra livros em servo-</p><p>croata. Escritos em cirílico! Ele ainda vive na Iugoslávia. Já disse várias vezes:</p><p>qualquer dia você esquece como se fala português e não vai conseguir nem</p><p>entenderseusnetos!Nemmesmocomprarpão!—esorriu,melancólica.</p><p>—ElenãotemmuitosamigosnoBrasil?</p><p>—Ah,minhafilha.Naidadedeleamaioriadosamigosjáestámorta.Temo</p><p>seu Fábio, né?Nunca forammuito próximos,mas conversavam bastante. Por</p><p>issochameieleaqui…—Tendoditoisso,donaDragacaiuemsi:—Ojantar!—</p><p>eentão fezumgestodequehaviaurgências edirigiu-se lepidamenteà salade</p><p>jantar,desaparecendoemseguidapelaportaquecertamentelevavaàcozinha.</p><p>—João…—começouLuciana,quasesussurrando.—Quemsãoosdoisque</p><p>vãochegar?Vocêfezumacaraquandoelatocounonomedeles…</p><p>Odoutorarqueouassobrancelhas:</p><p>—Eramnossosvizinhostambém.Moravamaquiemfrente.Ofilhodeles,o</p><p>RobertoCarlos,erameu…</p><p>Elariu:</p><p>—RobertoCarlos?</p><p>— É, como o cantor— e o doutor sorriu. — Coitado, a gente fazia mais</p><p>bullyingcomelenaruadoquefaziamcomigonaescola.</p><p>—Comvocê,João?</p><p>Odoutorfezumacareta:</p><p>—PintoGrande,né,amor?</p><p>—Ah,tá.Émesmo—eelatornouarir.—Aliás,porquenãotechamamde</p><p>doutorGrandeemvezdedoutorPinto?</p><p>—Seilá.DevemacharquePintoémaissubstancial…</p><p>Riram.</p><p>— Então, como eu dizia…— disse o doutor, retomando o assunto.— O</p><p>Roberto foimeumelhoramigoaquina rua.Agente faziade tudo:corridas</p><p>queremseras“gêniascriadoras”.E,graçasaisso,levamadiantesuas</p><p>própriasideiasfuradascomamaiorforçadevontade.Contudo,nãohámelhor</p><p>definição de gênio que a dada pelo amigo Oswald Spengler: “Gênio é a força</p><p>fecundante do varão que ilumina toda uma época.” Percebe? Do varão, do</p><p>homem. Genialidade não é o mesmo que talento ou habilidade. Talento e</p><p>habilidadeasmulherespodempossuirtantoquantooshomens;masgenialidade,</p><p>não. Claro, certamente nenhum homem jamais entenderá e interpretará a</p><p>literaturadeJamesJoyceouamúsicadeChopintãobemquantoumamulher.</p><p>Elassãoexímiasnaartedeserfecundadas!Sãomulheres!Elassãocapazesdeir</p><p>tão longequantoessesgênios!Masprecisamsegui-los,nãochegariamsozinhas</p><p>aonde eles chegaram. A não ser, repito, que neguem sua feminilidade! Essa</p><p>escritora que o mediador do seu debate disse ter morado com você, por</p><p>exemplo…</p><p>—Eu é quemorei com ela.HildaHilst. Fui secretário dela. A criatividade</p><p>dela,aliás,nãotinhalimites.</p><p>—Elaeraumamulherfeminina?</p><p>— Nossa, extremamente feminina. Aliás, ela continuava sedutora mesmo</p><p>sendoidosa.Seujeitodefalar,denosolhar,demovimentarasmãoseatémesmo</p><p>desegurarocigarro,tudoeraenvolvente.Eespontâneo!Umamulhersaídadum</p><p>filmenoir.</p><p>Eleacendeuoutrocigarro:</p><p>—Bom,vocêestámedescrevendoapenasapontadoicebergdafeminilidade.</p><p>Emgeral,umamulhercriativaprecisaterumaforçamasculinaprópriaparase</p><p>expressareseimpor,e,viaderegra,quandoconseguemanifestarumatalforça,</p><p>acaba perdendo boa dose de seus atrativos femininos. Ela acaba afastando os</p><p>homens.Anãoserquesejaumaartesã,porque,aoseguirumatradiçãoartística</p><p>qualquer, as mulheres podem ser simultaneamente bastante criativas e</p><p>femininas.Contudo,nessecaso,nãoháinovação,háapenasaadaptaçãodeuma</p><p>tradiçãoaumavisãoouhabilidadepessoal,umacriaçãopelavontade.Avontade</p><p>se guia pelo querer, e o querer, pelo amor: quer-se aquilo que se ama. As</p><p>mulheresamamumatradição,umaescolaestética,eentãoaseguem.Sozinhas,</p><p>elasnãofarãonenhumarevoluçãoestética,porqueestadependedaforçacriativa</p><p>do intelecto. Por isso, amaioria dessasmulheres intelectualmente criativas ou</p><p>não é casada, ou é casada comhomens feminis (homens-pilares, digamos), ou</p><p>entãoélésbica.</p><p>Eu,quejáiaerguendoocopodecerveja,depositei-onovamentenamesa:</p><p>—Agoraquevocêdisseisso,melembreideumacoisasobreaHilda.</p><p>—Diga.</p><p>— Ela me contou que, após se casar e se mudar para sua fazenda, vivia</p><p>brigandocomDanteCasarini,maridodelaàépoca,pois,segundoelemesmojá</p><p>meconfirmou,quandoelaestavaescrevendo,suasfeiçõesassumiamumaspecto</p><p>masculino e até sua voz soava mais grave. Isso o incomodava muito,</p><p>principalmentequandoelesentiatesãonomeiododiaeresolviainterrompero</p><p>trabalhodela.Hilda,irritada,lhedizia:“Dante,vácomeraempregadaenãome</p><p>enchaosaco!”Eoengraçadoéque,depoisdeváriasrespostassemelhantes,ele</p><p>realmentefoicomeraempregada.Empoucotempoocasamentoacabou.</p><p>—Poisé, taíumfatocomum.Paraohomem,numcasoassim,amulherse</p><p>tornabasicamenteumamigoouumparceiro—comoeraSimonedeBeauvoir</p><p>para Sartre. Isso, claro, quando não se torna uma rival! Imagino que ela nem</p><p>tenhatidofilhos.</p><p>—Quem?AHilda?Não,nãoteve.</p><p>—Poisé.Nofinaldascontas,mesmoamandoumamulherintelectualmente</p><p>criativa, o sujeito, para se sentir completo, acaba é procurandomulheresmais</p><p>femininas. Mesmo que ele próprio ache isso uma idiotice, mesmo que saiba</p><p>racionalmente que sua companheira intelectualizada é mais, digamos,</p><p>interessante do que uma meramente feminina, ele não consegue evitar! É</p><p>instintivo, é da natureza do masculino buscar o feminino — e, dando uma</p><p>tragada no cigarro, Nathan olhou para cima, meditando. A neblina e o frio</p><p>pareciam mais intensos agora. As ruas já não estavam tão movimentadas. —</p><p>Quantoàmulher—prosseguiuele—,defatoelaatépodeteramentecriativa:</p><p>contanto, repito, que sacrifique sua feminilidadenatural no altar desse tipode</p><p>criatividade, tal como o fez sua amiga.Ora, amulher nasceu para criar o que</p><p>você,Yuri,certamentecrêserobemmaisprecioso:outroserhumano!Paraum</p><p>moralista,paraumconservador,oqueéumlivroquandocomparadoaumser</p><p>humano? Nada! Mas não, em vez de observar com condescendência essas</p><p>criaçõesmentais dos homens, tão inferiores se cotejadas comumanova alma,</p><p>agora asmulheresqueremé criardentrodo âmbitomasculino!Abandonamo</p><p>ato mágico e sagrado de se tornar um portal para a vida e abraçam as</p><p>invencionicesdoshomens. Jáocoitadodohomem,queé incapazdegerarum</p><p>filho, não pode nem compor uma sinfonia sossegado? Ele tem de ouvir da</p><p>própriaesposaalgocomo“meutrabalhonoescritórioétãoimportantequantoo</p><p>seu”? E ela então ainda tem o desplante de tecer elogios ao chefe, um sujeito</p><p>pretensiosoquenãopassadeumburocrata,quando,semsedarconta,ela tem</p><p>emcasaumgêniodamúsicanecessitadodeajudafemininaparadesabrochar…</p><p>Quetremendasacanagem!</p><p>—Você, por acaso, seria contra umamulher tornar-se presidente de uma</p><p>empresaoumesmopresidentedaRepública?</p><p>—Não interessa se sou contra ou a favor. O que interessa é que, se uma</p><p>mulherforculta,istoé,seelabeberdafontedaCultura,daHistória,daFilosofia,</p><p>enfim,dopensamentohumanomaiselevado,previamentecriado,aprofundado</p><p>eexpandidoporhomensjámortos,elaserámuitomelhordoqueumpresidente</p><p>homemincultooumeramentedotadodeumridículodiplomadeuniversidade</p><p>brasileira.MargaretThatcherfoiMargaretThatcherporqueestavasobreombros</p><p>degigantes!Eujádisse:asmulheressãomaiscapazesdereconhecerumgêniodo</p><p>quequalqueroutrohomem!Porra,aprimeiramulheraacenderofogonotoua</p><p>genialidade da ideia quando o próprio inventor duvidara dela! Em geral, os</p><p>homenséque invejamaquelesque sãomelhoresdoqueele.Asmulheresnão,</p><p>elas os reconhecem, compreendem e os amam!O amor é a fonte da vontade.</p><p>Este, aliás, foi um dos argumentos que o coitado doNietzsche usou contra o</p><p>cristianismo:queerafraco,quesetratavadumareligiãofeminina!Tudoporque,</p><p>noinício,quemmaisamava,compreendiaeseguiaJesuseramasmulheres!Ora,</p><p>elassãointeligentíssimas!Sónãoesperenovidadesintelectuaisdapartedelas.As</p><p>novidades que lhes interessam são as notícias, os últimos acontecimentos, as</p><p>fofocas, ou seja: coisas já ocorridas. Como as “boas-novas” do Evangelho, por</p><p>exemplo—eNathansorriucinicamente.</p><p>Comeceiatamborilaramesa:</p><p>—Tá,tudoissoémuitointeressante.Masqueninguémnosouça!Porqueeste</p><p>papo,nestanossaépocapoliticamentecorreta,podeaténoslevaràcadeia.Eeu</p><p>souapenasseuouvinte!</p><p>Eleriuenquantobatiaacinzadocigarro.</p><p>—Agora…—continuei—vocêtemdereconhecerquenadadoquefalouaté</p><p>omomentoapoiasuadefesadofeminismo.Muitopelocontrário:suaposiçãoé</p><p>muitopróximaàdeChesterton,queeracatólicoejácriticavaofeminismonos</p><p>anos1920!</p><p>Nathan, a cachaça em riste, alargou um sorriso e me encarou com olhos</p><p>penetrantes:</p><p>—Souniilista,imoral,masnãosouidiota!Euestudomuito.Aliás,vocêjáleu</p><p>asEpístolasdePaulocomatenção?</p><p>—Jáli,masduvidoquetenhaprestadoatençãoàsmesmascoisasquevocê.</p><p>—Bem,ocasoéqueoapóstoloPaulodescrevecomperfeiçãoomaiordefeito</p><p>dohomemeomaiordefeitodamulher.</p><p>—Equaisseriam?</p><p>— O maior defeito do homem é o egoísmo; o da mulher, o orgulho. O</p><p>egoísmo é o Yang do ego, e o orgulho, o Yin. Percebe?</p><p>de</p><p>carrinho de rolimã, de bicicleta, brincávamos de polícia e ladrão, bombinhas,</p><p>queimada, futebol, guerra demamona, disputávamos asmeninas… enfim, foi</p><p>umdosmeusparceiros,unhaecarne…Umapena.</p><p>—Comoassim“umapena”?Vocêsbrigaram?</p><p>— Ele morreu, Lu. Estava naquele avião da TAM, lembra? O primeiro.</p><p>AquelequecaiupertodeCongonhasem1996.</p><p>—Nossa!Quehorror.</p><p>— Pois é. Foi um dia das bruxas de verdade. E ele era filho único, o</p><p>queridinhodadonaLívia.Umcapeta,mas,quandoamãegritavaporelenofinal</p><p>datarde,iacorrendopracasafeitoumcordeirinho.Àssetedanoitejáestavade</p><p>pijama. Aí a gente ia até o portão da casa dele e cantava alguma música do</p><p>RobertoCarlos—eodoutorsorriu:—“Todososrapazes têminvejademim/</p><p>Mas eu não dou bola porque sou mesmo assim/Me chamam lobomau/Me</p><p>chamamlobomau/eusouotal,tal,tal,tal,tal”.</p><p>—Quetriste.</p><p>— Uma vez, no início dos anos 1990, encontrei a dona Lívia no Pão de</p><p>AçúcardoviadutoWashingtonLuís.OuaindanãoeraPãodeAçúcar,sei lá…</p><p>Enfim, perguntei por ele e ela me disse: “Ele tá gooordo! Boniiiiito!” — e o</p><p>doutordeuumarisada.—Eleeraengenheiroeletrônico.</p><p>—Nossa,amor,perderumfilhojádeveserapiorcoisadomundo.Masum</p><p>filhoúnico?Nãoconsigonemimaginar.</p><p>—Dizem que ela tentou o suicídio um ano depois. Tomou ummonte de</p><p>calmantesoualgoassim.OseuFábioéumcaraestranho,achoatéqueumtanto</p><p>psicótico.Nuncamesentiàvontadecomele.Eleestavasempre infernizandoa</p><p>gente com interrogatórios mirabolantes, perguntas intrometidas e cínicas.</p><p>Reparavaemtudo:nasuaroupa,noseucabelo,noseujeitodefalar,deandar…</p><p>Tinhasempreumsorrisinhomaliciosodosmaisirritanteseviviademonstrando</p><p>comoéramosinferioresaoRoberto.Arespostadelepratudooquedizíamosera:</p><p>“Quandovocêforproexército,vocêvaiaprender!”E,quandoagentelanchava</p><p>na casa dele, sempre tinha o “Seja homem!Homem não come desse jeito!” E</p><p>você pode trocar o verbo comer por qualquer outro: andar, falar, rir, sentar,</p><p>cuspir, mijar, respirar… Ele usou todos. Qualquer garoto que ia na casa do</p><p>Roberto saíade lápensando: “Seráqueessecarapensaque soubicha?Ouque</p><p>souretardado?Ouumfracassado?”</p><p>—Bom,depoisdeumaexperiênciahorríveldessaseledeveter…</p><p>Acampainhatocoueocasalficouemsuspense.DonaDragaateriaouvido?</p><p>Sooutãobaixinha.Ficaramemsilêncio,entreolhando-se,semsabersedeveriam</p><p>chamá-la ou, quem sabe, ir até o portão. Ora, ainda estava chovendo forte!</p><p>Contudo, apesar de serem velhos conhecidos, não eram íntimos de nenhuma</p><p>daquelas pessoas. Não parecia uma boa ideia agir como se fossem da casa. A</p><p>campainhavoltouasoar.</p><p>—Sãoeles—disseaanfitriãjádiantedeles,deavental,dirigindo-seàporta</p><p>dafrente.</p><p>Dali a instantes os três adentraram a sala e o casal se levantou para os</p><p>cumprimentos.</p><p>—VocêsselembramdoJoão?FilhodaTeresa?</p><p>DonaLíviaarregalouosolhos:</p><p>— Joãozinho! Caramba, você já tá grisalho. Como o tempo passa! — e o</p><p>abraçou.</p><p>—EstaéLuciana,minhaesposa.</p><p>—Quelinda!Éumprazer—easaudoucomdoisbeijos.—Ecomovãoseus</p><p>pais?</p><p>—Estãobem,obrigado.</p><p>O doutor Pinto apertou a mão de Fábio e reparou que o tal sorrisinho</p><p>maliciosoaindaestavalá:</p><p>—Comovaiosenhor?</p><p>—Tudoótimo.Evocê,João?Pelojeito,nãodesapareceunomundo.</p><p>—Não,não.MoroemSantoAmaro.</p><p>—QuebelaporcariaSantoAmaro!Tudoaliseparececomaquelaestátuado</p><p>BorbaGato.</p><p>O doutor apenas sorriu e disparou um olhar à esposa, que demonstrou</p><p>compreenderotipo.</p><p>—CadêoJosif?—indagouFábio.</p><p>— Já está vindo — respondeu dona Draga e, virando-se para os fundos,</p><p>gritou:— Iôsif (foi assimqueonome lhes soou), o seuFábio já chegou.Vem</p><p>jantar!—evirando-separaocasalmaisjovem:—Bom,vamosprasaladejantar.</p><p>Játátudopronto.</p><p>—Deixasuabolsaaínessamesa,Lívia—disseFábio.—Quemaniadeandar</p><p>comumacoisatãogrande…</p><p>—Éovinho!—disseamulher.—Trouxeduasgarrafas!—easretirouda</p><p>enormebolsa.</p><p>Omaridosacudiuacabeça:</p><p>—Mas,mulher,eutedisseque…Vocêéuma…—esuspirou.—Ah,deixa</p><p>pralá.</p><p>DonaDragaficounitidamenteapreensiva.Odoutoresuaesposadisfarçaram</p><p>automaticamenteopróprioconstrangimento.Comosenãoestivessemaparde</p><p>nada,nãofizeramqualquercomentárionemmoveramummúsculodaface.</p><p>—Euouvialguémdizervinho?—perguntouJosif,assomandoàsaídadeum</p><p>longocorredor.</p><p>—Comovai,capitãoVuković?—cumprimentou-oFábio,efusivo.</p><p>—Bem,bem—seusotaqueeramaiscarregadoqueodedonaDraga.—Mas</p><p>nãosoucapitãodecoisanenhuma.</p><p>—Émesmo?Masvocêmedisseumaquevezque,duranteaguerra…</p><p>—Não te dissenada, Fábio—e Josif sorriu estranhamente, semalongar o</p><p>assunto.Cumprimentouentãoosdemaiscompotentesapertosdemão.</p><p>—VocêselembradoJoão,Joško?—elapronunciava“Iôshko”.</p><p>—Ah,talvez.Nãomelembrodireitodenenhumadascriançasdarua.Nossas</p><p>filhasjáeramadolescentes,né?Nãoandavamcomvocês.</p><p>—Ecomoelasestão?—perguntouodoutor.</p><p>—Duasestãoótimas,casadas,felizes.JovankaeTajana.Cinconetos…Uma</p><p>netagrávida…JáaFilipa,minhacaçula…—elançouumolharpesarosoparaa</p><p>esposa. — Bom, não precisamos falar sobre isso. Vamos jantar — e, num</p><p>movimento brusco, imprevisto, tomou as garrafas de vinhodasmãos de dona</p><p>Lívia.</p><p>*</p><p>Noiníciodojantar,donaDragapermaneceuvisivelmentepreocupada.Todasua</p><p>simpatia prévia fora substituída por um ar assustadiço, receoso. Levantava-se,</p><p>sentava-se, levantava-sedenovo, tornavaasentar-se.Azafamada, iaevinhada</p><p>cozinhacomoumaserva,quasesemparticipardaconversação.Àsvezeslograva</p><p>manter-semaisdetrêsminutosàmesa,mastigavapouco,engoliaàspressas,sem</p><p>deixardeatirarmiradasfurtivasàtaçadevinhodomarido,semprecheia.Josif</p><p>estavafelizenãoparecianotaraapreensãodamulher.</p><p>— Você continua visitando a Sérvia, capitão?— perguntou Fábio lá pelas</p><p>tantas,debocacheia.</p><p>—Não—respondeu,numesgar.Otítulodecapitãopareciairritá-lo.—Faz</p><p>tempoquepasseidosoitenta,né?Minhabateriatánofim,quasedescarregada.</p><p>Fazmuitotempoquenãovou.DesdeaGuerradoKosovo.</p><p>—Por favor, Joško. Semguerras— atalhou-odonaDraga. E para a antiga</p><p>vizinha:—VocêestágostandodemoraremMoema,Lívia?</p><p>DonaLíviaemitiuumlongosuspiro:</p><p>—Dentro do apartamento é tranquilo, né?Até demais.Mas às vezes sinto</p><p>faltadanossarua.Eratãomovimentada!Cheiadecrianças.Lásótemcarrose</p><p>carrosecarros.Otempotodo.Mascriançaqueébom…</p><p>—Ah,mulher—começouFábiocomumacareta.—Nenhumbairromaisé</p><p>desse jeito. Crianças, agora, só do portão pra dentro. A não ser nos bairros</p><p>distantes, patrulhados por gente do PCC. Por incrível que pareça, onde os</p><p>bandidosvivemémuitomaissossegado.</p><p>OdoutorPintosemexeunacadeira:</p><p>— Não é bem assim, seu Fábio. No meu trabalho ouço muitas histórias.</p><p>Dívidasdetráficoresolvidasàbala…Questõesinsignificantesqueredundamem</p><p>morte…ComoadaquelerapazdesaparecidopertodeParelheiros…Ouvideboa</p><p>fontequeomataramporcausadeumgato!Sim,mata-seporqualquercoisa.A</p><p>populaçãodaperiferia(ou,comocostumamdizer…dessasquebradas)nãoestá</p><p>tãosatisfeita.Éumapazquediariamentetropeçaemcorposnascalçadas.</p><p>—Eémuitobem-feito!—retrucouFábio,categórico.</p><p>Dona Draga fez ummuxoxo involuntário e todos se calaram, o que a fez</p><p>enrubescer.Josif,aparentementealheioaotema,haviadominadocompletamente</p><p>umadasgarrafasdevinhoe,noritmoqueia,logomaisseapoderariadaoutra.O</p><p>doutor havia enchido até a borda tanto</p><p>sua taça quanto a da esposa, algo</p><p>incomum nessa época de Lei Seca, em que há sempre a necessidade de um</p><p>motoristasóbrio.Porém,comojánãohaviarazõesparatemeroincentivoaum</p><p>alcoólatra,optouporcontribuirnareduçãodovinhodisponível.Quantomenos</p><p>sobrassepara Josif,melhor.Encaravaaquilocomosuaboaaçãodanoite.Mais</p><p>tarde, no retorno à casa, sua tecnológica esposa certamente utilizaria oWaze</p><p>paraevitarasblitzedapolíciaeseusbafômetros.</p><p>—Parecequetodososassuntossãoperigosos,nãoé?—disseJosif,estalando</p><p>alíngua,claramentesatisfeitocomaqualidadedovinhochileno.</p><p>— Eu fiquei muito contente quando encontrei o João no fórum hoje —</p><p>ignorou-odonaDraga.—Sebemquefoielequemmereconheceu.</p><p>—Asenhoracontinuaamesma,donaDraga.</p><p>—Eugostavamuitodasvisitasdasuamãe—eavelhasorriu,enternecida.—</p><p>Elameajudoumuitoamelhorarminhatécnicadepintura.</p><p>— Isso é verdade—disse Josif, as bochechas já bem coradas.—Pena que</p><p>você só reproduz as minhas fotografias de paisagens. Em paisagem não tem</p><p>drama—eentão,semtirarosolhosdaesposa,esvaziououtrataçadeumgole.</p><p>Ele a observava de maneira provocativa, desafiadora. Luciana colocou</p><p>discretamente uma mão no joelho do marido e o apertou, como quem diz:</p><p>parecequeentramosnumaroubada.</p><p>—Enossapresidentebolivariana?—perguntouFábio.—Seráquecai?</p><p>—Claroque cai—disse Josif, categórico.—Mas issonão éobastante. Se</p><p>vocês brasileiros fossem como nós, eslavos, não seriam tão mansos. Deviam</p><p>entrar naqueles prédios de Brasília armados até os dentes! Ou então podiam</p><p>fazer como os ucranianos, que também são eslavos, e ir jogar esse bando de</p><p>ladrõesnolixo.</p><p>Fábiosorriu:</p><p>—Fácildedizer.Muitagentedizisso.Masninguémquerumaguerracivil.</p><p>—Guerracivil…Pffff!—fezoanfitrião,debochado.—Nãotemguerracivil</p><p>nenhuma.Essa gente vermelha é frouxa!É sópropaganda,não são capazesde</p><p>nada. Na Iugoslávia, na Romênia, na Ucrânia… em todos esses lugares o</p><p>comunismo só durou muito porque, se alguém tomasse uma atitude, logo</p><p>haveria tanques soviéticos nas ruas. Mas aqui… Quem viria salvar esses</p><p>comunistasbrasileirosridículos?ABolívia?AVenezuela?Quebesteira…</p><p>EraumtemaqueinteressavaaodoutorPinto.Maselenãoseatreviaadizer</p><p>nada, pois percebia como aquela conversa injuriava donaDraga.Olhando em</p><p>torno, notava o quanto ela se esforçara para criar um ambiente receptivo às</p><p>visitas.Omaisprováveléquenãorecebessemninguémhaviamuitotempo.</p><p>— Talvez você tenha razão, capitão. Mas, depois do desarmamento civil,</p><p>ninguémtememcasaumagarruchasequer.</p><p>Josifdeuumtapanamesa:</p><p>—Eporacasoalguémfoibuscarsuaarmaemcasa?Vocêcaçava,nãocaçava?</p><p>—Sim.Aindatenhomeurifle.</p><p>—Poisentão.Tambémtenhoasminhasarmas.Sóosbovinosentregaramas</p><p>suas. Desarmamento é preparação para o totalitarismo, para a ditadura. Não</p><p>acreditoqueosbrasileirosforamtodostãoburrosassim.</p><p>DonaLíviafranziuatesta:</p><p>—Massetodomundoandassearmadoporaíseriaumadesgraça!Agenteia</p><p>vivernumfilmedebangue-bangue!</p><p>OassuntopareciaempolgarJosif:</p><p>—Desculpe,donaLívia,masessaideiaéumabesteira.Eucompreiumlivro</p><p>muitobomsobreoVelhoOeste:TheNotSoWild,WildWest.Dedoisautores:</p><p>TerryLeee…Ah,nãomelembroooutronome.Fizeramumapesquisa.Aquele</p><p>tiroteio que vemos nos filmes é coisa de Hollywood. Os americanos daquela</p><p>época andavammesmo armados, mas a violência, em proporção à que existe</p><p>hoje, eramínima, ridícula.Quando todos estão armados, quando todos têmo</p><p>mesmopoder,entãoocorreumequilíbrio:cadaumficanasua.</p><p>— E também porque eram todos muito religiosos, né? — acrescentou o</p><p>doutorPinto.</p><p>Josifarqueouassobrancelhas:</p><p>—É,dizemissotambém.Mas,naminhaopinião,essenegóciodereligiãoé</p><p>secundário.Sereligiãoevitasseviolência,nãoteríamosmuçulmanos loucospor</p><p>aí,nãoteríamostidoascruzadas,nemaNoitedeSãoBartolomeu,nemasbrigas</p><p>entrecatólicoseprotestantesdaIrlandadoNorte.</p><p>—Vamosmudarde assunto?— solicitoudonaDraga, inquieta, aomesmo</p><p>tempoqueofereciamaisespagueteadonaLívia.</p><p>—Drágicaodeia tantoessesassuntos sangrentosqueatéoespaguetedelaé</p><p>branco.Nuncausamolhodetomate—eJosifsorriu,levantandoataça,comose</p><p>brindasse.E,maisquedepressa,esvaziou-anumúnicogole.</p><p>—Porfavor,dragi—devolveuela.</p><p>— Quer conversar sobre o quê então? Pintura? Por que você não copia</p><p>minhasfotografiasdeguerra?Sãocenasdeheroísmo,nãodecriminosos.</p><p>—Achoquevocêjábebeumuito,Joško.</p><p>—Deixa ele beber,Draga. É bompra saúde—disse dona Lívia, namaior</p><p>inocência.EentãoelamesmaseencarregoudereabastecerataçadeJosif.</p><p>Fábio sorriu com armaquiavélico enquanto encarava alternadamente um e</p><p>outro comensal. Seus olhos pareciam dizer: percebem como minha mulher é</p><p>estúpida?</p><p>—Estávendo,Drágica?—tornouJosif, semnotaraexpressãodeFábio.—</p><p>Quemsepermitesentiradordavidareconheceanecessidadedoálcool!Seoseu</p><p>Jesusnãoconcordassecomisso,teriatransformadoáguaemlimonada.</p><p>Aquelareferênciaà“dordavida”fezdonaLíviaempalidecer.E,pelaprimeira</p><p>vez,seurostoanuviou-se.Eraverdadequeocasionalmenteaindausavaumque</p><p>outrosubterfúgioquímicodisponívelparaeludira saudadequesentiado filho</p><p>morto.Masavergonhaadominavaquandoalguémaludiaa tal fato.Deolhos</p><p>baixos, alheou-se em seu mundo interior. Certamente perdera o apetite. Seu</p><p>garfo,agora,limitava-seaespalharoespaguetepeloprato.</p><p>—Entãovamosfalardedores,Josif—retrucouFábio,cheiodecinismo.—</p><p>Qualésuadoratual?</p><p>—Minhadoratual…—murmurouosérvio,pensativo.—Minhadorantes</p><p>eraFilipa.Vocêssabem,elalevouumtiroduranteumassaltoeficouparaplégica.</p><p>Uma comunista paraplégica que antes ficava postando besteiras na internet,</p><p>dizendoqueaculpapeloscrimesexistentesédasociedade.Viviaàsturrascom</p><p>minhasoutrasfilhas,que,porjáteremmaridoefilhos,nãoprecisavamprocurar</p><p>uma família postiça noutro lugar. Minha própria caçula! Uma advogada</p><p>comunista que andava por aí abraçando bandidos como se fossem guerreiros</p><p>revolucionários!Nãoéirônico?</p><p>Consternada,donaDragajáiadizendoalgumacoisa,masFábioseadiantoua</p><p>ela:</p><p>—Bom,masantesdeseresseanticomunistaquevejohoje,vocêtambémjá</p><p>foiumcomunista,capitão.</p><p>— Não, nunca fui! E muito menos um bandido— respondeu, áspero. —</p><p>Semprefuiumnacionalistasérvio!Seluteitantasvezesaoladodoscomunistas,é</p><p>porqueissointeressavaaonossonacionalismo.Oregimeerasocialista,ora!Sim,</p><p>lutei ao lado deles. Mas isso porque não havia como assumir outra postura</p><p>naquela época. Jamais seria de coração um comunista, um socialista… Como</p><p>poderia?Essagentematoumeupainumaprisão!</p><p>DonaDragacolocouos talheresde ladoe—comoseuma fronteira tivesse</p><p>sido ultrapassada, não havendo portanto mais nenhum remédio— deixou-se</p><p>dominarporumaexpressãoapática.Elasabia:quandoJosiffalavadopai…</p><p>—Sesuadoratualnãoésuafilha,Josif…—insistiuFábio,quepareciagostar</p><p>deandaràbeiradeprecipícios—qualésuadoragora?</p><p>Aessaaltura,apenasodoutoreLucianamastigavam,comosenãotentassem</p><p>senãomanterasbocasocupadas, longedaquelaconversação.Eramosúnicosa</p><p>agirdemodoaconcederumúltimoresquíciodesensatezàcena.</p><p>—O espaguete está uma delícia, dona Draga— disse Luciana, sem que a</p><p>anfitriãlhefizessecaso.</p><p>—Minhadoratualsechamaassédiomoral.Essaaí—eindicouaesposacom</p><p>oqueixo—querqueeusintaculpaou,sepreferir,</p><p>querqueeufaçaumexamede</p><p>consciência. A Drágica vem tentando me catequizar há anos! E só está</p><p>conseguindoémetorturar.</p><p>DonaDragacorouinstantaneamente:</p><p>—Oquê?!Doquevocêtáfalando,Joško?</p><p>—Dasenhora,donaPreciosa!—E,virando-separaosdemais,acrescentou</p><p>num tom entre o cínico e o brincalhão:—Draga vem do eslavodragu , que</p><p>significaistomesmo:preciosa.</p><p>Muitosurpreso,odoutorarregalouosolhos:emcriançasempreassociarao</p><p>nomedavizinhaaumdragão—claro,aumafêmeadedragão—ouatémesmo</p><p>ao romeno conde Drácula. No início, não sabia que se tratava de um nome</p><p>próprio.Acreditavaqueosvizinhosa tinhamapelidadodaquela formaporque</p><p>talvez fosse uma mulher perigosa, sinistra, malvada, hipótese que as bolas</p><p>rasgadas pareciam confirmar. Lembrava-se ainda de brincar de vampiro e de</p><p>chamar sua vizinha Pauline, por quem era apaixonado, deDraga, como se tal</p><p>nomefosseumnomeperfeitoparaumavampira.Claroquejamaismencionaria</p><p>à mesa, em tais circunstâncias, semelhantes recordações. Tinha seu quê de</p><p>ingenuidade e seu senso de humor, mas o doutor Pinto Grande jamais se</p><p>arriscariaamudaropadrãodaconversacomumcomentáriodessenaipe.</p><p>— Josif — insistiu dona Draga, nitidamente embaraçada —, eu só estou</p><p>tentandolevarvocêdevoltaàIgreja!</p><p>—Vocêquerémeenlouquecer!—replicou,categórico.—Ameuver,não</p><p>cometi nenhum pecado. Mas você fica insistindo nisso, fica insistindo,</p><p>insistindo,querendoqueeufaçaum…diabo!…querendoqueeufaçaumexame</p><p>deconsciência!…comosevocênão fossecapazde imaginarquantascoisas fiz</p><p>que,àluzdareligião,nãopassamdepecadoshorríveis…Nãovouentrarnessa,</p><p>nãovoumemartirizar,nãovoumecondenar.</p><p>—MasaIgrejaépraisso,épravocêsesalvar!Épravocênãoenlouquecer!</p><p>—Ah,Drágica…—esacudiuacabeça,condescendente.—Seeutiverdeir</p><p>atéCampinas, sóparanão enlouquecer, estouperdido. Semal vejouma razão</p><p>parasairdomeuescritório!…Nãoaceitoessaabsurdanecessidadedeumprédio</p><p>paraencontraresseDeusquevocêdizexistir.Étudoumaimensabobagem.</p><p>—Podemosiraoutraigreja,dragi—tornouela,numtomcarinhoso,quase</p><p>suplicante .—Eu só falodeCampinasporque fica lá a IgrejaOrtodoxaSérvia</p><p>maispróxima!Masagentepodeprocuraroutraigrejaortodoxaaquimesmo.</p><p>Fábiocomeçouarir:</p><p>—Ah,Josif!Paraumnacionalistasérviocomovocê,nadamelhordoqueum</p><p>Deussérvio!</p><p>Josif fulminou o ex-vizinho com um olhar espantoso — mas nada lhe</p><p>respondeu.Tomounovamentedataçaeaesvazioucomsofreguidão.</p><p>DonaDragainsistiu:</p><p>—Senãoquiserirmuitolonge,alipertinhodoviadutoWashingtonLuístem</p><p>umaigrejacatólica…</p><p>—FoiláqueviopadreMarcelopelaprimeiravez!—acrescentoudonaLívia,</p><p>abandonando a mudez. — Naquela época ninguém falava dele na televisão.</p><p>Juntavaumamultidãoenormeforadaigreja,nemtodomundoconseguiaentrar.</p><p>Eles tinham de colocar uns alto-falantes na rua, pra todo mundo poder</p><p>acompanhar.</p><p>—PadreMarcelo…Caramba!—exclamouFábio.—Aindabemqueeunão</p><p>iacomvocê.Essenegóciodeshow-missa…PeloamordeDeus!</p><p>Repentinamente,paragrandesustodospresentes, Josifdeuumfortemurro</p><p>namesa:</p><p>—Nãoentronumaigrejacatólicanemamarrado!!</p><p>Luciana, que quase toda semana ia à missa, e que uma vez por mês ia</p><p>acompanhadadomarido, ficou lívida, a respiração suspensa.Quase indagouo</p><p>porquê,masnãotevecoragem.</p><p>—Quetalentãoagentemudardeassunto?—propôsodoutorPinto.</p><p>— João!—berrou Josif, comolhos flamejantes.—Paramim você ainda é</p><p>aquelemoleque que jogava a bola de futebol nomeu quintal. É só o queme</p><p>lembrodevocê.Drágicamedissequeagoraéadvogado,masquemfazaleina</p><p>minhacasasoueu!Eninguémmedizoqueconversaràminhamesa.Ninguém!</p><p>Eninguémjamaisvaimelevaràigrejadosnossostraidores!</p><p>Fábioarqueouassobrancelhas,curioso:</p><p>—Traidores?Quetraidores?Oscarismáticos?</p><p>DonaDragaapoiouoscotovelosnamesaeocultouorostonasmãos:</p><p>—Porfavor,Joško…</p><p>Josifselevantou,ameaçador.Eraumhomemenorme,corpulento.Apesarda</p><p>idade, certamente seria capaz de quebrar aomeio uma pessoa franzina como</p><p>Fábio.</p><p>—Ela fica assim porque amãe dela era croata—prosseguiu Josif, o rosto</p><p>rubro, os olhos arregalados. — Minha mulher é metade croata, essa raça de</p><p>traidores…As geraçõesmais novas não se dão conta, amaioria quermanter</p><p>boas relações com os vizinhos… Mas essa gente se uniu a Hitler quando os</p><p>nazistas nos invadiram durante a Segunda Guerra. Sabiam disso?! Os croatas</p><p>serviramaHitler!ElestentaramexterminarossérviosdafacedaTerra!</p><p>Ninguémdissenada.Aquela reação indicavaqueoálcool já falavaemJosif</p><p>maisdoqueelemesmo.</p><p>—Eosizdajnicicroataseramtodoscatólicos!FoiPavelićqueenvioumeuavô</p><p>paraocampodeconcentraçãodeJasenovac.Elemorreulá!Disseramquefoide</p><p>tuberculose,maseramentira!Foiexecutado!</p><p>—Tudoissoépassado,Joško!Paracomisso!—suplicoudonaDraga.</p><p>—Eosbósniosmuçulmanos?!—disse,fuzilandoumaumcomosolhos.—</p><p>Fizeram parte do único regimento islâmico nazista! E, no final da guerra,</p><p>ajudaram vários terroristas nazistas doWerwolf a fugir para o Egito e para a</p><p>Palestina, onde se converteram ao Islã e treinaram os primeiros mentores de</p><p>todos os terroristas islâmicos de hoje! Yasser Arafat foi treinado por nazistas</p><p>graçasaessagente!</p><p>—Joško!</p><p>Josifnãoaouvia,estavaobcecado:</p><p>—Alguémaquiporacaso já estevenumaguerra?Éumpesadelodoqual a</p><p>gentenãoconsegueacordar!VocêpedeaDeus:“Faça-osparar,Senhor!Faça-os</p><p>parar!” e, no dia seguinte, tudo continua igual!!… Não é como a violência</p><p>cotidiana do Brasil da qual a gente só se lembra quando algum conhecido é</p><p>assaltado.Aguerraéoinfernoreal,asmortessãodistribuídasigualmenteentre</p><p>todosotempointeiro!…Euseimuitobemdoqueestoufalando.Eueracriança</p><p>duranteaSegundaGuerra,aindamelembrodomeuavô.Eumelembrodosom</p><p>dostirosnarua,dosomdeexplosões,daminhamãeapavorada,meescondendo</p><p>debaixodaescada.Se,comasguerrasqueseseguiram,nóstentamosexpulsarda</p><p>nossa pátria os croatas, os bósnios, os kosovares, os albaneses, toda essa gente</p><p>inescrupulosaetraiçoeira,foiporquejáestávamoscansadosdetantosofrimento,</p><p>detantatraiçãoemalícia!Eosbósnios,kosovaresealbanesessãoaindapioresdo</p><p>queoscroatas!AmaioriadelessegueoIslã!AEuropacomeçaasofreragoracom</p><p>a invasãomuçulmana,mas nós lidamos com ela há séculos!Muito se fala da</p><p>BatalhadeViena,decomoosaustríacosbarraramaentradadosmuçulmanosna</p><p>Europa.Mas,naquelaépoca,nósjáestávamoseaindairíamospermanecermuito</p><p>temposobotacãodoImpérioOtomano!</p><p>—Joško,dragimoj !—murmurou donaDraga, pesarosa, puxando-o pelo</p><p>braço.</p><p>Josifvoltouasesentar,arfante.Masaindanãoconcluíra.Retomouodiscurso</p><p>numtommaisameno:</p><p>—AntesdeconhecerDrágica,quandomeupai jáestavapreso, eueminha</p><p>mãe nosmudamos para uma rua de Belgrado cheia demuçulmanos. Isso foi</p><p>depoisdaSegundaGuerra.Ogovernosocialistadeentãonãopermitianenhuma</p><p>religião, nem mesmo a cristã, mas aquela gente continuava seguindo seus</p><p>preceitos às ocultas. E só tinham confiança entre si. Eu me lembro de cada</p><p>coisa… — e passou a mão pela testa, afastando os cabelos brancos. — Por</p><p>exemplo:elesachavamquecãessãoanimaisimundos.Uê,muitagenteacha,não</p><p>é?Mas, nesse caso, não podiam simplesmente evitar criá-los? Claro que não!</p><p>Tiveram de matar dois dos meus cachorros! Na minha frente! Estão me</p><p>ouvindo?…Na frente de uma criança!…</p><p>Emeu último cachorro se chamava</p><p>Mačka!Mačka é “gato” em sérvio. Um cãozinho tão manso que se chamava</p><p>gato!…Eessesmuçulmanossófalavamnossalínguaquandolhesinteressava…</p><p>Nessascondições,entrevocêeseuvizinhonãoháumaparede:háummundo!…</p><p>—e,momentaneamente absorto, tomououtro gole de vinho.Ninguémousou</p><p>abrir a boca. Josif respirou fundo e prosseguiu: — Claro, não vou mentir.</p><p>Durante o primeiro ano de viuvez da minha mãe, uma senhora muçulmana,</p><p>nossavizinhadadireita,tevepenadanossasituaçãoenosalimentousempreque</p><p>pôde.Nósnão tínhamosmaisparentesvivos:meus tiosestavammortos,meus</p><p>avós,meupai, todosmortos…Minhamãeganhavamuitopouco.Essamulher</p><p>nosajudou!Eoqueomaridodelafezquandodescobriu?Deuumamedalhapra</p><p>ela? Não, ele a espancou duramente, deixando-amanca para o resto da vida!</p><p>Vocêsentendemaloucura?Quandoseuvizinhoéumestrangeiroquevivenum</p><p>mundoàparte,comoutralíngua,comoutroscostumes,outrascrenças…écomo</p><p>sevocêjánãofizessepartedasuaprópriaterra!Vocêsetornaumexiladosem</p><p>nuncatersaídodecasa!</p><p>OdoutorPintoseaprumounacadeira:</p><p>—Desculpe, seu Josif.O senhor não acha curioso o fato de ter sido nosso</p><p>vizinhoemcondições,nãodireisemelhantes,claro,masanálogasaessasqueestá</p><p>nos contando? O senhor é um estrangeiro, quase não falava conosco, estava</p><p>semprerecluso,nosevitavaatodocusto.Quandoseucachorro…</p><p>—Masnóssomosocidentais!Nãosomosislâmicos!Aprendemossualíngua,</p><p>nosadaptamos…</p><p>—Masosenhorsereferiuaoscroatasquasedamesmamaneiraquesereferiu</p><p>aosmuçulmanos.E, alémde seremocidentais, os croatas também são eslavos,</p><p>nãosão?Falamamesmalíngua…</p><p>—Aondequerchegar,João?—indagouJosif,osolhosbrilhandodecólera.</p><p>Odoutorajeitouopaletóejuntouasmãoscomosefosseorar.Adotouotom</p><p>maisamistosopossível:</p><p>— Eu apenas estou pensando no significado deste nosso encontro. Somos</p><p>todos ex-vizinhos. E o senhor está nos descrevendo uma terra em que países</p><p>vizinhos vivem em contenda há séculos.Não apenas os países: povos diversos</p><p>dentro dosmesmos países!Gentemuito diferente obrigada a viver nomesmo</p><p>território.Enfim.Eutenhoumclientequeétradutor.Umdiaelemedissealgo</p><p>quenão consigo tirar da cabeça, e eu gostaria que o senhor e donaDragame</p><p>ajudassematestarateoriadele.</p><p>—Teoria…—murmurouFábio,debochado.EdonaLíviaotocounobraço,</p><p>paraquesecalasse.</p><p>—Meuclienteacreditaquegrandepartedosconflitosnomundoocidentalsó</p><p>persistegraçasaumamátraduçãodaBíblia.Vocêssabem:traduttoretraditore…</p><p>— Como assim, João? — perguntou dona Draga, aliviada com esse</p><p>interregno.</p><p>—Bem,elemedissequenaquelapassagemdoNovoTestamento,aquelaque</p><p>diz“Amarásaoteupróximocomoatimesmo”…IssoéMarcos,meuamor?</p><p>—Marcos,Mateus,Gálatas…—tornouLuciana,atenta.</p><p>Odoutorsorriu:</p><p>—Estãovendo?Elasabemaisdoqueeu.Nuncaseiemquaislivros,capítulos</p><p>eversículosestáumacitaçãobíblica.Minhamemóriaparaessascoisasnãoé…</p><p>—Desembucha,João—disseFábio,impaciente.</p><p>—Desculpe…—edeuumsorrisoamarelo.—Bem,oRogério(onomedo</p><p>meu cliente é Rogério) diz que, em grego, a palavra usada aí é vizinho e não</p><p>próximo : “Amarás ao teu vizinho como a ti mesmo.” Vocês sabem: o Novo</p><p>Testamento foi escrito originalmente em grego, a língua franca da época. Ele</p><p>acreditaque,comatraduçãodivulgadapelasnaçõeslatinas(evocêsmedirãose</p><p>nastraduçõeseslavaséamesmacoisa),aspessoastrocaramodifícil,queéamar</p><p>o vizinho, pelo mais fácil, isto é, amar quem está perto de você, quem está</p><p>próximo, o que se costuma entender como sendo gente da própria família, os</p><p>parentes,amigoseassimpordiante.Entendem?</p><p>—Ljubibližnjegsvogkaosamogsebe—sussurroudonaDraga.</p><p>—Como?—perguntoudoutorPinto.</p><p>—Agentetambémdizpróximo, João—tornouela.—Dáprachamarum</p><p>vizinhodebližnjeg,masapalavraqueagenterealmenteusapravizinhoésusjed.</p><p>— Estão vendo? Talvez o Rogério tenha razão. Ele inclusive acredita que,</p><p>conformeaBíbliadoReiJaimefoisedifundindopelasilhasbritânicas,aprópria</p><p>línguainglesafoisendoaceitacommenosantipatiapelosirlandeseseescoceses.</p><p>Ora, eramais fácil lê-lana línguadopovodominantedoque em latim,não é</p><p>verdade?Eessaéumadasúnicastraduçõesautilizarovocábuloneighbor,istoé,</p><p>vizinho,emvezdepróximo.ABíbliadoReiJaimeédoséculoXVIIeosconflitos</p><p>nas ilhas britânicas, segundo o Rogério, teriam se reduzido à medida que a</p><p>tradução inglesa do livro sagrado foi se disseminando. Esse costume dos</p><p>americanos,essedeirreceberumnovovizinhocompresentesetestemunhosde</p><p>boa-fé,seriaumexemplovivodoqueestoudizendo.</p><p>Josif, que já esvaziara sozinho uma garrafa de vinho, agora cumulava seu</p><p>cálicecomoquerestaranaoutra:</p><p>— É tudo besteira, João! Se o mandamento de “amar o vizinho” tivesse</p><p>automaticamente esse efeito benéfico, não teria havido perseguições religiosas</p><p>nas ilhas britânicas, os puritanos não teriam fugido para fundar os Estados</p><p>Unidos,osprotestantesecatólicosirlandesesnãoteriammatadounsaosoutros</p><p>aolongodetantosanosetc.etc.Dáparapensaremmilexemploscontrários!As</p><p>pessoasnãosãorobôsprogramáveiseaBíblianãoéumsoftware.</p><p>—Masumhistoriadorpoderia realizarumaanálise estatística everificar se</p><p>essaintolerâncianãofoimaisrecorrenteempaíseslatinosdoquena…</p><p>—Chega,João!—berrouJosif,muitocorado,emitindoperdigotosquetodos</p><p>viram.—VocêestáparecendoaDrágica.Todadiscussãosériatemdeterminar</p><p>emreligião?!…Quecoisamaisinsuportável!</p><p>— Se acreditamos que Deus é o princípio e o fim, não sei por qual razão</p><p>deveríamosficarsemprenomeio…—replicouodoutor,bem-humorado.</p><p>OdoutorPintoGrandecertamentenãoestava tão embriagadoquanto Josif</p><p>Vuković.Oquesãoduastaças,afinal?Noentanto,estavaaltoosuficientepara</p><p>não conseguir prever as reações do anfitrião. Ora, ao ouvir semelhante</p><p>observação, o sérvio tornou a levantar-se de supetão e, colérico, avançou na</p><p>direção do doutor, que permaneceu sentado, impassível. Os demais convivas,</p><p>pasmados, arregalaram os olhos. Se o rosto do doutor, porém, tivesse</p><p>transparecidoalgo,teriasidomaiscuriosidadequeespanto.</p><p>Josif,obraçoemriste,apontou-lheodedoquasetocando-ononariz:</p><p>— Sabe qual é o problema de vocês que reduzem toda conversa a teologia</p><p>barata?!Vocêsnãopassamdehipócritas!Achammuito fácil encher o sacode</p><p>quem é ateu, de quem perdeu a fé, mas se arrepiam todos quando alguém</p><p>professaoutrareligião,outravisãodemundo!</p><p>—Masvocêmesmoandoufalandomaldoscatólicosedosislâmicos,capitão</p><p>— interferiuFábio, já recuperadodo susto, semdisfarçarumsorrisocínicode</p><p>quempretendiacolocarmaislenhanafogueira.</p><p>—Maseunãome finjodesanto, imbecil!—retrucouJosifaosberros, sem</p><p>desviarosolhosdodoutorPinto.—Jáesteaqui…</p><p>Fábioempalideceuinstantaneamente:imbecil!Aquelaofensalhecaíracomo</p><p>uma bomba. Luciana, de olhos arregalados, temia o pior. Dona Draga, assim</p><p>comodonaLívia,traziaumaexpressãodoridanorosto.</p><p>DoutorPintonãoestavaimpressionado:</p><p>—OsenhoreadonaDragaseimportamseeuvapearumpouco?</p><p>Aturdido,Josifarqueouassobrancelhas:</p><p>—Sevocêoquê?!</p><p>—Vapear—tornouodoutor,retirandoocigarroeletrônicodobolsointerno</p><p>dopaletó.—Eleemitevapor,nãotransformaninguémemfumantepassivo.</p><p>— Pode fumar— disse dona Draga, num sussurro. — Josif sempre fuma</p><p>charutosnasaladele.</p><p>— Fume o que quiser</p><p>— decretou Josif, num tom irritado, porém mais</p><p>brando.—Minha filha Jovankame deu um cigarro idiota desses. Joguei fora.</p><p>Coisadefrescos.</p><p>—Obrigado—disseodoutor,sorrindo.Eentãocomeçouaemitirvolutasde</p><p>vapor.</p><p>Aquela intervenção extemporâneabrindou amesa comalguns segundosde</p><p>silêncioeaparentetranquilidade.Josif,aindadepé,pareciaterperdidoofioda</p><p>meada.DonaLívia,numfiodevoz,aproveitouaoportunidade:</p><p>—Vamoembora,Fábio?Játáficandotarde…</p><p>MasFábio,queobservavaJosifcomumaangústiaodienta,pareciaacreditar</p><p>queestavaeramuitocedo:</p><p>—NãomeretiroenquantooVukovićnãomepedirdesculpas.</p><p>Josif,cheiodeindignação,arregalouosolhos:</p><p>—Oquê?!Pedirdesculpaspeloquê,homem?</p><p>—Vocêmechamoudeimbecil!</p><p>—Masvocêéumimbecil,Fábio!—eabriuosbraços,sorrindocomsarcasmo.</p><p>—Todosnaruasempretiveramessamesmaopinião.Vocêsefazdedurão,de</p><p>machomilitaresco,mastenhocertezadequeseriaoprimeiroafugirduranteum</p><p>tiroteio.Imaginoqueseriacapazdeusaraprópriaesposacomoescudo.Vocêé</p><p>uma besta, homem! Um sujeito chatérrimo. Eu nem sei por que Drágica o</p><p>convidouparaeste jantar.Ah,claro,agentecostumavaconversar…Edaí?Era</p><p>você que vinha me encher o saco com suas perguntas simplórias e</p><p>inconvenientes.</p><p>—SeuJosif…—interveioodoutor.</p><p>—Olheaqui, João—tornouoanfitrião,voltandoaencará-lo.—Vocênão</p><p>vaiusaressasuaafetaçãodeadvogadoparamedarsermões.Estouvelhodemais</p><p>paraaguentaressaxaropada.Vocêqueroquê?Espalharoamorentreosvizinhos</p><p>domundo?Quemvocêpensaqueé?Euvimparaestepaíshámaisdecinquenta</p><p>anos!Seiusarsualínguatãobemquantovocê.Nãoadiantatentarmeencantar</p><p>compalavraseconceitosdifíceis.VocêédamesmalaiaqueoFábio.Étãofrouxo</p><p>quantoele.Cadauméhipócritaaseumodo.Enquantoeleéumcovardequese</p><p>fazdevalente,vocêéumegoístaquesefazdecristão.</p><p>— O senhor parece ter certeza de que nos conhece melhor do que nós</p><p>mesmos…</p><p>—Éclaroqueconheço!Meutrabalhocomoconsultormilitarsemprefoieste:</p><p>escolher os homens certos para cada tarefa, para cada missão. Vocês dois</p><p>ficariam na retaguarda, entretidos com trabalhinhos de escritório, jamais</p><p>estariamnafrentedecombate.</p><p>Fábionãoresistiuàtentaçãodeadentrarnaqueletema:</p><p>—EntãofoiessaasuacolaboraçãoaosmassacresdeVukovaredoKosovo,</p><p>capitãoVuković?Selecionouoscarrascos?Foioarquitetodalimpezaétnica?</p><p>Josif emudeceu, o rosto lívido. Transtornado, a passos lentos porém</p><p>enérgicos,ocorpoligeiramentearqueadoparaafrente,deuavoltaàmesae,uma</p><p>vezdiantedeFábio,aplicou-lheumabofetadatãofortenorostoqueoderrubou</p><p>dacadeira.AdentaduradovelhoFábiovoouparalonge,quasealcançandoasala</p><p>devisitas.</p><p>—Joško!Oquevocê tá fazendo?!Enlouqueceu?!Chega!Chega!!—edona</p><p>Draga,indoatéeleeagarrando-opelobraço,oafastoudoantigovizinho.</p><p>Luciana,paralisadaemuda,osolhosesbugalhados,mantinhaasmãossobrea</p><p>boca. Estava em choque. O doutor se levantou, abotoou o paletó e foi ajudar</p><p>Fábioaselevantar.DonaLívia,tremendodospésàcabeça,começouachorar.</p><p>—Vamoembora…Porfavor,Fábio!Vamo!</p><p>Enquantoodoutor auxiliavaFábio a sentar-senovamentena cadeira, Josif,</p><p>atarantado,perdidoemalgumpontoentreoarrependimentoporaqueleatoea</p><p>vontadedeirmaislonge,retomouapalavra:</p><p>—Eutambémtivefé,sabiam?MasDeusmeprovousuainexistência…—e,</p><p>respirando fundo,olhouem torno.—A imprensamundial, aONU,aOtan, a</p><p>União Europeia, os tribunais internacionais, todos falam de “limpeza étnica”.</p><p>Nãohouvenenhuma limpeza étnica, caralho!…—e, nessemomento, o velho</p><p>Vuković assumiu uma expressão sombria.— Foi vingança! Pura justiça!…—</p><p>trovejou.—Ossérviossofreramperseguiçõesanosafio,maisdeummilhãodos</p><p>nossosforamexecutados,eninguémjamaispareceuseimportar.Falamsomente</p><p>doHolocausto,doscurdos,deHolodomor…Nuncaselembramdenós!Eentão,</p><p>quandofinalmentetemosnossavingança,tratam-noscomosefôssemosnazistas!</p><p>Éumabsurdo!</p><p>Enquanto fazia um gesto para que sua esposa lhe trouxesse a dentadura,</p><p>Fábio,afaceesquerdarubra,avozembargada,ababaaescorrer-lhepeloqueixo,</p><p>retrucou:</p><p>— Não adianta mudar o nome, Vuković. É assassinato do mesmo jeito.</p><p>Assassinatoemmassa.Genocídio!</p><p>Dona Draga, silente, interrogando com olhos congestionados o marido,</p><p>encarava-o, aguardandoumanegativa—quenãoveio…Elenuncacomentara</p><p>sua participação nas guerras da Iugoslávia. Após amudança para o Brasil, no</p><p>iníciodosanos1960,voltaraalgumasvezesàterranatal.Masfoiapenasnoinício</p><p>dos1990quetaisviagenssetornaram,nãoapenasmaisfrequentes,mastambém</p><p>maismisteriosas,semprerelatadas,àvolta,demaneiraoblíqua,dissimulada.Ela</p><p>não era ingênua e imaginava que omarido, como qualquer oficial reformado,</p><p>poderiaestarcontribuindodealgumaformaparaoesforçodeguerra,afinal,fora</p><p>lotado no serviço de inteligência do exército. Mas jamais imaginou que sua</p><p>participaçãohavia sido tãograve, tão lúgubre!Sim,houveoboato transmitido</p><p>porparentesarespeitodeGordan…Masnadacomoaquilo.</p><p>—Nãomeolheassim,Drágica…</p><p>Emprantos,elasedeixoudesabarnacadeira.Josifaproximou-see,portrás,</p><p>afagou-lhe os ombros. Por ummomento, sentiu-se condoído.Amava a esposa</p><p>comtodaaalma.Masentãoeladisse:</p><p>—Porquevocênãotemocoração igualaodoGavrilo?Meuirmãoeratão</p><p>bondoso,tãoidealista…</p><p>—Diabos!—exclamouele,afastandoasmãos.—Porquevocêpensaqueeu</p><p>participeidasguerras,Drágica?!FoiporcausadoGavrilo!</p><p>—Mentira!Vocêqueimavatodasascartasquerecebiadele.Cartasenormes!</p><p>Dava para sentir o envelope gordo, com certeza cheio de palavras bonitas. Ele</p><p>sempremeescreviacoisastãolindas!Eleeraumartista!Umpintor!Nãoestava</p><p>metidonessascoisas.</p><p>Josifriuumrisolouco,demente.Pareciaforadesi.Porfim,sacudiuacabeça,</p><p>revoltado:</p><p>—Draga,Draga…Sabeoqueelemeescrevia linhaapós linha,páginaapós</p><p>página? “Desertor covarde! Desertor covarde! Desertor covarde! Desertor</p><p>covarde!”</p><p>—Mentira!!</p><p>—Éverdade,dragi.</p><p>—Soutestemunha—disseFábio,ameia-voz.—Nãoentendoservo-croata,</p><p>masocapitãomemostrouumadessascartas. Isso fazquase trintaanos.Tinha</p><p>umasdezpáginaspreenchidassomentecomduaspalavras.Tavaemcirílico,mas</p><p>davapraverqueomesmogrupodeletrasserepetiadocomeçoaofim.</p><p>DonaDragachoravadesconsoladamente:</p><p>—Minhamãe…Minhamãeeracroata…</p><p>—Eseuirmãoeratãosérvioquantovocê.</p><p>—Quersaber,Josif?—gritouela,finalmente.—Eudeviaeratermecasado</p><p>com…—eentão,assustadaconsigomesma,elasecalou.</p><p>Ninguémpareciarespirar.Josifdesesperou-se:</p><p>—Ne!Ne!Ne!Ne!—bradava,quaseuivando.Seucorpo tremia,oscilava;e</p><p>logodesabouemsuacadeira,oscotoveloscontraamesa,orostoafundadonas</p><p>mãos.DoutorPinto,quecostumavareagiradequadamente,poucoimportandoa</p><p>conjuntura, não sabia se ia até ele, se dizia alguma coisa ou se aguardava o</p><p>desenrolardaquelaerupção.Josifviviaummomentodetranse,umdessesdeque</p><p>nuncanosesquecemosaolongodetodaumavida.Todospressentiamessefato,</p><p>nãohavianecessidadedequealguémocolocasseempalavras.Daíaquelesilêncio</p><p>sobrenatural…Antesquealguémtomasseumaatitude,porém,suavozretornou,</p><p>colmadadedorededesgosto:—PenseiquevocêtivesseesquecidooGordan…</p><p>Tudooque fiznavida foiporvocêepornossas filhas…Porquevoltara isso</p><p>agora?Quermematar,dragi?</p><p>—Assim comovocêmatouoGordan?Não tenho seu sangue-frio, Josif—</p><p>replicouela,entrelágrimas.</p><p>Josiflevantouacabeça,cheiodeespanto:</p><p>—Oquê?Quemlhedisseisso?!</p><p>—Eu</p><p>também recebia cartas, Josif! Sempre tive esperançadeque fosseum</p><p>boato.Masessasuacara…</p><p>Lucianafezumsinalparaomarido,queseaproximou:</p><p>—Vamosembora,João.</p><p>—Não!—gritouJosif,soberbo.—Ninguémsaidaqui!Pensamquesouum</p><p>monstro?Estãocommedodemim?Seráquenãoentendemoqueumapessoa</p><p>tem de enfrentar quando se encontra em condições terríveis, em situações</p><p>extremas?—EparadonaDraga,comumafranquezadilacerante:—Drágica,se</p><p>vocêquerrealmentesaber,sim,eumateiseunamoradodeadolescência,aquele</p><p>croatafilhoda…—e,arrependido,refreoualíngua.</p><p>Dona Draga gemia, soluçava, a cabeça pendida, asmãos emaranhadas nos</p><p>cabelosbrancos.</p><p>— Mas não foi por ciúme, mulher! Eu te amo! — disse, angustiado. E</p><p>acrescentou,súplice:—Eseiquevocêtambémmeama…Tantoseiquenunca</p><p>quis lhecontaroquerealmenteaconteceu.Entende?Mas, sevocêquisersaber</p><p>todaaverdade,eucontopravocê.Vocêquer?—Amulhercontinuougemendo,</p><p>a cabeça baixa, sem nada responder.— Foi Gordan quemmatou Gavrilo!—</p><p>continuouele.—Seunamoradinhodaadolescênciamatoumeumelhoramigo!</p><p>Oquevocêqueriaqueeufizesse?Eutambémamavaseuirmão,dragi.Gordan</p><p>estava espionando para os croatas durante a guerra de independência deles!</p><p>Gavrilodescobriutudo…Enãofoiumavingançaminha!Euapenasmedefendi!</p><p>Euestavacomseuirmãoquandotudoaconteceu.Éverdade,dragi.Eujuro!Você</p><p>me conhece… Posso ocultar muitas coisas, principalmente as que podem lhe</p><p>fazermal,masjamaisminto.Eutenhopalavra!</p><p>Toda a cena assemelhava um sonho convulso. Os convidados, atribulados,</p><p>constrangidos até o último fio de cabelo, permaneciam estáticos, como se</p><p>desejassemintimamenteainvisibilidade.AtémesmoodoutorPintovoltaraase</p><p>sentaraoladodaesposa,comquemseconservavademãosdadas,osjoelhosde</p><p>ambosatocar-se.DonaLívia,sentadaaoladodomarido,tambémseacomodara</p><p>a ele, o qual, por sua vez, descansava a face intacta na cabeça dela.Um clima</p><p>trágicopairavanoar,umaatmosferafúnebre.Aluzamareladadasarandelas,à</p><p>maneiradevelas,ocheirodasfloresquechegavadaoutrasala…tudocontribuía</p><p>paraalembrançadaquelesfantasmas.</p><p>ComodonaDraganão fizessemençãodedizeroude fazeroquequerque</p><p>fosse,Josif,erguendoosemblante,passeouoolharpelasala.Osolhosmarejados</p><p>pareciamnãonotaroscasaisunidose,desnorteado,comosedistinguisseapenas</p><p>doisconvidadosgordosnasala,procuravaosfaltantes.</p><p>—Vocês…—começouele,hesitante.Eentãoenxugouorostonamangada</p><p>camisa.</p><p>—SeuJosif,osenhorquerumcopod’água?—perguntouodoutor,solícito,</p><p>tomandoajarraeaproximando-adaextremidadedamesa.</p><p>Ovelhosérviosorriu:</p><p>—Vocêquerserumbomanfitriãoemminhaprópriacasa,João?</p><p>—Claroquenão,eusó…</p><p>—Ah,abondadecristã!—exclamouele,umaexpressãoescarninhanorosto.</p><p>— Sabe quem matou Deus para mim, João? Eu nunca contei isso ao Fábio</p><p>porqueelejánãomoravamaisaqui.Vocêgostariadesaber?</p><p>—Gostaria,claro.</p><p>Josif passou as duas mãos pelos cabelos brancos e, retesando a coluna,</p><p>arrimouascostasnoespaldardacadeira.Eentãomanteveasmãosatrásdanuca,</p><p>os dedos entrelaçados, como se estivesse a ver televisão refestelado numa</p><p>poltrona.</p><p>—VocêjáleuOssertões,doEuclidesdaCunha?</p><p>—Li,sim.Muitosanosatrás.</p><p>—Eununcali—intrometeu-seFábio.</p><p>—Foioprimeirolivrobrasileiroquemecaiunasmãos—prosseguiuJosif.—</p><p>Euolisetevezes.Nãosei,masachoqueofatodeoautortersidoumengenheiro</p><p>que projetava pontes significamuito paramim. Eu também projetava pontes!</p><p>Sim,liolivrováriasvezes.Eesporadicamentereleioalgunstrechos…Éumlivro</p><p>chato,comoaengenharia,masmaravilhosamentebemescrito!Devoaelemeu</p><p>domíniomaisaprofundadodasualíngua.Masissonãointeressa…Ofatoéque</p><p>foi esse livro queme fez perceber quão extraordinário este país é. Vocês, que</p><p>nasceram no Novo Mundo, não têm noção de como estão na borda da</p><p>civilização. Viajar para cá é como viajar para o passado. Como as ondas</p><p>concêntricasqueresultamdeumapedraatiradanasuperfíciedeumlago,ideias</p><p>antigas, abandonadas há muito nos grandes centros mundiais, aparecem aqui</p><p>tardiamente, como se fossemgrandesnovidades…Foi somente após lê-lo que</p><p>senti o quanto nós, sérvios, somos genuinamente europeus. Não estamos no</p><p>centrodacultura,masestamosnumcírculomaispróximodeledoquevocês…O</p><p>Brasil,ora…oBrasiléo fimdomundo!…—esorriu,cheiodeempáfia.—A</p><p>história doConselheiro…Ahistória dele é umahistória que aconteceu tantas</p><p>vezes na Europa!Masmuitos séculos atrás! E aqui ocorreu durante a vida do</p><p>meuavô!Ouviram?Praticamenteontem…Eu liaaquelasériederelatos, todos</p><p>verídicos, eme impressionava intensamente: umprofeta fanático que via num</p><p>determinadoregimedegoverno(nocaso,aRepública)umaaçãodoanticristoe,</p><p>por isso,clamavanodeserto,anunciandoa iminênciadeumaparúsia,àsvezes</p><p>referindo-seaSãoSebastião,ojovemreiportuguêsdesaparecidoemcombate,às</p><p>vezes ao próprio JesusCristo…O fim está próximo!—gritou Josif, rindo em</p><p>seguida.E,então,retirandoasmãosdanucaeinclinando-separaafrentecomo</p><p>quem conta um segredo, prosseguiu em tom confessional:—Mas a verdade,</p><p>meus queridos vizinhos… desculpe, ex-vizinhos… a verdade é que eu achava</p><p>toda a história uma loucura! Emedivertia à beça com ela…Eunão sei se na</p><p>juventudefuiumateuouumagnóstico.Nãopensavanisso,nãotinhaomenor</p><p>interessepelareligião.Crescinumpaíssocialistaondejamaissefalavanisso(não</p><p>sepodia!),e,quandoalgumreligiosoeramencionado,emgeralsetratavadeum</p><p>muçulmano… Enfim, Antônio Conselheiro, para mim, não passava de um</p><p>maluco…Masveiooanode1999eeu…sim,euestavaemBelgrado.Em1999!</p><p>Ou seja, alguns anos após a morte do meu cunhado e, segundo certos</p><p>desvairados,oúltimoanoantesdoApocalipse…—eJosifassumiuumargrave.</p><p>—TodosconhecemumaversãodestafrasedoConselheiro:“Atémiletantosa</p><p>doismilnãochegarás!”Umadeclaraçãomilenaristarepetidapelopopulachode</p><p>todas as partes, uma ameaça fanática que sempre me soou como uma piada</p><p>ridícula.Ora, de onde teriam tirado esse número?É claro que não passava de</p><p>umabobagem.Masem1999,enquantoaindacombatíamososkosovares,aOtan</p><p>decidiuintervir.Euhaviachegadodointeriordopaísnoiníciodemarço,e,em</p><p>finsdessemês, começaramosbombardeios.Vocêsnão conseguem imaginaro</p><p>que isso significa!Caças-bombardeiros riscandoos céusdia enoite,umacoisa</p><p>apavorante! Havia todo tipo de aeronave: F-117A, A-10, B-2, F-15, Mirage</p><p>2000N, F-16CG… E aí vinham os helicópteros Apache AH-64 e seu ruído</p><p>funesto… Se os canais de TV, antes dos ataques, alertavam sobre umpossível</p><p>conflitocomaOtan,menosdeummêsmaistardejánosentupiamossentidos</p><p>com mensagens bombásticas que (ora explícita, ora subliminarmente)</p><p>comparavamaOtanaosnazistaseaquelaguerraaoArmagedom.Apopulação,</p><p>apavorada, lutavainternamenteparanãoacreditarquerealmentesedavaofim</p><p>domundo.Ora, tudo em torno apenas confirmava que realmente o era! E os</p><p>americanostinhamessaslindasbombasdegrafite…Sabeoquefazem?</p><p>—Não.</p><p>—Eramjogadassobreasredesdedistribuiçãodeenergiaelétrica,causando</p><p>curtos-circuitoseapagõesgeneralizados.Belgradoficouàsescuraspormeses!O</p><p>paísinteiroficouentregueàstrevas…Eaí,meuscaros…Jánãohácomosesaber</p><p>oqueestáocorrendonorestodomundooumesmodooutroladodacidade!…</p><p>Asbombasde combustívelquenão funcionam, as inúteisbombas adutorasde</p><p>abastecimentode</p><p>água…Tudoissoeraumabobagemfrenteaoclimadeterror</p><p>criado pela falta de informações verdadeiras.Não haviamais TV, nem rádios,</p><p>nem telefones, nem computadores… Não havia notícias confiáveis, nem</p><p>informaçõesseguras…Apenasboatossobreboatossobreboatos!Deumahora</p><p>paraoutra,apopulaçãoabandonouoséculoXXeretornouàIdadeMédia…As</p><p>pessoas acreditavam nas coisas mais absurdas. Se alguém dizia que um disco</p><p>voadorhaviapousadoalgures,acreditavam—earregalouosolhos,enfático.—</p><p>Nãoestoudandoumexemploàtoa:issoaconteceu!Houverelatosdeaparições</p><p>deanjos,seresaladosluminosos,comformahumana,que,sememitirqualquer</p><p>som, sobrevoavam ruas e praças.Ora, nãohaviadronesnaquela época!Oque</p><p>diabos essa gente estava vendo? Ninguém sabia… Falava-se nas aparições da</p><p>VirgemMariaemMedjugorje,naBósnia-Herzegovina…Diziamentãoqueela</p><p>haviaanunciadoofimdomundoequeoestopimeraali,queaIugosláviaerao</p><p>umbigo domundo…Chegavam informações de que a Rússia havia declarado</p><p>guerracontraosEstadosUnidos! Juro!Umfalatório infernal!Rumores, lendas</p><p>urbanas instantâneas, fofocas…Mascomodistingui-losdaverdade?Nãohavia</p><p>como!Uma vez que alguém se deixava impressionar por uma dessas notícias,</p><p>ninguémmaislhetiravadacabeçaacertezadequesetratavadeumfato.Opaís</p><p>virouumpesadelo,umhospício.Amaiorpartedaspessoassósearriscavaasair</p><p>decasaparaconseguiráguaecomida.Muitosfugiamparacidadesdointerior,e</p><p>nós, que ficamos, já não tínhamos qualquer notícia deles.Mesmo osmilitares</p><p>foramadentrandoocaospoucoapouco…Parapiorar,eueraumconsultor, já</p><p>não recebia informes como os companheiros da ativa… Tratei de sobreviver,</p><p>esgueirando-medeumabrigoaoutro,sempreembuscadealgumaincumbência</p><p>oficial…Chegouomomentoemqueeujánãosabiaquaiseramminhasordens</p><p>nemaquemdeviaobedecer…Nodia2dejunho,otenenteAntonijeKasunveio</p><p>até mim e me disse que haveria uma reunião num prédio desabitado,</p><p>provisoriamenteutilizadopelaInteligência.Eraminhaoportunidadedevoltarao</p><p>círculo restrito de quem realmente sabia o que estava se passando. E,mesmo</p><p>assim, após trocar umas poucas palavras, Kasun me disse: “Vou lhe dar um</p><p>conselho, Vuković: volte para sua esposa! Era o que eu faria se fosse casado.”</p><p>Claro, eu não o ouvi… — e Josif olhou de esguelha para dona Draga, que</p><p>permanecia em silêncio, de cabeça baixa. — Enfim — continuou ele —,</p><p>aproveitandoumbreveespaçode temposembombardeios,nosdirigimosapé</p><p>para o local com duas horas de antecedência. A ideia era esperarmos pelos</p><p>demais lá. Quando chegamos, encontramos outros três oficiais que eu não</p><p>conhecia. A reunião ocorreria no subsolo, na garagem daquele edifício de</p><p>apartamentosdeseisandares.Aindanãohaviaentrenósnenhumrepresentante</p><p>do Estado-Maior… Ficamos conversando informalmente um espaço de meia</p><p>hora, tentando atualizar uns aos outros com novos dados e informações de</p><p>fontesfidedignas.Asnotíciaseramtodasescabrosas,nemvaleapenamencioná-</p><p>las… — e, impaciente, fez um muxoxo. — Dali a instantes, durante essa</p><p>conversa, de repente aconteceu: um zunido cortante seguido de uma explosão</p><p>ensurdecedora! E então pó, destroços, trevas… Quando me dei conta, horas</p><p>depois,aoacordar,apenaseueotenenteKasunpermanecíamosvivos.Masele,</p><p>além dos hematomas e escoriações, que eu também sofri, teve toda a perna</p><p>direita esmagada. Certamente também fraturou a bacia, pois qualquer</p><p>movimentolhecausavadorestremendas.Eopior:estávamospresos,entrelajes,</p><p>vigas e paredes desabadas, sem enxergar a um palmo do nariz, num cubículo</p><p>menor do que esta sala. Era nosso túmulo. E tínhamos apenas três cantis, um</p><p>sanduíchedepresunto,quatrobarrasdeTobleroneetrêslanternas.</p><p>—Agoraentendoporquevocênãovoltoumaispralá…—murmurouFábio.</p><p>Josifsorriutristemente:</p><p>— Não, você ainda não entendeu. Mas vai entender — e respirou</p><p>profundamente, emitindo em seguida um longo suspiro. E prosseguiu: — O</p><p>tenente,sabem?,eraumhomemreligioso.Quandoabrisuagandolaedesabotoei</p><p>suacamisa,paraquerespirassemelhor,noteiocrucifixoquetrazianopescoço.</p><p>Fizmençãodetocá-loeelemesegurouamão,dizendo:“Nãomeafastedomeu</p><p>escudo.”Refreeinoberçooimpulsodeumarisada:escudo?Eunãopossuíaum</p><p>escudo como aquele e estava emmelhores condições do que o pobre coitado.</p><p>Masorespeitei,erameucompanheirodetúmulo.</p><p>—Seuvizinhodetúmulo—comentouodoutor.</p><p>Josifoignorou:</p><p>—Nosprimeirosdias,gritamos loucamente,pedimossocorro,batemosnas</p><p>paredeselajescompedaçosdemetal,mas,comoresposta,nãoouvíamossenãoo</p><p>rumorabafadoedistantedeexplosões.Quandoasexplosõescessavam,osilêncio</p><p>eracompleto.Ninguémnosouviaenãoouvíamosnenhumavozhumana.Claro!</p><p>Haviapelomenosseisandaresdeconcretosobrenossascabeças.</p><p>—Vocênuncamecontounadadisso,Joško…—murmuroudonaDraga,a</p><p>vozembargadapelaemoção.</p><p>—Estoucontandoagora,dragamoja—e,metendoamãonobolsointernodo</p><p>casaco, retirou dali uma garrafinha de alumínio da qual bebeu um generoso</p><p>trago.</p><p>—Joško!Oqueéisso?</p><p>—Vodca,dragi.</p><p>—Masvocênão…</p><p>— Hoje é o dia das revelações… — declarou ele, interrompendo-a, uma</p><p>expressãomelancólicanoolhar.Entãosorriue,apósmeteragarrafinhadevolta</p><p>no bolso, continuou: — Como eu dizia, o tenente Kasun falava feito um</p><p>coroinha. Na verdade, contou-me que, não fossem as circunstâncias, teria</p><p>estudadoparaserpadre.Nosprimeirosdias,eleaindapareciadonodesi.Mas</p><p>seu ferimento infeccionou e, com isso, ele foi tornando-se cada dia mais</p><p>delirante.No início, tivemos longas conversas.Nãohaviamais nada a fazer, a</p><p>não ser confortar um ao outro. Bem… eu tentava confortá-lo. Imagino que a</p><p>intençãodeleeraamesma,masofatoéqueelefoimeenlouquecendo!—eJosif</p><p>golpeou novamente a mesa, embora com menos força. — Primeiro começou</p><p>comNostradamus.Citavarepetidamente,comoummantra,a famosacentúria:</p><p>“Noanode1999,noSétimoMês,docéuviráumgrandeReideterrorressuscitar</p><p>o Rei d’Angoulmois…” e assim por diante. Eu não entendia, e ainda não</p><p>entendo, quem seria esse rei de nome enrolado, mas já ouvira falar de</p><p>Nostradamusmuitas vezes, principalmente das centúrias que teriam predito o</p><p>adventodeHitler,chamadonolivrode“Hitter”.Minhamãediziaque,durantea</p><p>SegundaGuerra,muitos falavamsobre isso.Oscríticosdiziamqueonome,na</p><p>verdade,sereferiaaumlocal,nãoaoFührer,mas…quemdissequeopovoquer</p><p>vernegadassuasprimeiras impressões?EKasunmediziarepetidamentequeo</p><p>textodeNostradamus,emboraobscuro,nãoerrava.Comenteicomele sobreo</p><p>ditopopular:“Amilchegarás,masdedoismilnãopassarás”,eelemedevolveu</p><p>umacitaçãodoabadeGenet:“Oanode2000nãopassarásemqueojulgamento</p><p>chegue; assim o vi à luz de Deus.” Ele me falava esse tipo de coisa e eu ia</p><p>anotandonomeucaderninho,deinício,comaintençãodepassarotempo,mas,</p><p>quandoviqueprecisávamoseconomizarpilhas,anotavaporpuraobsessão.Eele</p><p>tinhasempreumsonocomprido,agitado,que invariavelmente terminavanum</p><p>despertar pânico. E, aliviado (imaginem, ele se sentia aliviado por acordar</p><p>naqueletúmulo!),merelatavaemseguidasonhosterríveisqueelejuravaserem</p><p>visõesdomundoexterior.Quandoestavamaissereno,emitiasualadainha,que</p><p>semprese iniciavacomamesmafrase:“Vou lhedarumconselho,Vuković…”</p><p>Sim, a mesma frase usada para me aconselhar a voltar para minha esposa.</p><p>Repetiatanto</p><p>issoquecomeceiachamá-lode…Conselheiro!Vocêspercebema</p><p>ironia da situação? Eu só me dei conta meses depois! O tenente se chamava</p><p>AntonijeKasun,eAntonijeéa formasérviadeAntônio!Kasunvemdoeslavo</p><p>kazac ,que significa “ordenar, comandar, aconselhar”…O tenente foipoucoa</p><p>pouco me transformando num seguidor de Antônio Conselheiro! — e Josif</p><p>tremeu, os olhos congestionados pela emoção.—Com o tempo, a intimidade</p><p>forçada o fez apelidar-me de Vuk, que significa “lobo”. Na verdade, meu</p><p>sobrenome, Vuković, não é um patronímico, como pode parecer a princípio.</p><p>MeupainãosechamavaVuk,masVlado.Nós,sérvios,temossobrenomescomo</p><p>esse…Mas,paraefeitosdramáticos,digamosassim,écomosemeunomefosse</p><p>JoséFilhodoLobo:JosifVuković.Eotenente,agora,mechamavadeVuk.</p><p>Esse comentário deixou o doutor Pinto de respiração suspensa: lobo!</p><p>Lembrou-seinstantaneamentedoseuvizinho,obêbadoFrancisco:ohomeméo</p><p>lobodesimesmo.</p><p>—Omaisdesesperadordaquelesdiasnãofoisimplesmenteaincertezadeum</p><p>resgate,mas, sim,omundo imaginárionoqualpasseiaviver.Eoengraçadoé</p><p>queessemundo foi se tornandomais realparamimàmedidaqueocheirode</p><p>podridão se apossou do nosso túmulo. Os cadáveres dos oficiais mortos,</p><p>soterrados à nossa volta, assim como o ferimento do tenente, exalavam um</p><p>miasmaque,somadoaofedordenossaspróprias fezeseurina, tornavaamera</p><p>respiração um martírio… Não há como descrever nosso tormento… Três</p><p>semanasmais tarde, e eunem sei semeu relógio era exato, já que sempreme</p><p>esquecia de lhe dar corda, eu já estava de joelhos rezando o pai-nosso em</p><p>uníssonocomoConselheiro.Acreditam?Eu!Atéentãoumateuconvicto!Em</p><p>cincosemanas,elemefezembarcarcompletamentenomundoquehabitava…E</p><p>sabemcomoeraessemundo?</p><p>—Nãofaçoideia—respondeuFábio.</p><p>—Voutentarresumir—eJosifseaprumounacadeira.—Asvisõesdediscos</p><p>voadores, para nós, já não eram boatos, eram reais. Mas não eram naves</p><p>materiais.Eramanjos transportadores,naves inteligentes, autoconscientes,mas</p><p>imateriais, e por isso podiam viajar mais rápido do que a velocidade da luz.</p><p>Espíritoseanjosdeoutrasclassesvinhamdeesferasdivinasabordodessesanjos</p><p>de transporte. Os supostos anjos avistados por algumas testemunhas, de</p><p>dimensõesmenores se comparados aosdiscos, eramapenas anjosde fato.Nós</p><p>vivíamosoApocalipse,eosilêncioqueentãoimperava,passadasduassemanas</p><p>de cativeiro, indicava que o Armagedom havia chegado ao fim. O tenente</p><p>Conselheirodizia (e vocêspodemrir, sequiserem,nósdoisnão ríamos),dizia</p><p>que, em uma de suas visões, havia divisado Jesus, em forma gigantesca, a</p><p>caminharpelaTerraàvistadetodostalcomoamãedopersonageminterpretado</p><p>peloWoodyAllennofilmeContosdeNovaYork.Elemeexplicavaascenasdesse</p><p>filme em tom sério, mas, como nunca gostei desse diretor, não vi mesmo</p><p>nehuma graça. O personagem doWoody Allen tinha uma fixação paranoico-</p><p>edipianapelamãe,quesempresurgiaenormenocéudeNovaYork,dando-lhe</p><p>broncasefazendo-opassarvergonhadiantedapopulaçãointeira,quetambéma</p><p>via…Algoassim.</p><p>O doutor e Luciana, que admiravam o humor desse diretor, sorriram</p><p>discretamente. Os demais permaneceram estáticos. Josif aproveitou o ensejo e</p><p>tomououtrogoledevodca.Emseguida,notandoquetodospermaneciamnum</p><p>estadodelegítimosuspense,aguardandosuanarrativa,prosseguiu:</p><p>—O fato é queKasun esmiuçou paramim toda a sua teologia, toda a sua</p><p>visãodemundo,e,comotempo,elassetornaramminhas.Suacosmologiaera</p><p>intrincadademaispara eu conseguir resumi-la empoucaspalavras…Era,hoje</p><p>vejo,umainsanidade!Umamisturadeficçãocientíficacomcristianismo…Basta</p><p>dizerque,paraele,oParaísoexiste literalmentenocentrodoCosmos,oúnico</p><p>pontoestáticodarealidadematerial,equetodasasgaláxiasgiramaoseuredor…</p><p>Nãoireimaislonge…—esacudiuacabeça,comoquemtentaselivrardeuma</p><p>márecordação.—Enfim,eleseenfraqueciadiaapósdia,ainfecçãoeasfebreso</p><p>consumiam,eeuacreditavaquetodoaquelesofrimentoofaziamaissanto,mais</p><p>puroeverdadeiro.Sim,porque,quantomaispróximodamorte,maisserenidade</p><p>e luzhaviaemseurosto.Seus sonhos,queele insistia seremvisões reais, eram</p><p>cada vez mais nítidos, mais cheios de detalhes. Viu Jesus condenando os</p><p>governantes e poderosos da Terra, e atirando-os ao Inferno. Viu toda a</p><p>destruição causada no mundo pelas explosões nucleares resultantes da guerra</p><p>entreEstadosUnidoseRússia…Sim,paranós,oconflitomaistemidodoséculo</p><p>XXjáhaviaocorrido!Ora, jáestávamosno iníciodoSétimoMêsde1999!!Eu</p><p>rezavaotempointeiro,tratavameucompanheirocomomaiordesprendimento,</p><p>fazia-o mastigar pedaços de chocolate, dava-lhe de beber à boca… Eu lhe</p><p>confesseimeuspecados!“ConfesseparaDeus”,diziaele.Maseuinsistiaemlhe</p><p>contar tudo, incluindooque fizeranoKosovo…—e Josif tornouaenxugaro</p><p>rostonamangadacamisa.—Etambémaguardavanossamorte,né…Nofinal</p><p>daquela quinta semana, porém, eu estava encolhido a um canto, dormindo, e</p><p>então fuidespertado repentinamenteporumestampido seco,violento.Corri a</p><p>mãoàminhavolta,acendialanterna,olheiemtorno.Sentiocheirodepólvora.</p><p>Assustado,fuiatéKasun,queaindatinhaaMakarovnamãodireita.Sim,havia</p><p>dadoumtironocoração!Eescreveraumanotadesuicídioquediziaapenaso</p><p>seguinte:“Chegadegastaráguaealimentocomigo,irmãoVuk.Voulhedarum</p><p>últimoconselho:sobreviva.”</p><p>Dona Draga chorava de mansinho em sua cadeira. Dona Lívia e Luciana</p><p>tinhamosolhosmarejados.Fábioestavaliteralmentedebocaaberta.</p><p>—Equandoosenhorsaiudelá,seuJosif?—indagouodoutor.</p><p>—Euaindafiqueinaqueleburacomaisunsdezdias.Fuiresgatadonodia20</p><p>dejulhode1999.Eopróprioresgatefoiumchoqueparamim.Nãoesperavasair</p><p>dali vivo. E o último resquício de misticismo começou a morrer em mim</p><p>quando,ouvindoobarulhoevendotudoquererdesabarnovamente,umatampa</p><p>se abriu eo céuvoltoua iluminaro interiordonosso túmulo.Euestavameio</p><p>dormido, meio acordado, o chocolate havia acabado dias antes e só restavam</p><p>alguns goles d’água. A fraquezame obrigava a dormir quase o tempo inteiro.</p><p>Nem sequer me dera conta dos primeiros sons externos, quando então</p><p>começaramaremoverasruínasdoedifício.Aoolharparacima,eujuravaestar</p><p>diantedamãodo gigantesco Jesus, descritoporKasun, a levantarumenorme</p><p>pedaçodelaje.Eumeajoelhei,agradecido,emurmurandomeuspecados.Mas,</p><p>observando melhor, vi que se tratava simplesmente do braço de uma</p><p>escavadeira…Homens surgiram de todos os lados, perguntavam como eume</p><p>sentia,emecolocaramnumamaca.Euosolhavacomestranheza,perguntandoa</p><p>mimmesmo:ondeestãoosanjos?Porqueagemcomoseavidafosseamesma?</p><p>Eatristeverdadeéqueavidaeraamesma…—eJosif,comumardegrande</p><p>decepção, fezumesgar.—Empoucashoras fuirecebendotodasasnotíciasde</p><p>relevo: o ataquedaOtan terminaranodia 10de junho, a Iugoslávia estavade</p><p>joelhos,orestantedomundocontinuavadepé…</p><p>—MasquandoDeusmorreuparaosenhor?—tornouodoutor.</p><p>—Uê,João,nãoentendeuainda?Euexperimenteiempoucomaisdeummês</p><p>de trevas o mesmo que as pessoas experimentam nas trevas deste mundo ao</p><p>longo de toda uma vida! Eu vivi omicrocosmos daquilo que todos os crentes</p><p>vivem:uma realidade ilusória cujo fiméunicamentemanter acesaa esperança</p><p>em meio à merda fedorenta desta vida! Mas… esperança de quê?! De nada,</p><p>porque</p><p>nãohánada,omundoée sempre seráomesmo.NãoháDeusalgum,</p><p>rapaz!Estamos sozinhos.Muitos repetemYuriGagarin: “ATerra é azul.”Mas</p><p>sabe o que ele realmente disse?— e declarou em tom oficial:— “O espaço é</p><p>escuro,muitoescuro.EaTerraéazul.NãohánenhumsinaldeDeusaquiem</p><p>cima.”</p><p>—Issoépropagandasoviética,seuJosif.Dizemqueessefinaléumadendode</p><p>Kruchov.</p><p>— E que me importa? A analogia é perfeita! Acredite em Deus o quanto</p><p>quiser,mas,quandocolocaracabeçaparaforadotúmuloqueéaTerra,vocênão</p><p>vai encontrar senão rochas, hidrogênio e poeira interestelar.De que serviu ao</p><p>pobredoKasun toda essababoseira?Hoje, acreditopiamenteque ele ocultava</p><p>suacovardiasobahipocrisiadafé:nãosematouparaqueeutivessemaiscomida</p><p>e água,mas porque já não suportava o sofrimento.Onde já se viu um cristão</p><p>suicida?Vocês,religiosos,nãovivemdizendoqueessesfanáticosdotipodoJim</p><p>Jones não passam de heréticos? O tenente Kasun era tão hipócrita, egoísta,</p><p>iludidoefracoquantovocê—eJosif,exausto,voltouaseservirdavodca.</p><p>— Bom — replicou o doutor Pinto, pensativo —, ninguém se transforma</p><p>numapessoaperfeitaapenasporaceitaraboa-novadoCristo.Dá trabalho ser</p><p>cristão.Tantotrabalhoquantoinventarumnovoalfabetoapenasparatransmitir</p><p>aspalavrasdeCristo,talcomofizeramSãoCiriloeSãoMetódio…Édaíquevem</p><p>seu alfabeto, como o senhor bem deve saber… Enfim, é muito difícil ser um</p><p>cristão.Asresponsabilidadesaumentam,muitaculpavemàtonadaconsciência,</p><p>éprecisoaprenderaperdoar-se,aperdoarosdemais,aamarseusvizinhos…</p><p>—Essaconversadevizinhos…—retrucouJosif,irritado.—Apostoquevocê</p><p>mesmolargariafacilmenteumvizinhoemdificuldadesapenasparaircorrendo</p><p>babardeamorporumpróximoaquemconhecemelhor.Étudohipocrisia.</p><p>EssaspalavrascalaramfundonodoutorPinto.Arespostaautomáticaquelhe</p><p>vieraàcabeçasereferiaàvizinhamuçulmanadeJosifemBelgrado,aquelaqueo</p><p>alimentara na infância. Pretendeu dizer ao anfitrião que ela é que era sua</p><p>verdadeira“próxima”,nãoomaridoviolentodela,mas…masofatoéqueJosifo</p><p>fez pensar em Francisco — e o doutor então emudeceu. Por um momento,</p><p>pensou que teria tido mais sucesso conversando com seu atual vizinho, um</p><p>bêbadomanso,quecomessevirulentoex-vizinho,aquem,defato,considerava</p><p>maispróximodesi,umavezqueJosif,aindaqueindiretamente,fizeraparteda</p><p>suaprópriainfância.Talveztivesseoptadoerroneamentepelopróximo,oupelo</p><p>bêbado,“maisfácil”.</p><p>—OlimitedohomeméaoportunidadedeDeus,seuJosif—disseporfimo</p><p>doutor,numtomconclusivoecansado.</p><p>—Besteira!—repostouosérvio.—Comojádisse,ultrapasseitodososmeus</p><p>limites e nenhum Deus aproveitou a oportunidade. Se você quer bancar o</p><p>religioso,porquenãofazcomoessebandodeintelectuaisfrescoseabraçaesse</p><p>esoterismo barato pseudocientífico de que falam por aí? Como se chama o</p><p>sujeito?FritjofCapra?Enfim,pelomenosessaturmanãomenteafirmandoque</p><p>háumDeus.</p><p>Lucianaapertouobraçodomaridoelhedisparouumolharsignificativo.</p><p>— É, está tarde…— disse o doutor, com bonomia. —Melhor a gente ir</p><p>embora,né,amor?—e,apóslevantar-se,soboolharvigilanteeirascíveldeJosif,</p><p>aproximou-se de dona Draga. A vizinha, sentada, recebeu o beijo cheia de</p><p>constrangimento,masretribuiucomdoçura.Eleentãoseaprumou,cordial:—</p><p>Queroagradeceraosdoispeloexcelente…</p><p>— Covarde! — rosnou Josif, entredentes. — Nietzsche estava certo: o</p><p>cristianismoéareligiãodoscovardesedosfracos.</p><p>—Joško,chega!—censurou-oaesposa,numlamentocheiodeagonia.</p><p>— Dona Draga, se a senhora precisar de qualquer coisa, basta entrar em</p><p>contato.</p><p>Josif,furioso,oolharesgazeado,levantou-sedesupetão:</p><p>—Vocêestásugerindoquesouumperigoparaminhaprópriaesposa?!</p><p>Odoutorsorriu,admiradodaquelaintervenção:</p><p>—Claroquenão,seuJosif!Eumerefiroaquestõeslegais,relativasaoimóvel</p><p>que vocês…—mas não conseguiu concluir: JosifVuković lhe dera uma forte</p><p>bofetadanorosto!</p><p>—Eagora,João?Vaimemostraraoutraface?!—tornouosérvio,iracundo.</p><p>—Vai,meprovequeéumbomcristão!</p><p>Dona Lívia e o marido, que também haviam se levantado, pareciam duas</p><p>estátuasdesal.Atônitos,muitopálidos,nãosabiamsepartiamsemdespedidas</p><p>oumaiores satisfaçõesou sevoltavama sentar-se.Aquilo tudoexorbitava suas</p><p>cabeças. Luciana, que cumprimentava dona Draga com um beijo no exato</p><p>momentodabofetada,tendopercebidodelaapenasosom,estremeceu.</p><p>—Ocristianismonãoéparacovardes,seuJosif—retorquiuodoutorPinto,</p><p>dono de si.— É para pessoas de caráter. E o autocontrole, a temperança, é a</p><p>medidadocaráterdeumapessoa.</p><p>—Querdizerquenãotenhocaráter?!</p><p>— O senhor está agindo como um vuk. Não é esse o nome? Vuk? Isso é</p><p>comumàspessoasque,tendoacabeçacheiadequestõesmalresolvidas,bebem</p><p>sem medida. Agem como lobos, seguindo unicamente seus impulsos e seus</p><p>instintosmaisbaixos.Abebidaéparaquemsabebeber.</p><p>Josif,numátimo,deuoutrabofetadanodoutor,destavezemsuafaceoposta:</p><p>—Sabeporquevocênãovaireagir?—rosnouVuković.—Nãoéporqueseja</p><p>cristão:masporestardesarmado!Temmedodeenfrentaralguémmaiordoque</p><p>você,alguémmaisforte.</p><p>OdoutorPintodesabotoouopaletóefezmençãodetirá-lo,masfoiimpedido</p><p>porLuciana,que, temendoasconsequênciasdoquepoderia sobrevir,puxou-o</p><p>pelamão,arrastando-orapidamenteatéasaladevisitase,dali,àportadafrente.</p><p>—Chega,João—disseela,amãonamaçaneta.—Agentejánãotemmais</p><p>nadaprafazeraqui.Essehomeméimpossível,nãotemargumentoquechegue.</p><p>Nãootentecomissoaí.</p><p>Saíram. Foram seguidos imediatamente pelo outro casal de ex-vizinhos. O</p><p>céu ainda estava nublado, mas já não chovia. Na rua, com palavras amáveis,</p><p>porémconfrangidas,despediram-sedeseuFábioededonaLívia.Nãoforauma</p><p>noitecomum.Entraram,pois,emseusrespectivoscarrosepartiram.</p><p>*</p><p>Dentro do Fox, durante os primeiros cinco minutos, o doutor e a esposa</p><p>permaneceram num silêncio banhado de adrenalina. Iam no sentido do rio</p><p>Pinheiros, seguindo a Vicente Rao, a mesma avenida que dá no Morumbi</p><p>Shopping. O asfalto molhado, coberto aqui e ali de muitas poças d’água,</p><p>reverberavaa iluminaçãopública,deixandoacidademenos feia,mais familiar.</p><p>Contudo, isso não lhes trazia qualquer consolo. Apesar da estranha excitação,</p><p>nadadisseramantesdechegaràavenidaSantoAmaro,aqualtomaramapósum</p><p>retornonaRoquePetroniJúnior.</p><p>—Sabe o quemaisme chateia?—disse finalmente o doutor, rompendo o</p><p>silêncio.</p><p>—Oquê,amor?</p><p>—Nuncavoudescobrirqueméque rasgava asbolasque caíamnoquintal</p><p>dosVuković…</p><p>Lucianasorriu,eessesorrisodenunciavacertoalívio:</p><p>—Apostomeus cabelos que era o coitado do seu Josif— acrescentou ela,</p><p>divertida.</p><p>—Nãosei.Achoqueabolavoltavarasgadamesmoquandoelenãoestavalá.</p><p>Emtodocaso,seoculpadonãoeraocachorro,erasemdúvidaumdoslobosda</p><p>casa…</p><p>—DonaDragapareceboazinha.</p><p>—Parecerparece,masvocêprecisavaouvi-lagritandocomasfilhas…</p><p>Emseguida,abordaramtemasmais leves,queosentretiveramatéaesquina</p><p>da rua onde moravam, na qual entraram por volta das dez da noite. Antes,</p><p>porém,queparassemdiantedoportãodecasa,viramumaazáfamadecarros,de</p><p>curiososedeluzesnaesquinaoposta.HaviainclusiveumaambulânciadoCorpo</p><p>deBombeiroseumaviaturadaPolíciaMilitar.</p><p>—Oqueseráqueaconteceu?—indagouLuciana,apreensiva.</p><p>—Parecequetemdoiscarrosbatidos—disseodoutor,esticando</p><p>opescoço.</p><p>—Vamosentrarprimeiro—acrescentou,abrindooportãoeletrônico.</p><p>Edepoisdesaíremdocarro:</p><p>—Vê se tá tudo bem com a Elisa, Lu. Vou lá na polícia perguntar o que</p><p>aconteceu.</p><p>Luciana entrou em casa e o doutor desceu a rua em direção ao acidente</p><p>automobilístico.</p><p>*</p><p>Quinzeminutosmais tarde, Luciana estavana sala com a filha, que assistia às</p><p>cenas finais de um filme naNetflix, quando o doutor abriu a porta da frente:</p><p>estavacabisbaixo,comumardecompletadesolação.Lucianaseassustou:</p><p>—Oquefoi,João?</p><p>Odoutorafitoucomolhoscansados:</p><p>—OFranciscotentousematar.</p><p>—Oquê?!—disseramasduassimultaneamente.</p><p>—Obêbado?—acrescentouafilha.</p><p>—Nossovizinho,Elisa—retrucouodoutor.</p><p>—Nossovizinhobêbado,né?—devolveuaadolescente.</p><p>—É,Elisa,é!—anuiuLuciana,contrariada.Eela,quejáestavadeshortinho</p><p>ecamiseta,cruzouaspernassobreosofá:—Etodosaquelescarros,amor?</p><p>—Ele se jogouna frente de uma van que entrouna rua a toda.Umoutro</p><p>carrobateuatrásdela.</p><p>—Nãofoiacidente?Vaiqueelesóqueriaatravessararua…</p><p>Odoutorsuspirou,arqueandoassobrancelhas:</p><p>—Amãedelequeracreditarnisso.Maselamecontouqueeletinhaacabado</p><p>desairdecasadizendoqueiria“caçarumlobo”.</p><p>—Umlobo?!Comoassim,João?</p><p>—Ah,meuamor…Coincidências…coincidências…</p><p>—Seráqueeleescapa?</p><p>— Não sei. Está inconsciente, a cabeça meio aberta. Já foi levado pela</p><p>ambulância.</p><p>—Credo!—exclamouElisa.—Porquevocêsestãocomessascaras?Étriste,</p><p>muitotriste,mastodomundojásabiaqueissoiaacabaracontecendo.</p><p>Lucianaolhouparaomaridoepercebeuqueeleestavaaindamaistocadodo</p><p>quetransparecia.Eelaentãovoltou-separaafilha:</p><p>—Elisa,acompaixão,oamorpelopróximo,casovocênãofecheseucoração</p><p>numaredoma,aumentamcomotempo,viu?</p><p>—Oamorpelopróximopeganotranco—rematouodoutor,introspectivo.</p><p>— É uma graça. Aja como se amasse, e um dia o amor vai aparecer. E,</p><p>principalmente, não faça o que eu fiz hoje à tarde: na hora H, não troque a</p><p>caridadeporpapo-cabeçasobreoamor.</p><p>A filha sorriu com uma expressão simultaneamente risonha e pensativa,</p><p>como se dissesse: “Tá bom, galera, já entendi.” E, não sem certa ironia,</p><p>acrescentou:</p><p>—EntãoagentepodetreinaresseamorcomoseuBritoaídolado.Elejogou</p><p>um copo de vidro cheio de cinza de cigarro e cerveja choca na nossa área de</p><p>serviço!Temcacodevidropratudoquantoélado…Achoqueeletavafumando</p><p>noquintaleadonaSílviajáiapegandoelenoflagra.Queraiva!Sujoualgumas</p><p>roupaslánovaral.Minhablusabrancajáera.</p><p>—Ai,ai…—resmungouLuciana, resignada.E, jádepé,dirigiu-separaos</p><p>fundosdacasa.</p><p>O doutor Pinto, entrementes, e sem nada comentar a respeito desse novo</p><p>incidente, desabotoou o paletó e o colocou no espaldar de uma cadeira. Em</p><p>seguidadesafivelouocoldreedepositouapistolaGlock42sobreamesa.</p><p>—Nossa,pai,vocêsaiarmadoatéprairjantarcomseusamigos?</p><p>—Claro,meubem—respondeuele,sorrindotristemente.—Estemundoé</p><p>umaselva.</p><p>ASatoshioqueédeSatoshi(somenteparanerds</p><p>egeeks)</p><p>Naquele dia, o doutor João Pinto Grande permaneceu apenas três horas no</p><p>escritório. Logo de manhã, sua secretária, que conhecia bem a inaptidão do</p><p>patrão para com aplicativos de agenda, voltou a lembrá-lo, quando da sua</p><p>chegada,dequetinhaumalmoçomarcadoparaas12h30comumvelhoamigo,</p><p>oodontólogo aposentadoMárcioBarros.Odoutor, pois, reuniu-se comPaulo</p><p>César, seu jovem sócio, e passou as horas seguintes orientando-o sobre dois</p><p>diferentes processos em andamento. Discutiram vários pontos e, por fim,</p><p>decidiram quais seriam os próximos passos. Por volta das 11h40, o doutor já</p><p>estavaacaminhodoalmoço.ChegaraobairrodoParaíso,àquelahoradodia,ea</p><p>partirdeSantoAmaro,eraumdessesdesafiosquesóotrânsitointensoecaótico</p><p>deSãoPaulopodiaproporcionar.</p><p>—Ô,seuvelhoidiota!Esperasuavez,meu!</p><p>Odoutor,apesardejamaisterbatidoocarro—nuncasearriscavaalémdo</p><p>sensato —, dirigia da mesma forma arrojada de sempre, mas continuava se</p><p>impressionandocomasofensasdaquelesquetêmseusinstintosmaisprimitivos</p><p>despertosemmeioao tráfego.Destavez, foioepíteto“velho”quecolocousua</p><p>cabeça à roda. Quando criança, realmente sentia-se um velho, pois jamais</p><p>conseguiaentenderocomportamentoerráticodasdemais crianças.Sempre foi</p><p>dotipoquepensatrêsvezesantesdeagir,quelêtodoomanualantesdeutilizar</p><p>qualquerartefato.Eagora, justamentenotrânsito,únicoambientenoqualnão</p><p>agia senãopor instinto,nãocomoumimprudenteNeandertal,mascomouma</p><p>criança resoluta— há muito percebera que, nesse ambiente dinâmico, o faro</p><p>bem temperado apresenta soluçõesmelhores do que as da razão—, agora era</p><p>chamadode“velho”.Oquedizer?Defato,seuscabelosgrisalhosjádenunciavam</p><p>queestavaalémdomeioséculodeidade.Quantoao“idiota”…ora,pensavaele,</p><p>quemnãoé,nosentidogregodotermo,umidiotanotrânsito?Claro,poisquem</p><p>nãoémotoristadeônibus,de táxi oudeUber, isto é, ummotorista comuma</p><p>funçãopública,ésemprenecessariamenteum“motoristaidiota”,ummotorista</p><p>privado, solitário emseuveículo e emseuspensamentos. Sim,odoutor estava</p><p>sempreinventandorazõespararelevaragrosseriadopróximo.</p><p>—Ai,ai…—esuspirava,ignorandoprovocações.</p><p>Umahoramaistarde,aochegaràruaAbílioSoares,odoutorteveasortede</p><p>sedeparar comumavaga recém-liberada,naqual logo estacionouoSiena.Na</p><p>calçadaaolado,sobumtoldo,haviaumamesacompridacomalgunsvoluntários</p><p>asolicitardoaçõesparaumorfanatodaperiferia.DoutorPintoabriuacarteirae</p><p>notouquenãotrazianotas,moedasoucheques,masapenasumcartãodecrédito</p><p>e outro de débito.Desculpou-se e anotou o telefone do orfanato, prometendo</p><p>procurá-losnoutraocasião.Faziamuitocalor,epermanecersobosol,depaletóe</p><p>gravata,sópoderiaresultaremdesidrataçãoesuplício.Jáqueraramenteandava</p><p>armadoduranteodia,simplesmenteretirouopaletó,pendurou-onoantebraço</p><p>esquerdo e caminhou até a pizzaria sugerida pelo amigo, onde escolheu uma</p><p>mesadaqualpoderiaobservararua.Imaginandoqueaconversavindoura,com</p><p>todasassuasrecordações,novidadesediscussõespolíticasaseremengendradas,</p><p>haveria de se estender, pediu um chope: sexta-feira, sol de rachar o chão,</p><p>expediente cancelado… por que não? Como em qualquer restaurante que se</p><p>preze,abebidaveiorapidamente:sim,paraosrestaurantesebares,nãohánada</p><p>melhordoqueacarteiradeumfreguêsalcoolizado.</p><p>Copoàmão,olhandoemtorno,odoutorPintonotouquechegaranahora</p><p>certa:agoraorestaurantejáseiaentupindodegente,minimizandoasopçõesde</p><p>boasmesas.Oaromadiferenciadodaspizzasjáseespalhava,orumordevozes</p><p>descontraídas, casuais e desencontradas já se erguia, indicando que o</p><p>estabelecimentocertamentepossuíafreguesesfiéisesatisfeitos.Namesaaolado,</p><p>umcasal visivelmenteapaixonado riadealgumacoisaqueamoça indicavana</p><p>teladocelular.Atrásdodoutor,numamesavaziaquandodesuachegada,havia</p><p>agora um sujeito de traços orientais que falava fluentemente em inglês ao</p><p>telefone.Namesaemfrente,umgrupocriticavaamanifestaçãopolíticadodia</p><p>anterior, na qual radicais de esquerda haviam depredado prédios comerciais e</p><p>bancosdaavenidaPaulista.“OBrasilestáflertandocomaguerracivil!”,insistia</p><p>umdeles.Odoutorentãochecouorelógiodepulso:12h35.</p><p>—DoutorGrande!—disseMárcioBarros,tocando-lhedesúbitooombro.—</p><p>Vocêdeveseraúltimapessoadomundoanãoverahoranocelular.</p><p>— Barros,</p><p>— movi a cabeça</p><p>afirmativamenteeelecontinuou:—Equaléaprofilaxiarecomendada?Qualo</p><p>remédio sugeridoporPaulo?Queohomemseja capazde literalmentedar sua</p><p>vida para proteger a esposa e que esta seja capaz de submeter seu ego ao do</p><p>marido.Emoutraspalavras:oentendimento,quebuscaaverdade,sabequedeve</p><p>protegeroamor,queéaessênciadavontade.Ora,oamorémaisvaliosodoque</p><p>a verdade! Mas o amor, que é cego, deve deixar-se guiar pelo entendimento</p><p>semprequehouverumimpasse.Percebe?</p><p>—Maisoumenos.</p><p>—Trocandoemmiúdos:quandohouverriscodevida,éavidadamulherque</p><p>deve ser poupada, ao passo que o homemdeve se sacrificar por ela, tal como</p><p>numnavioqueafunda,outalcomoaquelesnamoradosque,numtiroteiodentro</p><p>dumasaladecinemanosEUA,pereceramaoprotegersuasnamoradascomseus</p><p>próprioscorpos.</p><p>—Nãodiscordo.</p><p>—Jáamulher,semprequeocasalestiveremdesacordocomalgumaquestão</p><p>importante, quando todos os argumentos estiverem na mesa e mesmo assim</p><p>aindahouverumimpasse,deveconfiarnadecisãodomarido,poisédeleovoto</p><p>deMinerva.Muitasvezes,adecisãodelenãoseráoutrasenãoseguiroconselho</p><p>dela. Pois realmente há uma intuição feminina. Todos os antigos generais</p><p>consultavam oráculos. A mulher, por ser mais intuitiva, mais sensitiva, é o</p><p>oráculodohomem.Maséelequemtemdebateromartelo.Ora,paraela isso</p><p>deveria ser um alívio, não uma humilhação! Ele está pegando para si a</p><p>responsabilidadedeumpossívelfracasso.Mas,aolongodasúltimasdécadas,as</p><p>feministas estão conseguindo destruir até mesmo a intuição feminina. Elas a</p><p>estão substituindo por raciocínios rasos e conselhos toscos, desses que</p><p>encontramos nas revistas e blogs femininos: “a fila anda”, “cavalheirismo é</p><p>machismodisfarçado”,“nãoolheparatrás,esqueçaseuex-namoradomachista”,</p><p>“adiferençadegêneroéumaimposiçãosocial”,“primeiroacarreira,depoisseu</p><p>homem”,“nemtodamulherserealizacomamaternidade”,“meucorpo,minhas</p><p>regras”,“mantenhaoqueixoerguido, jamaissesubmeta”,“avidadetodadona</p><p>de casa é deprimente” e assim por diante. Um monte de bobagens</p><p>pseudointeligentesemitidasporuniversitáriasquenãoentendemabsolutamente</p><p>nadadas almasmasculina e feminina.Por que amulhernãopoderia aceitar a</p><p>sançãomasculina? Seohomemseria capazde entregar aprópria vidapor ela,</p><p>por que ela não poderia vez ou outra deixar o orgulho de lado e sacrificar a</p><p>vaidadedoseuprópriointelecto?Éassimqueumcasalsadiofunciona,efoieste</p><p>oerrodeEva: tomardecisões importantessemconsultarAdão!Eofeminismo</p><p>pretende justamente destruir essa dinâmica, ele quer não apenas exaltar o</p><p>orgulhodamulher,mastambémtorná-laegoístacomoumhomemimaturo,o</p><p>que,paraamulher,significa:torná-lainfértil.Elasatéjásaemporaítendosexo</p><p>casual, como se não fossem as mais prejudicadas no caso de uma gravidez</p><p>indesejada ou de alguma doença estranha. Elas querem fazer sexo como se</p><p>fossemanimaismachos.Ecomooshomensrespondematudoisso?Sendoainda</p><p>mais egoístas! E o pior: muitas vezes eles se tornam tão orgulhosos quanto</p><p>meninasadolescentes,tornam-sefemininos!…—esorriu.—Vocêmeolhacom</p><p>essacaradeespanto,Yuri,masocasoéqueeuseicomoqueumasociedadesãse</p><p>parece.Ametafísicaestáportrásdetudo,atédaciência.Econtraumapremissa</p><p>metafísica verdadeira não há física que dê jeito.Mesmo que eu não concorde</p><p>com as justificativas dadas, principalmente pelos devotos do Pai Celestial, o</p><p>importanteéquereconheçoaexistênciadeumanaturezahumanaeseiqueelase</p><p>vingadaquelesquesevoltamcontraela.</p><p>—Que é justamenteoque vocêpretende fazer: voltar-se contra anatureza</p><p>humana…</p><p>Eleriu,moveuassobrancelhasexpressivamente—comoquemdiz“poisé”</p><p>—eentão,inclinandoacabeçaparatrás,jogouacachaçainteiranagarganta.</p><p>—Claroquevocêirámeexplicaroporquêdisso…</p><p>—Sim—disseele,fazendoumacaretadesatisfaçãoeestalandoalíngua.—</p><p>Eucostumoviraquiporcausadacachaça.OpaidoRonaldo,odonodobar,tem</p><p>umadestilarialápertodeSantaBárbarad’Oeste.</p><p>Eu sorri, fazendo cara de “hum, que interessante”, mas estava mesmo era</p><p>esperando o desdobrar do assunto principal. Enquanto Nathan, em silêncio,</p><p>aindaapreciavaosabordacachaça,umdoshomensdamesaaoladolevantou-se</p><p>eveioaténós:</p><p>—Comlicença,meucaro—disse,dirigindo-seaNathan.—Seráquevocê</p><p>poderiamearranjarumcigarro?Acabouabateriadomeucigarroeletrônicoeo</p><p>barjánãotemcigarrosparavender.</p><p>—Claro—respondeuoempreiteiro,estendendoacarteiracomumcigarrojá</p><p>à mostra. O homem o pegou, acendeu-o, agradeceu e voltou à sua mesa. O</p><p>estranho é que, enquanto acendia o cigarro com o isqueiro que Nathan lhe</p><p>oferecera,osujeitomedeuumaestranhapiscadela.Observando-odevoltaàsua</p><p>mesa,pensei:seráquesouoúnicosujeitodesteboteco—boteco!—quenãoestá</p><p>vestindoternoegravata?</p><p>—Olha— recomeçou Nathan, interrompendo-me o pensamento—, você</p><p>citouChesterton.Liquatrolivrosdele.</p><p>—Oqueéimpressionante,jáqueeleeracatólico,evocê,niilista.</p><p>— Fato. Mas é que a gente aprende muito ao estudar alguém com</p><p>pensamentodiametralmenteopostoaonosso.</p><p>—Vocêacabaderesumirminhavidaacadêmica…</p><p>Ele sorriue fez sinalparaogarçomtrazerumagarrafadecachaçadeoutra</p><p>qualidade:</p><p>—Enfim, sei algumas coisas sobre as sufragistas queChestertonnão sabia.</p><p>Lembra, né? As sufragistas, ao exigirem o direito de voto para as mulheres,</p><p>tornaram-seoprimeiromovimentofeminista.</p><p>—Sim,eume lembro.E, segundoChesterton—continuei—,umamulher</p><p>queexijaodireitodevototemdeestarmesmocomacabeçaforadolugar:para</p><p>que exigir o direito de participar de coisas tão nojentas quanto as ações do</p><p>Estado? Votar num primeiro-ministro que pode ajudar a aprovar a pena de</p><p>morte, ou uma declaração de guerra, apenas sujaria de sangue as mãos das</p><p>mulheres,quedeveriampermanecerimaculadas.</p><p>—Bemmachista,não?—observouNathan.</p><p>Rimos.</p><p>—Mas ele tinha ótimos argumentos— eu disse.— Para ele, as mulheres</p><p>deveriamtermaisprivilégios,enãomaisdireitos.</p><p>—Exato.Assimseria,seseguíssemosanaturezahumana.Mas…</p><p>—Mas,aindasegundoChesterton,quandooshomensvoltavambêbadosda</p><p>“casapública”,istoé,dospubs,parasuas“casasprivadas”,desculpavam-secom</p><p>asmulherespelo atraso afirmandoquehaviamestado a tratarde coisasmuito</p><p>importantes lá dentro, muito mais importantes do que os assuntos do lar.</p><p>Conversafiada,claro,poisestavamapenastagarelandocomoutroshomens.Mas</p><p>elasacreditaramneles!!Eentãoquiseramsairdecasaeparticipardavidapública</p><p>—principalmenteadopub!</p><p>Nathanriu:</p><p>—Devoconcordar,Chestertonésempremuitoengraçado.</p><p>— Muitíssimo engraçado. Pena que você, apesar de concordar com as</p><p>observaçõesdele,nãoconcordecomseusprincípiosecomamanutençãodesses</p><p>princípios.Eleviviacombatendooniilismo.</p><p>—Eeuvivodefendendooniilismo.</p><p>—Poisé,jánotei,emboravocêaindanãootenhafeito.Evocêtampoucome</p><p>disseporqueapoiaalgoquevaicontraanaturezahumana.</p><p>— Sim, mas preciso dizer primeiro o que sei sobre as sufragistas que</p><p>Chestertonnãosabia.</p><p>—Ah,é!Eoqueseria?</p><p>— Os primeiros movimentos sufragistas, e mais tarde os movimentos</p><p>feministasemgeral, foramfinanciadosporgrandescorporaçõesepordinastias</p><p>bilionárias, como a dos Rockefeller, por exemplo. Tudo não passou de</p><p>engenhariasocial.</p><p>—Comoassim?Comqualintenção?</p><p>—Ora,atododireitocorrespondenaturalmenteumdever,uma</p><p>querido amigo, como vão as coisas? — tornou o doutor,</p><p>levantando-seeapertando-lheamão.</p><p>Diantedaquelaperguntatãocasual,ooutrodesfezosorriso,franziuoslábios,</p><p>baixouosolhose,apósdaravoltaàmesa,desabouocorpanzilnacadeiraoposta.</p><p>—Uai,quandoligueipravocê,ummêsatrás,tavatudoótimo.Masaí,uma</p><p>semanadepois,bemantesdevirpraSãoPaulo,recebiumanotíciamuito,muito</p><p>ruim.Queriaatépedirseuconselho,João,talvezsuaajuda,seusserviços.</p><p>—Seeupuderajudá-lo,contecomigo—disseodoutor,quevoltaraasentar-</p><p>se.Esóentãonotouacamisarespingadaeoscabelosmolhadosdoamigo.—E</p><p>essecabelo?Estavachovendopertodohotel?</p><p>—Ah, nada disso.Não tô emnenhumhotel. É que perdi a hora e tive de</p><p>tomarumbanho rápido.Acabei de sair da saunado clubedoCírculoMilitar.</p><p>Aindacontinuosócio,minhafilhamoraaquiperto.</p><p>—Nãosabiaquevocêeramilitar.</p><p>—Nãosou,nãosou.Masoclubefoifundadoporcivistambém,nãoapenas</p><p>pelosveteranosdaSegundaGuerra.Enfim,nãoaceitasomentemilitares.E,anos</p><p>atrás,depoisde certasdificuldades financeiras, começoua aceitarnovos sócios</p><p>civis. Foi só aí queme associei, né?Não sou tão velho assim, não lutei contra</p><p>Hitler…—esorriu.</p><p>—Entendi.UmclubepraticamenteaoladodoparquedoIbirapuera…Atéeu</p><p>meinteresseiagora.</p><p>—Uai,João.Sequiser,possotevendermeutítulo.Quasenãovenhomaispra</p><p>cáetôrealmenteprecisandododinheiro.</p><p>—Obrigado!Seriamuitobom—eodoutor,sempoderdisfarçartotalmente</p><p>sua estranheza diante daquela confissão de necessidade financeira, forçou um</p><p>sorriso.Ora,Márcio sempre fora umde seus amigosmais prósperos! E então,</p><p>contraindoafronte,acrescentou:—Masvá,meconteoqueestáacontecendo.</p><p>—Ah, sim—disseMárcio,mimetizandoo semblantedoamigo.—Éuma</p><p>penaestragarnossoalmoçocomessahistória,mas…oqueeupossofazer?Tem</p><p>avercommeufilho,efilhos,vocêsabe,agentenãotemcomoignorar.</p><p>—Claroquenão.Anãoserqueosujeitosejaummaupai…</p><p>—Pois é.Hámuitos pais terríveis. Eu, por exemplo, posso ter pecado por</p><p>excessode cuidados,de agrados, jamaispor indiferença.Comminha filhadeu</p><p>certo.Mascommeufilho…Agentevaitolerando,tolerando,eodesgramadovai</p><p>aumentandoadosedatravessura.Datravessura,não:dasacanagemmesmo.</p><p>— O que aconteceu com seu filho? Não me diga que está vendendo os</p><p>quadrosquecostumavafalsificar…</p><p>— Não, não. Antes fosse — e, olhando em torno, envergonhado, Barros</p><p>sussurrou:—OTiagofoipresoportráficodedrogas,rapaz!</p><p>—Oquê?!Tráfico?—tornouodoutor,nomesmotomevolume,deolhos</p><p>arregalados.—Mas,Barros…imaginoqueelesejaapenasumusuário,não?</p><p>— Ah, João… Não sei como vai ser a coisa. Porque é possível que até a</p><p>Interpol semeta na barafunda. É, tinhamaconha com ele na ocasião.Mas ele</p><p>tavaeravendendocogumelosalucinógenosnaDarkWeb.</p><p>Odoutorcoçouacabeça:</p><p>—MeuDeus, lávemomundo tecnológicoatrapalharminhacompreensão.</p><p>QuediaboséDarkWeb,Barros?Umsite?</p><p>—Fazquinzediasqueeueminhafilhapesquisamossempararaditacuja.A</p><p>gentejáleumilartigosdiferentesarespeito.ADarkWebécomoainternet,mas</p><p>funcionadeoutramaneira.Ossiteseusuáriospermanecemsempreanônimos,</p><p>vocênuncasabealocalizaçãorealdenada,deninguém.Masacoisatodatátão</p><p>alémdomeuconhecimentotécnicoquenãoiasaberteexplicarcomminúcias.</p><p>Só seiquenão tem jeitode rastrearnemosusuáriosnemosproprietáriosdos</p><p>sitesedaslojas.</p><p>—Ecomoentãoseufilhofoidescoberto?</p><p>—Numa agência dosCorreios, por puro acaso.Apolícia tava atrás de um</p><p>traficante demaconha e cocaína que agia nacionalmente e esbarrou noTiago,</p><p>quevendiaproexterior.Jáamaconhadeleerapraconsumopróprio.Masquem</p><p>dissequeapolíciavaicairnessa?</p><p>—Temcertezaqueerapraconsumo?</p><p>— Sim, sim. Eu já desconfiava disso, né? E ele não tinha mais que um</p><p>punhadocomeleeoutroemcasa.Vendiamesmoeracogumelos.Eleachavaque</p><p>cogumelossecosiampassardespercebidos.E,rapaz,tavampassandomesmo!Ele</p><p>nuncadespachavaessestrensnamesmaagência.Viajavaatéoutrascidadescom</p><p>esseintuito.MasacaboudespachandováriasvezesdeCampinastambém,ondea</p><p>namorada delemora, e onde a polícia andava investigando. E lá, nummesmo</p><p>dia,comdiferençademinutos,eleseserviudediferentesagências.Parecequefoi</p><p>isso que chamou a atenção dos investigadores: ele aparecia em várias imagens</p><p>das câmeras de segurança dessas agências. Tudo gravado numa única tarde!</p><p>Quando voltou a uma dessas agências em outra oportunidade… pimba! Tava</p><p>comváriospacotesjáendereçadospradezenasdepessoasdomundotodo.</p><p>—Entendi.</p><p>—Euacreditavaqueeletavaprosperandograçasàstelaseàsesculturasdele.</p><p>Naverdade,aartedeleeraapenasumaformadelavarodinheiro.</p><p>—Caramba,quecoisa…</p><p>—Poisé,meuamigo.Eeunemsabiaqueessescogumelosdefazendaeram</p><p>droga.Querdizer,játinhaouvidofalar,masnãosabiaquevendiamisso.</p><p>—Bom,segundoalegislação,nãosãodroga—comentouodoutor.—Masa</p><p>substânciacontidaneles,apsilocibina,essaé.Apenaselaélegalmenteproibida.</p><p>Seocogumelofosseproibido,todososfazendeirosdopaísiriamparaacadeia,já</p><p>que o fungo nasce espontaneamente nas fezes do gado. Meu sócio entende</p><p>bastante dessa legislação. O problema ficará grandemesmo se houver alguma</p><p>investigaçãonoexterior.Aí,meucaro…</p><p>Ogarçomvoltou,pediulicençaeanotouospedidos:umapizzadepepperoni</p><p>grande emais dois chopes.MárcioBarros, assimque o homem se despachou,</p><p>retomouapalavra:</p><p>—Mas,seocogumelomesmonãoéproibido,agentenãopodiaalegarque</p><p>nãosetratadetráfico?</p><p>—Bem— começou o doutor, ajustando os óculos no rosto—, não é bem</p><p>assim.Aindamaiscomamaconhanomeiodahistóriatoda…NoBrasil,éuma</p><p>coisa,noexterior,outra.Aqui,vaidependerdojuiz.Eatualmenteosjuízesnão</p><p>estãodandomoleza aninguém.E, afinal, segundovocê acabademedizer, ele</p><p>estava realmente traficando, não estava? Como é esse local, ou site, sei lá…</p><p>Comoéolugarondeelevendia?</p><p>— São quatro ou cinco sites diferentes de venda de armas, drogas,</p><p>falsificações,serviçosprestadosporhackers…AlphaBay,TradeRoute…bom,só</p><p>melembrodessesdoisagora.</p><p>—Eapolíciajásabedisso?</p><p>—Sim,osagentesapreenderamosdoiscomputadoresdele.Os links tavam</p><p>nos favoritos dum navegador especial pra DarkWeb…Como era? Acho que</p><p>Tor.Umtremassim,senãomeengano.EeletinhaplanilhasdoExcelcomquase</p><p>todaacontabilidadedasvendas.OTiagonuncafoimuitoorganizado,sabe.Eele</p><p>recebiaospagamentosembitcoins.</p><p>—Bitcoins?</p><p>— Uma moeda digital. Por recomendação dele, eu mesmo já vinha</p><p>comprando bitcoins como forma de investimento. Mas já criei antipatia pela</p><p>coisa.</p><p>—Maisessa!…Moedadigital?</p><p>— É. Ela permite negociações quase anônimas, sem intermediários. Quer</p><p>dizer… nada de bancos, nada de cartões de crédito, nada de ordens de</p><p>pagamento…Depois,emsitesespecializados,eletrocavaessamoedaporreais.O</p><p>problemaéque,assimqueapolíciadescobriuosendereçosdosbitcoinsdele,das</p><p>carteirasonline,levantouomontantemovimentado.Atéeumeassustei.</p><p>—Quanto?</p><p>—Elefaturava,emmédia,de6a8mildólarespormêscomapenasumquilo!</p><p>E na época das chuvas ele conseguia armazenar uns dez quilos de cogumelos</p><p>secos!Emapenastrêsouquatromeses,garantiatodooano.</p><p>—Háquantotempoelevinhafazendoisso?</p><p>—Elemedissequejáfaziaquasetrêsanos.</p><p>Ogarçom,aprumadoelépidocomoummaratonista,trouxeoschopes,eos</p><p>doisamigosficaramalgunssegundosemsilêncio,aplacando</p><p>obrigação.Se</p><p>asmulheresganharamodireitodevotar(eéengraçadochamaressaobrigação</p><p>de direito), obviamente ganharam também a obrigação, ou o direito, de</p><p>participarmaisativamentedavidapública.</p><p>—Eoquehádeerradonisso?</p><p>— O pré-requisito básico para participar da vida pública na sociedade é</p><p>conseguir umemprego, é trabalhar forade casa.E aí está a genialidadedesses</p><p>engenheirossociais:comaentradamaciçadasmulheresnomercadodetrabalho,</p><p>aofertademãodeobrasimplesmentedobrou!Seantesdezfamílias forneciam</p><p>dezcabeçasparaotrabalho,agorafornecemvinte.Evocêdeveconhecerasleis</p><p>domercado,quesãoespontâneasenaturais:quandoháumaumentodaoferta</p><p>de umproduto ou serviço, cai o valor domesmo.Ora, a competição torna-se</p><p>mais acirrada: se alguém não quiser fazer um serviço por um valor X, algum</p><p>outroofará,porqueagorahágentedesobra.Seanteseunãoconseguiacontratar</p><p>um operário por 100 reais (porque ele tinha a escassez demão de obra a seu</p><p>favor,comoumtrunfo,comoummeiodechantagem:“façoeuouninguémmais</p><p>o fará!”), agora posso simplesmente contratar duas pessoas: um homem por</p><p>sessenta e umamulher por quarenta reais. Percebe?O dobro damão de obra</p><p>pelomesmovalor!Essabrigadasmulherescontraadesigualdadedossaláriosé</p><p>recente: no início, elas não se importavamde recebermenos; afinal de contas,</p><p>antesnãorecebiamsalárioalgum!Algumacoisaémelhordoquenada,nãoé?E</p><p>qualquervaloramealhadoiriasupostamentecontribuircomasfinançasdolar.</p><p>—Supostamente?</p><p>—Sim,claro!Vourepetir:seantesomaridorecebiacemreais,agoraambos</p><p>recebempartescomplementaresdessemesmovalor!Ouseja, continuamtendo</p><p>emconjuntoomesmorendimento,mas fornecendoaomercadoumacabeçaa</p><p>mais!Semfalarque,agora,ogovernocobraimpostosdeambos!Quemganhou</p><p>com isso?Oshomens?Asmulheres?As crianças?As famílias?Claro quenão:</p><p>apenasoEstadoeosmetacapitalistas!</p><p>—Eita…Metacapitalistas?</p><p>—Sim,gentequejádeixoudesermeramentecapitalista.Gentequesetornou</p><p>tão rica que agora, enquanto patrocina o socialismo estatista para os demais,</p><p>outorga a simesma a prerrogativademanter a riqueza somentepara si.Todo</p><p>socialismo sempre teve um financiador. E, para essesmetacapitalistas, que são</p><p>contraolivremercado,queodeiamcompetidoreseinovadoresqueosameacem,</p><p>nadamelhordoqueimporacompetiçãoapenasparaquemestáabaixodeles:o</p><p>velhoebom“dividirparareinar”.Eéporissoqueosmetacapitalistasvivemse</p><p>metendoempolítica, vivempatrocinandogovernantesqueadoramcontrolara</p><p>economia.Eumesmosouummetacapitalista.</p><p>—Entãovocênãoestáapenasespeculando?Comonahistóriadofogo?</p><p>—Não.Nemnahistóriadofogonemagora.Há,porexemplo,testemunhas</p><p>que ouviram Rockefeller Jr. e Nelson Rockefeller vangloriarem-se de suas</p><p>estratégias. Eles patrocinavam atémesmo revistas feministas!Hoje patrocinam</p><p>ONGs, fundações e institutos. O objetivo sempre foi o de tornar terrível, aos</p><p>olhosdetodasasmulheres,aopçãolegítimadeserumamãeeumadonadecasa.</p><p>Eelesconseguiramconvencertodomundo!Oshomensnemnotaramqueseus</p><p>salárioscaíramporcontadisso.Masentenda.Nãofoialgoqueocorreudanoite</p><p>paraodia:oequilíbriosalarialsedeuaospoucos,aolongodedécadas.Semtera</p><p>menornoçãodisso,geraçõesinteiraspassaramareceber,emvaloresatualizados,</p><p>ametade do salário que seus avôs recebiam décadas atrás. Hoje em dia, quer</p><p>queira,quernão,todamulhertemdetrabalharfora!Ouafamíliaterádeviver</p><p>comosaláriodefasadodomarido…Maquiavélico,não?</p><p>Reabastecimeucopo.Tomeimaisumgoledecerveja.Nathanmeobservava,</p><p>umarirônicoestampadonorosto.</p><p>—Épor isso—perguntei—que você apoia o “feminismo fraco”?Apenas</p><p>parapagarmenoressaláriosaosseusfuncionários?</p><p>—Não,nempensomaisnisso.Essaideiadeamulhertrabalharforadecasa</p><p>(porque amulher sempre trabalhou, não é?) já faz parte do senso comum há</p><p>décadas.Os politicamente corretos vivemdizendoque o patriarcalismo é uma</p><p>maldade,umaformadeopressão.Dizematémesmoquenãoexistemais!Bom,é</p><p>quase verdade: os únicos patriarcas existentes são osmetacapitalistas! Famílias</p><p>enormes! Dinastias poderosas, todas superpatriarcais. E também matriarcais,</p><p>porque o patriarcalismo projetado nomundo só funciona quando associado a</p><p>um matriarcalismo em ação dentro de casa. Porra, quase toda dona de casa</p><p>semprefoiumaempreendedora!VocêachaqueasmulheresdosRockefeller,dos</p><p>Rothschild,dessasfamíliasnobreseuropeias,achamchatonãoterumemprego?</p><p>Vocêachaqueelassãodondoquinhaspassivas?Tadinhas,tantodinheiro,tantos</p><p>paláciosparacuidar…</p><p>Eusorri.</p><p>—Lembraoquedizocaipiradaquelefilme,Amarvadacarne ?—indagou</p><p>Nathan.</p><p>—Não,nãomelembrodasfalas.</p><p>— Ele diz que teve “uma filha mulher para mandar na casa, e um filho</p><p>homemparamandarnomundo”. Isto já foi sensocomum!Quandoohomem</p><p>nãotemumamulherparamanteracasaativa,nãoconsegueserativonomundo.</p><p>Seohomemnão temumamulherparamaterializar sua ideiade acenderuma</p><p>fogueira, elemorre de frio. As coisas são assimmesmo quando amulher não</p><p>participa ativamente do trabalho dele. Sem a presença da grande força de</p><p>vontade da mulher, o homemmal consegue sentir sua pequena vontade. É a</p><p>mulherqueminspiraohomem.VocêjáviuumafotodamulherdoChesterton?</p><p>Éóbvioqueaquelamulherenérgicadeviavirar-separaeleedizer:“Vaieescreve,</p><p>my dear! Está na hora! Tenho tanto orgulho de você.” E é por isso que</p><p>Chestertonaindaestáativonamentedetantagente…</p><p>— Ok. Mas lembro que há uma Rockefeller super-reconhecida, uma</p><p>profissional proeminente… Li num jornal. Infelizmente não lembro o nome</p><p>dela.</p><p>Elefezummuxoxo:</p><p>— Exceções sempre existirão! É da natureza. Se você ler a História da</p><p>Província de Santa Cruz , de Pero de Magalhães Gândavo, primeiro livro de</p><p>históriasobreoBrasil,veráqueastribosindígenasdaépocadoDescobrimento</p><p>játinhammulheresquepreferiamsercaçadoraseguerreiras.Ouseja:mulheres</p><p>que se comportavamde formamasculina.Algumasatémesmoescolhiamuma</p><p>esposa…</p><p>—Eita.</p><p>— E sabe o que os índios achavam disso? Achavam graça, mas não as</p><p>impediam,nãoasincomodavam.“Jáquequeremviverassim,quemsoueupara</p><p>dizernão?”,deviampensar.Afinal,asdemaismulheres tambémachavamesses</p><p>casosirrelevantese,aocontráriodasmasculinizadas,preferiammanterseustatus</p><p>femininotradicional.Ora,umatriboécomoumexemplardasantigasfamílias:</p><p>estas não se constituíam meramente de pai, mãe e dois filhos. A verdadeira</p><p>família tradicional é formada por dezenas e dezenas de pessoas em constante</p><p>contatodiário:avós,tios-avós,tios,primos,pais,irmãos,agregadoseassimpor</p><p>diante.Umadonadecasa,antigamente,jamaissesentiasó!Atalfamílianuclear,</p><p>raquítica, pequenina, também é uma invenção de engenheiros sociais. Com a</p><p>solidão da mulher dentro de casa, um fenômeno puramente moderno, as</p><p>bravatas feministas ganharam ressonância.A família nuclear de pai,mãe, dois</p><p>filhosecachorrofoiinventadaporpublicitários.</p><p>Ele continuava acendendo um cigarro no outro. E virando cachaça sobre</p><p>cachaça. Quanto amim, eu estavame sentindo incomodado por ouvir tantas</p><p>confirmaçõesdavisãotradicionaldafamíliasendoexplicitadasporalguémque</p><p>sediziaumniilista,poralguémqueeracontraessavisão.Resolviprovocá-lo:</p><p>—Estoucomeçandoaacharque,emvezdeniilista,vocêéislâmico.</p><p>Nathancoçouoqueixo,sorridenteepensativo.</p><p>—Você é bastante sagaz,</p><p>Yuri—disse ele.—Para ser sincero, eunãome</p><p>incomodareinadaquandoomundointeirosetornarumcalifado.Porqueesseé</p><p>o futuro domundo. Será um grande passo para o caos geral. Ora, o próprio</p><p>Lúcifer,quandoserebelou,eraummuçulmanoavantlalettre.</p><p>Eu, que estava no meio de um gole de cerveja, engasguei ruidosamente.</p><p>Coloquei a mão sobre a boca e tossi durante alguns segundos, enquanto</p><p>solicitavacomaoutramãoqueelefalassemaisbaixo.Osacanadoempreiteiro</p><p>ficouali,rindodaminhacara.</p><p>— Fala baixo — eu disse finalmente. — Os islâmicos podem ser mais</p><p>perigososdoqueasfeministas.</p><p>—OfeminismoocidentaléumaexcelentearmaparaoIslã—replicoucom</p><p>cinismosatisfeito.</p><p>—Queseja!Issoeupossoatéentender.Pimentanosolhosdooutroetal…</p><p>MasessepapodeLúciferserislâmico…PeloamordeDeus!Deondesaiuisso?</p><p>Ele se aprumouna cadeira, cruzou as pernas e fez sinal para o garçomme</p><p>trazeroutracerveja.Entãoolhoudentrodosmeusolhos:</p><p>—Yuri,meucaro…Umavezconseguiserconvidadoparaassistiraumaaula</p><p>de Religião Comparada na universidade inglesa de Essex. Eu pretendia me</p><p>inteirarsobreoníveldoconhecimentoqueatualmentevendemporaí.Acerta</p><p>altura,oprofessor,umscholar super-respeitado,dissequeaprincipaldiferença</p><p>entreoislamismoeocristianismoéque,enquantooprimeiroasseveraqueDeus</p><p>éumasópessoa, istoé,Alá,ocristianismoafirmaqueDeussãotrêspessoas,a</p><p>saber,oPai,oFilhoeoEspíritoSanto.</p><p>—Ué.Enãoestácorreto?</p><p>—Absolutamente!OverdadeiromuçulmanonãocrêqueAlásejadeforma</p><p>algumaumapersonalidade!Alásignifica“ADivindade”.Paraocristianismo,há</p><p>um único Deus, isto é, uma única deidade que atua na Criação como três</p><p>distintas personalidades. Ora, que tipo de relacionamento você tem com uma</p><p>outrapessoa?Um relacionamentopessoal! Simples, não? Isto significa que, no</p><p>cristianismo, você pode se sentar ali nomeio-fio a qualquermomento e falar</p><p>comDeus, orar. Aomenos foi o que Jesus nos ensinou.Mas não é assim no</p><p>islamismo!Vocênãopodesesentarnomeio-fioparafalarcomAláquandobem</p><p>entender!Elenãoéumapessoadispostaaaceitarsuapresentesituação:“Ah,o</p><p>coitadoestá tãomalqueprecisa falarComigoagoramesmoeEu,Alá,nãoMe</p><p>incomodoseeleestásentadonaruafeitoumcão.”Não!Alánãovaisealegrar</p><p>comsuaconversamentalforadehora,foradelugar,foradaadoraçãocoletiva,</p><p>enfim, fora do rito! Ele não vai sequer lhe dar atenção! O islamismo é uma</p><p>religião social, você precisa entrar não apenas em sintonia, mas também em</p><p>sincronia com os demais fiéis.QuandoADivindade é invocada, todos devem</p><p>cair de joelhosnaquele exatomomento, a cabeça voltadaparaMeca, e rezar o</p><p>que têmde rezar!ÉADivindade!Quemévocêparaousar falar comAlácom</p><p>tanta familiaridade, com tanta informalidade, como se Ele fosse… seu Pai?!</p><p>Percebe?</p><p>—Sim,mas…eLúcifer?Ondeentranessahistória?</p><p>—Calma, já vou lhedizer…Aquestãoéque,paraumateu, essadiferença</p><p>entreislamismoecristianismoéumnada!Mas,paraumespíritoreligioso,éuma</p><p>diferençagigantesca!Istomudatudo:seDeuséPai,somostodosirmãos,mesmo</p><p>osqueOnegam,eporissoama-seatémesmoosinimigos;poroutrolado,seEle</p><p>nãoéPai,entãoapenasosfiéismerecemseramadosepreservadosatodocusto.</p><p>Jáosinfiéis…—efezumgestoindicandoumadegola.—Compreende?</p><p>—ELúcifer…?— insisti, esvaziandoaprimeiragarrafadecerveja emmeu</p><p>copoecompletandoorestantecomanovagarrafa.</p><p>— Lúcifer abjurou a Trindade. Deixou de acreditar nas personalidades</p><p>divinas.AindaantesdaEncarnaçãodoCristo,eledeixoudeacreditarqueJesus</p><p>fosseFilhodeDeus.Ele jánãocrianoPai!Ora,raciocinouoentãogovernante</p><p>doSistemadeMundos,quemnãoéumapessoanãopodeterfilhos!Époressa</p><p>mesmíssima razãoqueosmuçulmanos ficamhorrorizadosquando alguémdiz</p><p>queo“profeta”JesuséFilhodeDeus.Lúciferchegouàmesmaideiamilharesde</p><p>anosantes.Evejasó:eleeraumanjo,umespírito!Edepoisdeverseusplanos</p><p>serem subestimados ou vetados tantas vezes, depois de tantasnegativas ao seu</p><p>pedidodeencontrar-sepessoalmentecomoPai, elepassouaacreditarque,na</p><p>verdade,ninguémpoderiaseencontrarousecomunicardiretamentecomDeus,</p><p>quetudoaquilosópodiamesmoserumafarsa,porque,veioaconcluir,Deushá</p><p>de ser absolutamente transcendente àCriação, aoCosmos. Para Lúcifer,Deus</p><p>seriaintocável!Deusjamaispoderiasesentarparadividiropãoeovinhocom</p><p>você…E,nãopodendofazê-lo,quemseriaEleentão?Simples:ADivindade!</p><p>—Evocê,claro,nãocrênomesmoqueele,jáquesedizniilista.</p><p>—Eu já acreditei na personalidade doPai, depois passei a crer apenas n’A</p><p>Divindadeehojenãocreiomaisnessasbesteiras.</p><p>—MasvocêfalacomoseLúciferexistisse.</p><p>Elebateuocopinhovazionamesa:</p><p>—Maseleexiste!Eestápreso!Jesustambémexiste:eestánocomando!</p><p>Pasmado,fizumatremendacareta.Aquelaconversaestavameincomodando.</p><p>—Masissoé…Vocêestásecontradizendo!</p><p>—Ué, por quê? No fundo, meu caro Yuri, tudo não passa deGuerra nas</p><p>estrelas! Juro!GeorgeLucas,emcertosentido,estámaiscertodoquetodosos</p><p>teólogos que já pisaram na Terra. Houve uma guerra no Céu, meu chapa.</p><p>Lúcifer,Gabriel, Jesus…nãopassamdeespíritosdeoutrasesferas…Sevierem</p><p>atéaquiagora,emvisita,discretamente,apenasmédiunspoderãovê-los…</p><p>Eumeendireiteinacadeira,vireiocopodecervejae,emseguida,apesarda</p><p>garrafaaindacheia,cobrimeucopovaziocomodescansodecopo.Paramim,já</p><p>haviabebidomaisqueosuficiente.</p><p>—Ok,Nathan.Vamosdeixaressaconversadoidadeladoefalarmaisdoseu</p><p>livro.Jásabequaisideiassãomaisimportantes?</p><p>Elesorriu:</p><p>— Creio que sim. Pode não parecer, mas só por lhe falar dessas coisas já</p><p>enxergomeuensaiocommaiorclareza.</p><p>—EimaginoqueaideiacentralaserexpostaseráadestruiçãodoOcidente.</p><p>—Não,não,não,não…—censurou-me,movendonegativamenteacabeça.</p><p>—Seeudisserisso,ninguémiráaceitarmeusargumentos.</p><p>—Uê,masentão…?</p><p>— Eu quero fomentar o “feminismo fraco”, não quero combatê-lo. Quero</p><p>apresentá-lo como um progresso para a humanidade. Quero escrever uma</p><p>apologia,nãoumacrítica.</p><p>—EissoajudaráadestruiroOcidente.</p><p>—Sim,éoprincipalobjetivo.</p><p>—Entãoo livro serámentirosodocomeçoao fim.Daráosmeiosmasnão</p><p>revelaráosverdadeirosfins.</p><p>—Exato!UmcavalodeTroia.</p><p>—Nathan,medesculpe,masvocêécompletamentelouco.</p><p>Eledeuumagargalhada:</p><p>—Jámedisseramissováriasvezes.Vocênemimagina…</p><p>—Eobviamente você sabequenãoquero ajudá-lo emnada,não é?E, por</p><p>favor,nãomecitedemaneiraalguma!Achomelhor,inclusive,vocêesquecerque</p><p>meconheceu.</p><p>—Ah,nemprecisamedizerisso.Jáconhecitanta,tanta,tantagenteaolongo</p><p>davidaque,emmenosdeummês,játereimeesquecidodevocê.Masnãoestou</p><p>certodocontrário…—esorriucomimpudência.Creioquejáestavapraláde</p><p>bêbado.</p><p>—Ok.Entãovocêéumcarainesquecível.</p><p>—Sim,elesnãoparamdefalarameurespeito!Éumsaco.</p><p>Eleestavadeixandoaconversacadavezmaisbizarra.Nãoeraumasimples</p><p>conversadecachaceiro.Talvezelefosseumesquizofrênico,oque,claro,traziaà</p><p>bailamuitosriscos.Decidi,pois,queseriaumaboaideiaconcluiraquelapalestra</p><p>o mais pronto. Ele, porém, provavelmente intuindo minha intenção, fez um</p><p>simpáticosinalcomamão,comoquepedindodesculpas.</p><p>—Yuri,euseiquevocêéumapessoaocupada.Naverdade,ninguémémais</p><p>ocupado do que um escritor! Escritores ficammaquinando o tempo inteiro, o</p><p>pensamento correndo amil.A imaginação de vocês é uma onça!Não</p><p>lhes dá</p><p>trégua.Enfim,vocênãoprecisasepreocupar.Eujávoudeixá-loempaz.Gostaria</p><p>apenasdetratardemaisalgunspontos,e,então,estaremosterminados.</p><p>Emiti um suspiro involuntário, o que, devo dizer, nunca foi domeu feitio.</p><p>Não me sinto nada à vontade no papel de antipático, mesmo diante de um</p><p>maluco.</p><p>—Beleza,Nathan.Mas, se for discorrer sobre o niilismo, seja breve; é um</p><p>temaquejámeacompanhoutempodemais.</p><p>—Fiquetranquilo.Jáestouconcluindo.</p><p>—Ok.Prossigaentão—concordei,resignado.</p><p>Elemeteuosdedosnacarteiradecigarroenotouqueestavavazia.Assoviou</p><p>para o garçom e a agitou no ar, solicitando mais uma. Pelo jeito, havia se</p><p>esquecidodoquenosdisseraohomemdamesaaoladominutosatrás:obarjá</p><p>não tinha cigarros para vender. Contudo, para minha surpresa, Ronaldo, o</p><p>proprietário,veiopessoalmente trazeroutracarteiradeMarlboro.Esse fatome</p><p>causou tanta estranheza que procurei o filador de cigarros da mesa ao lado.</p><p>Quando encontrou meu olhar, nosso vizinho sorriu e levantou o copo, me</p><p>saudando.Seusdoiscompanheirospareciamtãoconfusosecuriososquantoeu.</p><p>—Estãobemservidos?—perguntouRonaldo,odonodobar.</p><p>—Sim,es…</p><p>— Sim, sim, Ronaldo,muito obrigado— cortou-o Nathan, dispensando-o</p><p>comumgestoindelicado.Evirando-serapidamenteparamim:—Oquehápara</p><p>sefazernestavidaquandonãoacreditamosemmaisnada,Yuri?</p><p>—Vivercomoumsimplesanimal,imagino.</p><p>—Exato.Eapartemaisinteressantedavidaanimal,aomenossegundomeu</p><p>gosto,éosexo.Háquemprefiracomida,bebida,sombraeáguafresca,ouentão</p><p>lutas, esportes, adrenalina…Eu prefiro sexo! E, sendo vocêmuito jovem, não</p><p>imaginaquãodifíciljáfoivariardeparceirassexuaisnestemundo.Querodizer:</p><p>quandojáseestácansadodoprofissionalismodasprostitutas,claro—emedeu</p><p>uma daquelas piscadinhas inconvenientes.—Aliás, a garota de programa dos</p><p>nossos dias é a epítome do feminismo fraco! Uma mulher independente que</p><p>trabalha fora e que vive de parecer feminina. A feminilidade dessas garotas é</p><p>totalmente falsa! São fêmeas profissionais! É a mulher mais independente da</p><p>almadohomem!Só lhes interessamoscorposeodinheirodeles,claro.Parece</p><p>atéqueestoudescrevendoumamodelo,masasmodelos,quandofazemsucesso,</p><p>obviamentenãoprecisamirtãolongenessaaventura.Jáasgarotasdeprograma,</p><p>quando tomamgosto, sentem-se tão poderosas quanto uma supermodelo!Até</p><p>alguns transexuais, invejando esse pseudopoder, tornam-se travestis de</p><p>programa; o que é uma bobagem, pois homens homossexuais são homens,</p><p>ponto!E sãopotencialmente tão criativosquantoqualqueroutrohomem.Mas</p><p>tantoasgarotasdeprogramaquantoostravestis,aopermaneceremnessavida,</p><p>malimaginamoquevirádepois…Certosestilosdevidasemeiamvírusmentais</p><p>que semanifestam tardiamentenaconsciência…Àsvezesapenasnosminutos</p><p>queantecedemamorte…Éduro,meucaro…Semfalarque,nofuturo,maisda</p><p>metade da humanidade será literalmente constituída de filhos da puta! — E</p><p>então, inclinando-se na minha direção, sussurrou: — Meu livro seria um</p><p>verdadeirosucessosetodasasmulheresqueoleremsetornarememseguida,em</p><p>ummomentoououtrodesuavida,garotasdeprograma!Aprostituiçãogerale</p><p>irrestritaseráamortedoamor!Amortedafamília!</p><p>—Ai,ai…—suspirei.—Essepapoédeumaescrotidãotremenda,Nathan.</p><p>Vocêatépoderiameentreter seeu tivesseuns14ou15anosde idadeeainda</p><p>fosseumvirgemcomacabeçacheiaderevistasPlayboy,Status,Hustler…Mas,</p><p>porfavor…PareceatéaquelamúsicadoCapitalInicial:“Omundovaiacabare</p><p>elasóquerdançar,dançar,dançar…”Noseucaso,omundovaiacabarevocêsó</p><p>quertrepar.</p><p>Elenãosemostrounemumpoucoofendidopelaminhaobservação.Limitou-</p><p>se a jogarnovamente a cabeçapara trás e a daruma longa tragadano cigarro</p><p>enquantomiravaoturvocéudeSãoPaulo.Conformefalávamos,aneblinaiae</p><p>vinha.</p><p>— Yuri — disse ele, ainda olhando para cima —, você já assistiu a um</p><p>documentáriodoSpikeLeesobrecomediantesnegros?</p><p>—AchoquesechamaOsreisdacomédia.</p><p>—Talvez.O títulonão importa.O interessanteéque,nasapresentaçõesde</p><p>stand-up comedy dos sujeitos, eles criticam, satirizam e detonam os negros,</p><p>arrancando gargalhadas homéricas da plateia, que, como vemos, é constituída</p><p>quasequeinteiramentedenegros.</p><p>—E…?</p><p>—Bem, se os comediantes fossem brancos e contassem asmesmas piadas,</p><p>seriamtachadosderacistaseapedrejadosalimesmonopalco.Percebe?</p><p>—Oquê?</p><p>—Queaépocaatualétãohipócritaetãopropensaaseofenderquesóaceita</p><p>ascríticasfeitaspormembrosdoprópriogrupocriticado.Ouainda:umacrítica,</p><p>hoje em dia, só é ouvida por todo mundo quando emitida por alguém que</p><p>pertença ao próprio grupo-alvo.Omais cômico é que está ficando assim com</p><p>todasasditasminorias,sejamelasminoriasreligiosas,sexuais,políticas,gordos,</p><p>anões,pobresetc.</p><p>—Nãodiscordo.</p><p>—VocêjáleualgumlivrodaCamillePaglia?</p><p>—Não,apenasalgunsartigos.Gostodela.Viumlivrodelanoseucarro.</p><p>—Elaémulher,lésbica,feministaevivecriticandoasmulheresmodernas,o</p><p>movimentogayeo feminismo.Emgeral, fazasmesmasacusações feitasdesde</p><p>semprepelosconservadores,comoquandoeladizque,nofinaldascontas,uma</p><p>mulherbem-sucedidanumaprofissão jamaisserá tão felize realizadaquantoa</p><p>mulherquesimplesmentepreferiutermuitosfilhos.Masamídiachiquesópassa</p><p>adaratençãoaessasdeclaraçõesquandofeitasporalguémdotipodela!</p><p>—Sim,entendooquequerdizer.Aliás,elaconcordariacommuitodoque</p><p>vocêfalousobreanaturezadasmulheres.</p><p>—Verdade,maselajamaisestimulariao“feminismofraco”,porquesabeque,</p><p>com o fim do Ocidente, o mundo iria tornar-se islâmico, o que, para uma</p><p>mulher,seriaumpéssimonegócio.Elanãoéidiota.Mesmosendoateia,sabeque</p><p>oOcidentevivesobreas fundaçõeserguidaspelocristianismo.E,como já falei</p><p>antes,ocristianismoétãovantajosoparaamulherqueelasforamasprimeirasa</p><p>agarrá-locomunhasedentes.</p><p>—AcríticadoNietzsche.</p><p>—Isso.Mas,aocontráriodoqueafirmouNietzsche,elasnãoseagarrarama</p><p>Jesusporqueocristianismoparecia tão fracoquantoelas,massimporqueEle,</p><p>Jesus,eraforte,masculino,influente,poderosoe…cheiodeamor.Todamulher,</p><p>nãoimportaquãointeligenteseja,sempresesentiráatraídaporumhomemque</p><p>seja uma viga, por um homem sob quem ela queira se colocar…— e sorriu,</p><p>malicioso.—Aliás,issoatémelembradequandoconheciasignorinaCiccone,</p><p>no início dos anos 1990, e a mantive literalmente na coleira, em minha villa</p><p>italiana, perto deNápoles, por quase uma semana… “Venha vestida de Bettie</p><p>Page submissa”, eu lhe disse. Ah, essa Madonna: tão poderosa, mas tão</p><p>necessitadadeobedeceraalguémmaisforte…</p><p>—Ai,ai,ai!!—soltei,arregalandoosolhos.—Vocêtáfalandodacantora?A</p><p>Madonna?!</p><p>—Sim.Masessahistórianãovemaocaso—esoltouumalongabaforada.—</p><p>Oqueimportaéquenenhumacivilizaçãosobrevivesemreligião—prosseguiu,</p><p>concentrado.—Umacivilização,aliás,nascedareligião.Aplebesóapreendeos</p><p>princípiosmoraisbásicosnecessáriosparaaboaconvivênciaatravésdeumafé</p><p>comum. E isto porque os rituais transmitem valores e significados mediante</p><p>símbolos,quenãosãoassimiladospelamente,masvivenciadospelocoraçãoou,</p><p>como dizem os psicólogos, pela nossa “afetividade”.O coração nunca esquece</p><p>nada. Qualquer idiota que esteja disposto, mesmo não sabendo explicar mais</p><p>tardeoquesepassou,saimoralmenteenriquecidodeumritualcristão.Denada</p><p>adiantadaraulasdefilosofiaou</p><p>demoralecívicanaescola.Nãoserveparanada!</p><p>Essasaulassóalimentamintelectuais,quesãoumaparcelaínfimadapopulação</p><p>mundial. Os ateus globalistas, esses metacapitalistas metidos a sabichões, não</p><p>entendemque,semumareligiãorevelada,teremosapenasabarbárie,aguerrade</p><p>todoscontratodos.E,naminhahumildeeniilistaopinião,éótimoqueelesnão</p><p>entendam!Ademais, num estado de barbárie, a igualdade artificial damulher,</p><p>mantida com tanto custo pela civilização, cai por terra: para o bemou para o</p><p>mal,elasficamnasmãosdoshomens!Seelasestãocolocandoasasinhasdefora,</p><p>éporqueestãoprotegidaspelamuralhacristãdaCulturaOcidental.Doladode</p><p>foradessecastelo,reinaocaos,odesrespeitoeaviolência.Ora,asmulherestêm</p><p>um buraco a mais no qual os bárbaros entrarão à força! E a civilização do</p><p>Ocidentenãoéimortal,elaexigecuidados.Sim,meucaro,aguerrapodeserum</p><p>retorno à mais selvagem natureza. E não me refiro somente à guerra entre</p><p>nações,mastambémaumaguerraquepodeocorrernoseiodopovo,nasnossas</p><p>ruas,umaguerracivilentrevizinhos,bairros,favelasecidades.</p><p>—Jáestamosquasechegandoaisso…</p><p>Elesorriu:</p><p>— Estamos. E tudo graças à desagregação das famílias tradicionais e aos</p><p>preconceitosespalhadoscontraareligião.Nãoéculpaapenasdospolíticos—e</p><p>voltouamepiscarumolho.—Umasociedadecomfamíliasgrandesefortes,e</p><p>comvaloresreligiososconsistentes,necessitadepoucoEstadoparadarcerto.Já</p><p>ocontrário…</p><p>Eu, cansado, quisme espreguiçar,mas reprimio impulso.A verdade é que</p><p>aindaestavacurioso:</p><p>—Oqueeumaisgostariadeentender—comecei,medindoaspalavras—é</p><p>por que você, que tem uma visão tão clara dos fatos, não é capaz de seguir o</p><p>exemplo da Camille Paglia e apoiar oOcidente! E daí que você não aceita os</p><p>pressupostosdanossacivilização?DestruiroOcidenteporquê?Paraquê?Poxa,</p><p>vocêtemnegóciosazelar,esseapoioseriapelomenosumaatitudepragmática.</p><p>Não é possível que sua única intenção seja transar casualmente commulheres</p><p>liberadinhas,ouentãodominá-las…</p><p>—Voulheexplicararazão—retrucou,comarextremamentegrave.—Eé</p><p>porissoquefaleidoscomediantesnegrosedaCamillePaglia,dessamaniaqueas</p><p>pessoas têm de só ouvir o contraditório de quem, assim creem, deveria estar</p><p>apoiando “a própria turma”. — E então me encarou em silêncio por alguns</p><p>instantes,umarsombrionorosto.</p><p>— Caramba, Nathan, já está muito tarde para fazer suspense. Estou</p><p>hospedado na casa de amigos, não quero chegarmuito tarde. Você podia ser</p><p>maisdireto,né?</p><p>—Tácerto,tácerto.Bom,primeirovouresumiroquemeinteressasobreas</p><p>mulheresedepoismejustificareiindodiretoaoponto,ok?</p><p>—Ok.</p><p>—Digamosqueasíntesedoqueestápor trásdomeu livroéaseguinte:as</p><p>mulheres são essencialmente diferentes dos homens e, caso queiram vencê-los</p><p>em termos criativos, terão de abrir mão por inteiro da sua feminilidade. Se</p><p>quiseremsimplesmentesermelhoresdoqueamaioriamedíocredoshomens,e</p><p>parecerem gênios diante dessamaioria, tudo isso sem abrir mão da sua alma</p><p>feminina, basta imitarem os maiores gênios do sexo masculino que as</p><p>antecederam, porque, desculpem-me, podem tirar o cavalinho da chuva,</p><p>inovaçãointelectualécoisadehomem.</p><p>—Essaéatalverdadequevocêvaiesconder.</p><p>— Isso. Perceba que não avisarei que, no fim, caso abram mão da</p><p>feminilidade,irãosentir-seinsatisfeitas,vazias,irrealizadasecheiasdeimpulsos</p><p>suicidas,comoumaVirginiaWoolf.</p><p>—Hámaisescritoresquesesuicidaramdoqueescritoras.</p><p>—Ué,masissosimplesmenteporquehámaisescritoreshomens.</p><p>—Certo,certo—murmureidemávontade.Eujáqueriasaircorrendodali.</p><p>—Na partemais visível da obra, atacarei as “feministas fortes”, defenderei</p><p>apenasosaspectosepidérmicosdafeminilidade, levandoemseguidaa leitoraa</p><p>engolir o “feminismo fraco”, o qual supostamente a tornaria equivalente ao</p><p>homem em todos os aspectos, incluindo o sexual. Essa última parte é muito</p><p>importante, pois, quando o homem sente que a mulher vê o sexo da mesma</p><p>formaqueele,perde totalmenteaconfiançanela, torna-seumparanoicoeum</p><p>egoísta.Enfim,aintençãoéfazê-lasrealmentecrerquesãoidênticasaoshomens.</p><p>Oumelhor,fazê-lascrerque…</p><p>—Tudo isso já é velho, Nathan!— repliquei, impaciente.— Superbatido.</p><p>Existemmilhõesdelivrosassim.</p><p>— Calma, Yuri. Há mais: elas já podem até mesmo acreditar que são</p><p>melhores! Sim, pois, além do acesso ao mundo masculino, elas não apenas</p><p>podem manter as armas da feminilidade (quero dizer, a sedução visual, a</p><p>intuição, a capacidade de dividir a atenção entre vários atos simultâneos, o</p><p>cuidadoextremadodequemnãopodedeixarafogueiraapagare,claro,asmile</p><p>uma chantagens emocionais inerentes ao seu sexo),mas podemusar também,</p><p>adquiridas mais recentemente, as armas da lei, num claro (cá entre nós)</p><p>desequilíbriodajustiça.Nãohámaneiramelhordeoprimirumhomemdoque</p><p>divorciando-sedeleouentãoacusando-odeassédiosexualoudepreconceitode</p><p>gênero.</p><p>—Issotambémnãoénovidade.</p><p>— Sim, mas é preciso convencê-las de que esses meios são legítimos e</p><p>permitemqueelascombatamosnovosreacionáriosqueandamarregaçandoas</p><p>manguinhas.Tiposcomovocê—eeleriucomdescaro.—Masentendaqueo</p><p>principalchamarizdaobranãoseráseuconteúdo,esimofatodetersidoescrita</p><p>porumhomemdominador,umempresáriodesucessoeumDonJuanconvicto,</p><p>umtípicomachista.Percebe?</p><p>Aquele“percebe?”jáestavamedandonosnervos.</p><p>—Percebo,Nathan, percebo.Eoque têma ver os comediantesnegros e a</p><p>CamillePaglia?Vocêporacasovaicriticaromachismonesselivro?</p><p>— É o seguinte: não se trata simplesmente de que, sendo eu mesmo um</p><p>machista, eu possa ser ouvido enquanto crítico domachismo. Isso é apenas a</p><p>superfície. Porra, criticar o machismo é muito fácil. Na verdade, eu tenho</p><p>legitimidade é para atacar as bases do cristianismo e, por conseguinte, as do</p><p>Ocidente.Eporquê?Ora,porqueajudeiafomentá-lo!Sim,estouarrependidoe</p><p>agoraquero colocar tudo abaixo.Minha ação éde longoprazo.Como sempre</p><p>temsido,devodizer.Jáquevocênãoentendeasrazõesdomeuniilismo,repito:</p><p>já fui fiel ao fictício Deus-Pai, depois segui Lúcifer em sua rebelião, passando</p><p>também a crer apenas n’A Divindade, e, mais tarde, depois que perdemos o</p><p>contato,finalmentemeentregueiaoniilismo.</p><p>—Depoisqueperdeuocontato…comquem?</p><p>—ComLúcifer.</p><p>Pronto, e lá vamos nós, pensei comigo. A esquizofrenia já estava se</p><p>manifestandomaisumavez.</p><p>—Jáfazquase200milanosquenãonosfalamos.Ouseja,desdequedeixeide</p><p>seroficialmenteoPríncipedesteplaneta.</p><p>—Aham—esentimeupédireitoapontarinvoluntariamenteparaarua.</p><p>—Logo—prosseguiuNathan,entusiasmado—,sepretendocontinuarcom</p><p>minhasaçõescontraacristandade,emespecial,eahumanidadeplanetária,em</p><p>geral, é porque sinto que preciso a todo custo me vingar dos imperialistas</p><p>cósmicosquenosdestituíramdopoder.</p><p>—Sei.</p><p>—Vocêdizqueminhaabordagemsobreofeminismoéacoisamaisbatida</p><p>domundo.Eeunãoseidisso?QuemvocêachaquesugeriuaRockefelleraideia</p><p>depromovero feminismo?Paraquemtrabalhavamosengenheiros sociaisque</p><p>tiveramessaideia?</p><p>Pareceu-memaissegurofingirqueembarcavanaquelasinistrabadtrip:</p><p>—Trabalhavamparavocê?</p><p>—Exato!Quem você acha que era o bibliotecário que trazia aqueles livros</p><p>cheios de dados ultrapassados para que Karl Marx, na biblioteca do Museu</p><p>Britânico,chegasse</p>
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Author: Roderick King

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Name: Roderick King

Birthday: 1997-10-09

Address: 3782 Madge Knoll, East Dudley, MA 63913

Phone: +2521695290067

Job: Customer Sales Coordinator

Hobby: Gunsmithing, Embroidery, Parkour, Kitesurfing, Rock climbing, Sand art, Beekeeping

Introduction: My name is Roderick King, I am a cute, splendid, excited, perfect, gentle, funny, vivacious person who loves writing and wants to share my knowledge and understanding with you.